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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

24
Dez11

Natal

Bruno Vieira Amaral

O leitor já não terá idade para contos de Natal. Acha-os bem-intencionados, levemente hipócritas, a moedinha que se atira para a mão estendida dos bons sentimentos. O leitor é adulto, e como bom adulto acha que o Natal não deve ser um interlúdio de caridade num ano de indiferença. Acha que devemos ser bons e justos com os nossos semelhantes em qualquer ocasião. Acha que o Natal é uma farsa inventada por consciências pesadas, por homens carregados de culpa, por pecadores sem remissão. O leitor é bom e mesmo quando não o é sabe que isso é a natureza humana. Não somos perfeitos e o melhor é aceitá-lo em vez de o tentar camuflar com acções nobres e natalícias. Mas o que eu tenho para contar é um conto de Natal. E é um conto de Natal porque os factos que me preparo para revelar ocorreram na noite de Natal e não posso dizer que o final não vos vá encher de esperança na humanidade. Pelo menos foi assim que o senti, e ninguém mo contou. Aconteceu-me a mim. Confesso que continuo a não suportar contos de Natal. Aquilo que me aconteceu transformou-me, mas não o suficiente para mudar de opinião sobre os contos de Natal. E não espero que o leitor sofra uma transformação mais intensa. Afinal, mesmo que venha a gostar do que vai ler, a verdade é que o que aconteceu, aconteceu-me a mim. Era noite de Natal e eu estava sozinho. Não estava triste ou deprimido. Estava sozinho. O que pode não parecer uma coisa por aí além para quem, como o leitor, não liga a essas celebrações, mas que era um pouco estranha dado que ainda no ano anterior eu tinha passado o Natal com a minha mulher, o meu filho e a família dela. Mesmo que uma situação não seja objectivamente terrível é inevitável que a comparemos com alegrias recentes. No caso em apreço, a comparação não me podia animar. Apesar disso, estava disposto a enfrentá-la com bravura e estoicismo. Afinal, as grandes almas temperam-se nas dificuldades, o que é o género de pensamento confortável que só nos conforta depois de as termos ultrapassado. Na altura, tentei lidar com a situação com algum engenho psicológico, embora o frio, aliado ao facto de estar sozinho, não me ajudasse. Por muito corajosos e lúcidos que sejamos, há circunstâncias que em nada beneficiam essas qualidades e uma delas, garanto-vos, é estar enrolado numa manta, o aquecedor avariado, na noite de Natal, sem ninguém para falarmos. O leitor poderá dizer que a noite de Natal é uma noite como outra qualquer, e di-lo provavelmente rodeado pela família, com os filhinhos ansiosos por abrir os presentes e abençoado pelo sorriso da mulher. Não lhe levo a mal a indelicadeza, porque eu também pensava assim e, de certa forma, continuo a pensar o mesmo. Portanto, como vê, a história, sendo extraordinária, como verá, não mudou assim tanto o meu carácter. Mas, quer acredite, quer não, a noite de Natal é diferente, até porque nunca irá dizer que a noite de 17 de Dezembro ou de 26 de Agosto é igual às outras. Só o dirá da noite de Natal e isso, como deverá perceber, faz toda a diferença. Eu próprio fiz um grande esforço para desvalorizar a noite de Natal. Era só mais uma noite, como tantas, mas no fundo eu sabia que só me estava a enganar. Aposto que o leitor já terá proferido palavras de consolo e de ânimo a pessoas em circunstâncias irremediáveis. Mas não é por isso que deixa de as dizer, porque embora o leitor, como já concluímos, não seja um desses hipócritas que festeja o Natal, orgulha-se das suas qualidades humanas e de ser empático e capaz de compaixão. Evita magoar desnecessariamente alguém que se apresta para ser inevitavelmente magoado pela realidade. Louvo-lhe o comportamento. Bem mais difícil é dirigir palavras de consolo a nós próprios. Se na outra situação podemos desculpar-nos com a ignorância alheia e agir em nome da caridade cristã ou, no seu caso, de uma elevada consciência humanista, consolar-nos a nós próprios é um embuste demasiado óbvio para que um homem razoavelmente são possa insistir nele mais do que alguns minutos. Depois de algumas horas a falar com pessoas pela internet, fui ficando sem contactos. Pessoas que eu mal conhecia, confesso, mas que naquele momento teriam tido uma grande utilidade, quanto mais não fosse pelo facto de poder ver nelas o reflexo da minha solidão e, com isso, sentir-me menos só. Mas a noite de Natal, veja bem, não é uma noite como outra qualquer e eu tive mesmo de me confrontar com o facto de estar sozinho. Tinha preparado uma modesta ceia de couves e bacalhau, uma garrafa de vinho razoável e um bolo-rei. Também tinha em cima da mesa da sala o presente embrulhado que iria dar ao meu filho na manhã do dia seguinte. Interrompo o meu relato para perguntar ao estimado leitor se consegue imaginar o som dos talheres num prato? É fácil, não é? Acredita que, naqueles dias em que estive sozinho, era esse o som da solidão? Quem está habituado a viver com alguém pode pensar que a solidão cai quando se deita na cama e não tem ninguém a quem desejar boa noite e sente a falta dos pés para enroscar. Mas a solidão, pelo menos para mim, é ouvirmos os nossos próprios passos, ver os nossos gestos em diferido, como se estivéssemos a arrumar o palco depois da peça. O ruído dos talheres no prato, quando se está sozinho, fere-nos. A esta altura, o leitor deve estar a preparar o espírito para um milagre. Sossegue. Jamais lhe pediria o esforço de contrariar a sua natureza e encaixar um milagre no seu cepticismo. Também não acredito em milagres, sejam sobrenaturais ou daqueles que todos os dias aparecem nos jornais sobre pessoas que sobreviveram por milagre a um acidente. É também por milagre que as pessoas morrem nos acidentes, um milagre ao contrário, admito, mas um milagre: o milagre da morte. Deviam ser umas oito da noite quando recebi uma mensagem no telemóvel. Como deve imaginar, pensei logo que era uma daquelas mensagens de boas festas que as pessoas enviam por educação aos seus contactos. Por vezes até são mais elaboradas, mesmo que não tenham sido elaboradas por quem as está a enviar. Gostamos que os outros se lembrem de nós. O leitor dir-me-á que pouco consolo haverá numa mensagem enviada para todos os contactos que temos no telemóvel, e assim é, embora isso seja preferível a não receber mensagem nenhuma. Acredite no que lhe digo. Mas esta mensagem surpreendeu-me porque era mesmo para mim. Vinha de um amigo que eu já não via há algum tempo. Perguntava-me se estava tudo bem e onde é que eu ia passar o Natal. Há momentos em que não conseguimos deixar de sentir uma auto-comiseração dilacerante. Ter pena de nós, o leitor concordará, é um sentimento contraditório. Há nele qualquer coisa da consciência do mártir e da incapacidade dos falhados. A tentação é a de rebolar na lama da tristeza e da impotência. Não é fácil erguermo-nos desse conforto ambíguo. Quando li aquela mensagem senti um calor no peito, a determinação dos que caminham para a fogueira certos da sua inocência. Teria sido mais corajoso se tivesse inventado uma história, se lhe tivesse dito que estava com uns tios da província ou em casa de amigos. Tive, porém, uma fraqueza de náufrago. E se, depois daquele barco, nenhum outro passasse? Disse-lhe a verdade: estava sozinho. Uma hora depois, ouvi a campainha. Não entrarei em pormenores. Tudo aconteceu como acabo de lhe contar. Eu não estava prestes a cortar as veias, não fui salvo no último minuto pelo gesto inesperado de um amigo, não apareceu nenhum anjo de luz. Disse-lhe que não esperasse milagres. Não o enganei. No entanto, sei que o sente, esta é uma história extraordinária sem nada incrível dentro, só podia ter acontecido na noite de Natal e só a conto porque aconteceu mesmo na noite de Natal. Não acredite se lhe disser que foi o melhor Natal de sempre. Peço-lhe que acredite que nunca houve outro igual.

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