Rubem
Fui ensinado a não ter outros ídolos que não Deus. Entretanto, perdi-me de Deus, ou Deus perdeu-se de mim, em todo o caso, desencontrámo-nos e então comecei a coleccionar ídolos. Nunca os quis bezerros de ouro, exemplares e imutáveis. Sempre os preferi humanos, ídolos falíveis a quem pudesse admirar e reprovar, com longos períodos de êxtase e reverência e períodos ainda mais longos de quase esquecimento, em que subsistiam como uma luz ténue que, porém, nunca se apagava. Era bom reencontrá-los em livros, filmes, músicas, recuperar a memória que deles tinha e lançar-me em renovada adoração. Era bom deixá-los incógnitos numa estante ou numa gaveta, em pousio para que o espanto fértil não se esgotasse de tanta lavra, e regressar por um acaso, um atalho, uma desilusão. E eles lá estavam, na obediência muda das estantes, na soberania paciente dos caixotes, à espera do filho pródigo que, cansado do mundo, retorna ao abraço paterno. Ora, muitos destes ídolos de palavras e imagens, mas também de carne e osso, são gente esquiva, avessa ao ruído das turbas fanáticas, receosos da prolixidade vazia dos que não se satisfazem com o diálogo implícito da arte e desejam adorar de corpo presente, vencer a distância e mergulhar fisicamente no autor. Mesmo quando são afáveis e se prestam a sessões de autógrafos, mesmo quando posam de estátua deles mesmos em fotografias que hão-de enfeitar salas de subúrbio, mesmo quando trocam palavras que dão ao receptor o direito abusivo de dizer “conheci fulano”, vejo-os como os deuses melancólicos que são, já insensíveis a tresleituras, ávidos de ser amados mas resignados a que esse amor não signifique compreensão, nem a união funda que acontece raramente entre dois seres humanos e dispostos a aceitar a condição de santinho de altar, santuário que se dá a peregrinações cegas. Contudo, nós queremo-los, queremos vê-los na sua realidade física porque nos dói a breve incerteza de humanidade que as palavras nunca fecham, queremos ouvir-lhes a voz e ver como é o corpo de onde explodiram palavras e multidões nasceram, queremos ver os nossos ídolos e tocar-lhes e pedir-lhes que vivam para sempre, não no real intangível dos livros, mas que vivam para sempre aqui na terra, perto de nós, e para além de nós, como deuses caídos, como homens eternos. E quando não temos a coragem para os desafiar para a vida eterna, quando não lhes sabemos exigir que fiquem, que permaneçam como permanecem as suas personagens, saibamos ao menos apertar-lhes a mão e dizer-lhes “Muito obrigado por tudo”.
Fotografia de Pedro Loureiro, a quem agradeço