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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

10
Out10

Milagrário Pessoal

Bruno Vieira Amaral

Versão alargada da recensão publicada no i

 

Podemos ler Milagrário Pessoal, de José Eduardo Agualusa, como ensaio em fato de romance sobre a língua portuguesa, história de amor senil (o dos velhos é o verdadeiro amor senil) ou louvor das palavras de que se fazem as línguas. “Palavras fazem misérias / inclusive músicas”, cantou (ou assobiou) o poeta-pássaro Manoel de Barros, a quem o novo romance de José Eduardo Agualusa muito deve. As palavras têm poder, as palavras são poder. Neste romance, a associação entre palavras e magia é frequente: dos povos que ainda acreditam na sua natureza mágica (p. 72) aos poetas que tentam devolver às palavras o “seu brilho antigo”, a sua magia (p. 88). O realismo mágico, que também há por aqui, é consequência da magia do verbo. As palavras e as línguas não são apenas razão, logos, têm uma carga telúrica, são a topografia verbal de um povo, ideia expressa na profecia segundo a qual os angolanos haveriam de falar “um português próspero, redondo e musical”, onde se ouviria o largo rumor do Cuanza [...], o colorido piar de suas muitas aves, o silvo do vento soprando húmido por entre o capinzal.” (p. 33).

 

Palavras também são poder, política no sentido mais lato. Podem significar insubmissão, como no caso do timorense que declamava sonetos de Camões. Podem siginificar afirmação nacionalista, como no caso das elites brasileiras que passaram a utilizar apelidos de origem tupi. Podem significar subversão, como o colonizado que pretende colonizar a língua do colonizador para assim o dominar.

 

As palavras estão no centro da intriga. Iara é uma linguista que estuda o aparecimento de neologismos na língua portuguesa para os dicionarizar. Quando, numa única semana, surgem vinte e três neologismos em várias publicações, pede auxílio a um ex-professor - o narrador do livro - um octogenário anarquista angolano. Os dois lançam-se numa busca quase danbrownesca e com uma pitada de O Pêndulo de Foucault, que os leva de Lisboa a Olinda. Uma trama que serve para vestir o fato de romance ao material ensaístico (ver o décimo primeiro capítulo) e que, dada a sua natureza flexível, permite a Agualusa o já habitual exercício em vários registos do idioma (segundo e quarto capítulos como os melhores exemplos).

 

Com a atenção que dedica aos neologismos, Milagrário Pessoal é veículo para a ideia da língua enquanto ser de uma inteligência orgânica que rejeita as palavras que o adoecem e assimila as que o retemperam. Como se à língua não se pudessem impor palavras, como se estas apenas estivessem à espera de quem as colhesse. O livro homenageia alguns dos colectores subversivos – porque a mais radical das subversões é “a de melhorar uma civilização sofisticando o seu idioma” (p. 22) – da língua portuguesa: Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Luandino Vieira e Mia Couto. Agualusa não se junta ao bando como companheiro de viagem, optando por guardar a distância defensiva do ornitólogo que observa os poetas-pássaro em acção. O autor agradece-lhes a afinação da ferramenta com que constrói os seus romances. Um utensílio que é também, e cada vez mais, o tema central da obra de Agualusa.

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