A casa e o corpo de Clara
Há, em Aquarius, dois momentos em que Clara, a personagem de Sónia Braga, se liberta: no mar, mergulhando nas ondas de uma praia do Recife, e em casa, numa dança solitária após uma fracassada tentativa de sexo com um amante que a rejeita ao saber que, por causa de um cancro, Clara tirou a mama direita.
Não é com os filhos, com quem alterna a ternura com a impiedade, nem com as amigas, naquela espécie de riso para espantar os fantasmas que é apenas um biombo que oculta as tristezas, nem com o prostituto que lhe oferece prazer sem sentimento e sem culpa, nem sequer nas discussões com os maus da fita, os homens que lhe querem ficar com a casa, que ela se liberta. É na solidão, na companhia dos elementos primordiais da sua vida: o mar (o filme começa com uma cena noturna na praia), a música (em certos momentos o filme, mais do que pelo enredo, parece ser sustentado pelas canções que o atravessam), o vinho, a casa. Destes elementos, só a água é verdadeiramente primordial, mas a música também é ar e o vinho também é fogo e sangue e a casa também é terra e corpo.
O filme de Kléber Mendonça Filho pega num tópico arquetípico do western – o indivíduo que vê a sua propriedade cobiçada por alguém mais poderoso – e transforma-o na luta de Clara pela sua casa, pelo seu corpo. É que, neste caso, o apego à casa não se justifica nem pelo valor da propriedade, nem, ao contrário do que Clara diz aos filhos (eles nasceram e foram criados naquela casa), pelo valor sentimental. Ao defender a sua casa, Clara está a defender o seu corpo, esse corpo mutilado do qual ela já abdicou o que tinha de abdicar. Não está disposta a fazer outras cedências.
Nenhuma das agressões que Clara sofre, e sofre várias ao longo do filme, é contra o seu corpo – ninguém lhe bate, ninguém a viola, ninguém abusa dela – mas todos os ataques de que é vítima, todas as ameaças que lhe fazem são, numa dimensão profunda, físicos porque se dirigem à sua vulnerabilidade, ao facto de ser mulher: o amante que a rejeita, o ex-vizinho que a ameaça, o proprietário dos outros apartamentos do edifício que lhe lembra que aquele não é um lugar seguro para uma mulher sozinha. É como um cerco que se vai apertando e que, paradoxalmente, empurra Clara para o único lugar onde ela está a salvo e que ela sabe como defender. A casa, aqui, é o lugar da mulher mas não naquele sentido da expressão “o lugar da mulher é em casa”. O sentido da casa é o de um território do qual a mulher se recusa a ser expulsa e que ela defende com energia e com aquela espécie de fúria justiceira ampliada pelo medo.
No final, quando Clara se vinga, a violência com que o faz é mais simbólica mas não deixa de ser física. Estabelece uma fronteira, um limiar que não pode ser cruzado sem autorização. Veja-se também como, numa cena inicial, Clara deixa os inimigos à entrada, afirmando-se senhora da sua casa e, metaforicamente, do seu corpo: esta é a minha casa, feita de cimento, este é o meu corpo, feito de sangue, mas também, ambos, feitos de música, de vinho, de mar. O corpo de Clara é o mundo de Clara e ela não os quer perder.