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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

19
Jun10

Trinta anos

Bruno Vieira Amaral

Fazes ideia do que são trinta anos na merda? Não fazes? Trinta anos na merda, meu caro amigo, são uma vida inteira na merda. São mais anos do que aqueles que já viveste, portanto, guarda essa cara de caralho para os filhos da puta deficientes dos teus alunos, guarda esse teu sermão de menino bem comportado para os teus filhos, se conseguires fazê-los, e não me fodas a cabeça. Eu estou há trinta anos neste bairro. Assisti ao maravilhoso espectáculo que é gente a chegar cheia de sonhos e a fugir escorraçada. Nunca vi uma peça de teatro em toda a minha vida mas uma peça de teatro nem chega para amostra do que eu vi. Meu caro amigo, eu vi gente a foder a própria vida de todas as maneiras que possas imaginar. Todas. Houve quem tivesse saído daqui e arranjado a vida, mas já olhaste bem para a cara deles quando voltam aqui ao bairro? Não? Então eu explico-te, meu caro amigo. Chegam com um brilho nos olhos que eu não sei se é nostalgia ou falta de memória. Falam com toda a gente que encontram. É bom o momento do reencontro. Revivem-se os tempos de glória. No segundo dia a coisa continua. Abraços, lágrimas, histórias, risos. É no terceiro dia que a merda, súbita e inexorável, aparece. Já se encontrou toda a gente, já se reviveram todas as histórias, já se riu o que havia para rir. Ao terceiro dia, o homem que triunfou longe do bairro, começa a olhar para os amigos de há trinta anos e vê o que eles na verdade são: carcaças humanas, espectros infelizes de um tempo de inocência. Ao terceiro dia, meu caro amigo, já só restam as rugas, as conversas desconexas e a repetição maníaca das mesmas histórias como se não estivessem a contá-las há três dias ou há trinta anos. As mesmas histórias repetidas vezes sem conta até vir aquela sensação de estranheza, a sensação de que aquela gente já não está viva, o pessoal do bairro morreu há trinta anos e o homem que triunfou longe do bairro sente a atmosfera fúnebre, como se ao entrar ali ele tivesse de abdicar dos seus triunfos, tivesse de depositar as coroas de louros à porta do bairro e fosse obrigado a assumir que é tão derrotado como os outros, que está tão morto como os outros, porque quando regressa ao bairro o homem que triunfou longe é mesmo um derrotado como os outros, como se nunca tivesse saído dali. No bairro, ele é um derrotado e bastam apenas três dias para compreender isso e para se pôr a andar dali para fora, na direcção do lugar onde pode exibir os troféus, as vitórias, os louros, onde todos o elogiam por ter vindo de onde veio e mesmo assim ser um vencedor. É esta a história de quem chegou cheio de esperanças a este bairro, meu caro amigo. É a filha de uma puta de uma história triste, se queres que te diga.

19
Jun10

Amor em paz

Bruno Vieira Amaral

O amor faz-se e desfaz-se a qualquer hora, nas tardes em que a Primavera é ainda promessa, sol frio, os pés na água límpida da piscina, acaba sem ruído no dia em que ela arruma as roupas na mala e o mundo dos dois - o mundo dos beijos e dos orgasmos, dos passeios e das esperanças fúteis, dos corpos unidos num acidente feliz, mas também o mundo dos talheres e dos lençóis, dos tapetes e da loiça suja, o mundo das vassouras, do lixo, das coisas diárias e invisíveis, de repente transformadas em monumentos trágicos – esse mundo material, objectivo e quantificável - o número de copos e de toalhas de rosto, os metros quadrados da sala – esse mundo que pode ser dividido, encaixotado, partilhado, queimado, perde a solidez e desfaz-se em pó de memória mesmo à nossa frente, sem que o possamos resgatar do naufrágio; esse mundo, e não os sentimentos suspirados, os arrebatamentos e os eflúvios emocionais, esse mundo é que é o amor, uma ruína súbita, um edifício corroído em segundos pelas térmitas da indiferença, uma aldeia abandonada por uma população em fuga, um jazigo com dois corpos de costas voltadas; o amor, quando se desfaz, é esse fantasma sem casa e sem esperança.

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