Revisores de Texto
Onde é que iria encontrar um revisor de texto a uma hora daquelas? Lembrou-se então de descer as escadas. Quando chegou à porta do prédio, fechou os olhos e rezou para que lá fora estivesse um desses autocolantes com o número de telemóvel de um revisor de texto, mas só encontrou o de um canalizador e o de um gajo que dava aulas de escrita criativa a crianças hiper-activas, uma merda que envolvia cães e leitura de excertos de A Educação Sentimental. Nada de revisores de texto. E agora? Havia sempre a Diamantina que, depois de ter ido para a cama com todos os jornalistas culturais do país e com os poucos desportivos que citavam Galeano e Rodrigues, tinha-lhe dado uma oportunidade de mostrar o que valia ou de, pelo menos, pôr a pila em terreno anteriormente percorrido pelos membros viris de sumidades como aquele tipo espertinho que escrevia essencialmente sobre autores japoneses e o outro que agora era correspondente de uma revista semanal em Maputo, Luanda ou noutro sítio qualquer cheio de pretos e de empreiteiros tugas montados em jeeps e com quatros seguranças à volta enquanto mamam camarões e exibem o grande regresso em estilo colonial, é isso. As coisas tinham corrido tão bem que nos cinco meses seguintes a comunicação, se se pode chamar comunicação a ele enviar-lhe mensagens a horas impróprias e ela não responder, estagnou. Diamantina, coitada, a Diamantina que andava toda contente por ter uns livrinhos autografados (mormente compilações de crónicas publicadas em jornais gratuitos) e ao fim de engolir vários litros de esperma intelectualmente sobredotado lá aprendeu a dizer Derrida com uma pronúncia que não a envergonhava, a Diamantina era a última esperança dele naquela noite. “Sim, conheço um que é capaz de estar disponível.” E foi assim que às duas da manhã de uma quinta-feira particularmente fria, Mário acabou numa bomba de gasolina em Fernão Ferro à espera de um revisor de texto conhecido no meio como o Fronhas, vá-se lá saber porquê, que finalmente chegou no meio de uma nuvem de fumo com que o seu Renault 19 de 92 se fazia anunciar. “Ouve, para me fazeres vir aqui a uma hora destas é bom que seja por um excelente motivo.” Mário olhou-o, pensou na falta que uma Ordem dos Revisores de Texto fazia e, sem demoras, entregou-lhe um manuscrito, o manuscrito. O Fronhas pegou no caderno e depois de uma olhadela disse-lhe: “Estás a gozar comigo? Sabes que há umas quantas pessoas capazes de matar para ter isto, não sabes? E para que não fiques a pensar que eu sou um parvo qualquer, digo-te já que as conheço todas e que sei de cor os números de telemóvel e a música preferida de cada uma delas. Posso ficar com isto?” Mário hesitou mas conseguiu disfarçar a falta de opções com uma convicção postiça. “Preciso disso pronto amanhã.” O outro esboçou algo entre um sorriso e um atestado de incapacidade intelectual permanente. “Para amanhã posso escrever a continuação dos Lusíadas. Isto, só daqui a duas semanas.” “Preciso do texto pronto amanhã ou então tenho de procurar outra pessoa.” “Outra pessoa? Queres dizer um revisor de texto minimamente competente, às duas da manhã, nos arredores de Fernão Ferro?” “Posso ir a Lisboa” “Claro que podes. E podes fazer muita coisa em Lisboa e até podes encontrar muita gente em Lisboa, mas ninguém que te possa ajudar com o material que tens aqui.” (cont.)