Receitas de Meia-Nigella
Quando chego aos objectos de culto (“estes gajos que ninguém conhece são mesmo bons”) já os encontro na fase de fenómeno de massas (“os gajos venderam-se”) ou, se as coisas correrem bem, na curva descendente que os devolve à condição de objecto de culto com o bónus da nostalgia (“mesmo quando se vendiam os gajos eram bons”). Quem não quer acabar como mascote esfarrapada dos talibans do autêntico, dos que não se vendem, vende-se. Os outros, poucos, aguardam serenamente o processo de luiz-pachequização ou antonio-ganchamento e rezam para que os jovens do futuro ainda se preocupem em fazer relíquias dos vencidos. Mas isto não é sobre literatura, é sobre a forma como a senhora Nigella Lawson se abeirou do meu campo de visão e do meu proto-paladar, que os dois sentidos aqui caminham juntos. Como sempre, cheguei tarde ao objecto. Já meio-mundo a elogiara, e como qualquer especialista em devoções sabe, o escárnio e o vilipêndio acicatam mais o desejo de veneração do que mil esporas de elogios, por genuínos que sejam. Quem é que vai empregar o seu precioso tempo com a Nigella quando sabe que o mais provável é chegar à mesma conclusão que todos os outros? É como se o marido abandonado voltasse a casa e dissesse: “Se não és minha, vais ser de toda a gente”, e andasse para aí a gabar-se da múltipla inexclusividade. Há cultos que pedem multidões (Fátima, o Benfica, inaugurações do Ikea) e há outros que exigem recato e meditação. Pensei que o culto à volta da Nigella fosse deste último género mas assim que a vi a chupar os dedos num programa de televisão percebi que estava enganado. Então, na solidão densamente povoada do peregrino, parti para a Nigella. Cheguei ainda há pouco e o tempo aqui está bom. A Nigella tem um corpo todo ele Cântico dos Cânticos, cedros do Líbano e tal, de uma opulência mediterrânica de carnes.
Vou no Queijo Mozzarella em Carrozza, uma interessante reflexão sobre a condição do queijo na sociedade italiana. “Em carrozza” significa “num recipiente”, mas se disséssemos “Queijo Mozzarella num recipiente” a coisa perdia a graça e talvez nos sentíssemos tentados a levar o queijo para um centro de análises clínicas. Assim, em italiano, temos vontade de o levar a passear pelos canais de Veneza, qui c’est triste Venise, aux temps des amours morts, de discutir os romances de Calvino, o Italo, entre outros assuntos mais do agrado do queijo, como a levedação. A autora garante que este conto está algures entre “pão frito, torrada de queijo e rabanadas”, ou seja, literatura neo-realista do pós-guerra em ambiente de festividades natalícias, e insurge-se contra a tradição: “Não vou fazer de conta que esta receita é tradicional.” Não é. Nigella apropria-se da tradição para nos oferecer algo novo e com malaguetas.
Fiambre com Coca-Cola
Nigella aventura-se no auto-plágio: “Esta receita é do meu livro How to Eat, mas com algumas alterações.” Não, isto é mais O Toldo Vermelho da culinária. “E não, não vou pedir desculpa por copiar, ou melhor, reformular esta receita pela simples razão de que insisto que a prove.” Nós aprovamos. “A bebida doce e gasosa tem tudo a ver com o espírito da carne assada.” O espírito da carne assada? Estará Nigella a entrar na mitologia Navajo? O único conselho que retive é “nem pense em usar Coca-Cola Zero!”, com ponto de exclamação e tudo. Oh, Nigella!
Jaquinzinhos
Rendo-me a Nigella! Jaquinzinhos? “Já praticamente me tinha esquecido da existência de jaquinzinhos até os ver à venda numa peixaria.” É por estas e por outras que eu tenho uma agenda onde registo o nome dos peixes e respectivo número de telefone. “Jaquinzinhos são peixes pequenos”, “normalmente são carapaus pequeninos”, embora em cativeiro possam ser encontrados alguns do tamanho de lontras e outros com a voz do José Carlos Malato. Depois, vem a eco-política: “Eu sei que há uma geração mais naturalista para quem a ideia de comer peixinhos-bebés inteiros pode ser pouco tentadora.” A minha avó sempre me disse que comer jaquinzinhos era um acto essencialmente imoral, sobretudo quando acompanhados de arroz de tomate. Mas há momentos em que o homem é apenas um elo na cadeia alimentar, um “mamífero de curta duração”, como diz Steiner, e nessas alturas já se sabe que é capaz de qualquer coisa, incluindo comer hambúrgueres do Lidl e jaquinzinhos, enquanto declara que o aumento do IRS não terá efeitos retroactivos.