Cem anos de perversão
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A 21 de dezembro de 1980 o escritor brasileiro Nelson Rodrigues revelava a verdadeira face. As máscaras do homem contraditório, revolucionário e reacionário, amado e vaiado, polémico e sentimental, obcecado pelo amor e pela morte, louco por Dostoievski e pelo Fluminense, caíram todas nesse dia. Ficava o rosto hirto e solene da morte, o verdadeiro rosto do homem: “A maior dignidade da morte é física. Nunca o homem é tão belo como quando está morto. Porque tem então assegurada a eternidade, é na morte que o homem tem o seu rosto verdadeiro. Na vida, usamos máscaras sucessivas e contraditórias. Só a morte revela a nossa verdadeira face.” (Folha de São Paulo, 29/01/1980). Nesta frase, beleza e morte entrelaçam-se, como em tantas das suas personagens. (A Ivone de um dos contos de A Vida Como Ela É... “comovida”, “como se a idéia da morte a embelezasse.”) Os opostos atraem-se e, através da fricção, melhoram-se. No velório de Nelson Rodrigues devem ter ardido velas e não os círios elétricos que abominava como degradações da beleza ritual da morte. Numa das suas crónicas, sobre a morte do escritor Guimarães Rosa, escreveu assim: “Quanto a mim, fui ao velório na Academia. Entro e paro ante a indignidade dos círios elétricos.” Na obra de Nelson Rodrigues, a morte carrega as dignissímas vestes românticas e novecentistas. Os cadáveres têm uma beleza estranha e eterna e a beleza, sempre mórbida, já traz indícios da morte. Toda a beleza é mórbida ou toda a morte é bela poderiam ser frases suas, ele que gostava tanto de frases totais, polidas, sem arestas, sem hesitações. A obsessão pela morte era anterior às tragédias familiares quase impossíveis, de romance de cordel, que marcaram o escritor. Era uma curiosidade genética, desde a infância: “Desde garoto sou fascinado pela morte. Em vez de ter medo, ia peruar enterro. Não tinha medo nenhum, e volta e meia me infiltrava nos velórios. Achava uma coisa fantástica a chama das velas. Hoje os nossos velórios perderam isso, é tudo luz elétrica. Uma coisa incrível, uma falta de respeito. Antigamente havia os gemidos e os gritos na hora do enterro. O enterro era apaixonante. Entrava todo mundo assim, de cara de pau. Hoje a capelinha desmoraliza a dor. Antigamente, a hora de sair o enterro era uma coisa tenebrosa.” (O Estado de São Paulo, 10/09/1978). Uma das primeiras cenas de Asfalto Selvagem, a sua obra-prima romanesca, é no funeral de um personagem. O Dr. Odorico Quintela faz um elogio fúnebre ao falecido, mas o seu desejo alucinado é o de elogiar publicamente os atributos da filha adolescente do morto: “O que interessa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por esses dois seios pequeninos!”.
Em Nelson Rodrigues, os assuntos verdadeiramente sérios, as suas obsessões, misturam-se numa lógica que só aparentemente é contraditória: é a lógica do excesso, do gesto operático, sublime e patético, quer seja na morte, no amor ou no sexo. É a lógica romântica e desesperada do suicídio (veja-se a quantidade de suicidas nas ficções de Nelson Rodrigues), como a de Eusebiozinho, outro protagonista de um conto, que, nas vésperas do seu casamento, se enforca com o vestido da noiva e deixa um bilhete onde pede para ser enterrado assim (“A coisa mais bonita do mundo é uma noiva!”), ou da pura obsessão com a morte, o desejo de morte que é uma forma passiva de suicídio, que atormenta e fascina Conceição: “As fitas que acabavam mal, em morte, agonia e luto, causavam nela um duplo sentimento de fascínio e repulsa.” Queria ser uma “morta bonita”, sonhava “morrer no altar com grinalda e véu” e só a ideia de ser enterrada a aterrorizava, associada ao léxico sombrio e pesado dos cemitérios: “terra fria”, “sete palmos de terra”, “jazigo perpétuo”. É um imaginário ultra-romântico que sublima, por contraste, o lado hediondo do homem: “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda, acho mais importante a hediondez. O ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez. Eu me proponho a reconhecer a hediondez”, afirmou o escritor numa entrevista. Só um moralista poderia falar assim. É por isso que Nelson Rodrigues detestava os artigos do pensador católico Gustavo Corção: “Oh, esse homem, esse católico apenas irritado e sem paixão! Oh, essa virtude sem amor!”. O dramaturgo era o oposto. Como acreditava que “o ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez”, mostrava-a explícita e apaixonadamente. Ao confrontar o leitor e o espetador das suas peças com a miséria escondida da humanidade, a obra de Nelson Rodrigues é moralista e catártica. Ao oferecer-se à crítica e à censura, expia os pecados alheios, lava os crimes silenciosos que todos cometemos, mesmo que em pensamento: “Assim é o povo: - tem fome de sangue e excremento”, lê-se em Asfalto Selvagem. O escritor procurava o sangue e o excremento onde a sua existência era mais inesperada e chocante: no interior da família. Catar lixo nas lixeiras não era o negócio de Nelson. Esse realismo de valeta aborrecia-o. O instinto dramático do escritor aguçava-se quando farejava a virtude, em busca do que se escondia sob a aparência da retidão: “Certas virtudes fedem”, “O desejo do puro é hediondo” ou “A virtude é triste, azeda e neurasténica” são algumas das frases dos seus livros que demonstram essa desconfiança em relação à virtude inexpugnável.
E o terreno ideal para este garimpeiro do sórdido era o sangue envenenado da família. É uma grande ironia que o demónio reacionário tenha sido acusado pela direita de servir os interesses da esquerda porque as suas peças demoliam o conceito tradicional de família. O crítico Sábato Magaldi, na introdução ao segundo volume do Teatro Completo de Nelson Rodrigues, faz-lhe justiça: “A História e a Civilização traem inapelavelmente a inteireza dos impulsos autênticos, disfarçados, transferidos ou sublimados em outros valores. Mas são esses valores que propiciam a continuidade da vida. Se correto esse raciocínio, Álbum de Família deixaria de ser a tragédia que assustou os bem-pensantes, para testemunhar o moralismo congênito do dramaturgo.” Em Asfalto Selvagem, o narrador diz que “cada família tem suas trevas interiores, que é preciso não provocar”. Ora, o programa de Nelson Rodrigues era provocar estas trevas interiores resguardadas pelo biombo da respeitabilidade. Não queria destruir o biombo, queria desviá-lo para que pudéssemos contemplar, incomodados, a podridão. Se o que o atraía para o sexo era o seu “seu alto valor trágico, e importantíssimo para o teatro” só podia centrar-se no espaço familiar, arena miniatural em que ganham corpo todas as tensões, repressões, neuroses e desejos, o princípio e o fim do universo rodriguiano. O Edmundo de Álbum de Família diz: “Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira.” É este o conceito bíblico e trágico da família na ficção e no teatro de Nelson Rodrigues. É aí que o sexo é mais doentio, mais mórbido, que o seu valor trágico é mais elevado porque as personagens são “devoradas pelos seus escrúpulos.” O seu reino não é o do deboche, é o da violenta repressão do desejo e, depois, da violenta materialização do desejo. Em Nelson Rodrigues o sexo não é uma atividade lúdica, é uma maldição, uma doença hereditária que destrói o tecido das relações. Eis a importância espiritual do sexo nas palavras do escritor: “É o sexo que faz de cada criatura um ser marcado. E profundamente infeliz. Toda pessoa que perdeu a inocência, que um dia praticou o ato sexual é, a meu ver, um ser perdido, devorado pela voragem do desejo insaciável.” E quanto mais se reprime, com mais força ele regressa. É uma boa síntese da história de Engraçadinha, a protagonista de Asfalto Selvagem. O romance foi publicado em capítulos diários no jornal do Rio de Janeiro, Última Hora, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960. Tem todos os elementos centrais ao universo rodriguiano: amor, sexo, morte, incesto, culpa, repressão. O estilo folhetinesco não retira ao livro o seu poder reflexivo, que está nas ações das personagens mas também na voz do narrador. Mas não há no romance nada mais grandioso do que essa Engraçadinha, selvagem na adolescência, reprimida e fervorosa protestante depois dos trinta, uma devota evangélica obedientemente casada com um marido manso que nunca a viu nua. Mas a semente do desejo é assim: quanto mais fundo é enterrada, com mais força brotará. E nós sabemos que a vida daquela mulher é um teatro em que ela é a atriz principal (a hipócrita). Aguinaldo Silva comparou-a à Capitu, de Machado de Assis, “entre as grandes personagens da literatura” brasileira. No entanto, perante a criação de Nelson Rodrigues, Capitu parece uma estátua. Capitu não é uma personagem trágica. É um detonador da tragédia. Engraçadinha é um explosivo e a sua razão de ser é a explosão. Enquanto Madame Bovary, outra adúltera, procura realizar uma ilusão literária em que o sexo e o dinheiro são elementos equivalentes para essa realização, o móbil de Engraçadinha é o desejo. O seu fim é a explosão, a deflagração dos desejos. Engraçadinha é profundamente trágica, uma corporização do pessimismo antropológico do seu criador: por muito que nos esforcemos por domar os nossos instintos mais básicos, com o chicote da religião ou do casamento, eles irrompem com a força do fatum, perante a qual somos impotentes. Nelson Rodrigues era um especialista das zonas de tensão, dos conflitos contraditórios no interior do ser humano. Dramaticamente, a devassidão é plana. O que é trágico é a violência que se esconde na pusilanimidade, o desejo torturado que há na pureza, o potencial transgressor na mulher séria. A hipocrisia, o drama que se esconde nos intervalos da normalidade, a contradição entre a banalidade da vida familiar e o excesso disruptivo das paixões primitivas, são o combustível rodriguiano. Sob um manto de respeitabilidade, ardem chamas inconfessáveis.
A representação mais conseguida desses conflitos foi realizada nas peças teatrais, no seu “teatro desagradável”: “A partir de Álbum de Família [...] enveredei por um caminho que pode-me levar a qualquer destino, menos ao êxito. [...] são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia.” O “satanismo” exagerado de Nelson Rodrigues, sintoma de uma elevada consciência dos imperativos artísticos, provocava reações extremadas e viscerais. Embora não escrevesse para escandalizar, para “épater le bourgeois”, apreciava o escândalo e via nele um sinal de reconhecimento. “O mau-gosto deve ser recuperado”, dizia, e a sua obra roça, por vezes, o ridículo, a implausibilidade. Não escrevia para “grã-finas” e até se sentia honrado por, no final da exibição de uma das suas peças, ter visto senhoras respeitáveis a pular por cima das cadeiras, uivando como apaches, insultando-o e chamando-o de tarado. Defendia-se dizendo que as suas peças não tinham palavrões, mas eram tão cruas e brutais que, na cabeça dos espetadores, ficava a ideia que sim, que havia muitos palavrões. A vaia era a sua consagração. Era assim que sabia que tinha tocado os espetadores. Quem não gosta, levanta-se e sai da sala a meio da peça, mas quem fica até ao fim para insultar é porque foi tocado por aquilo que viu. Anos antes das vaias, o público recebera em êxtase a sua peça Vestido de Noiva. Na plateia gritava-se “Pirandello! Pirandello!” Rodrigues temia mais os elogios. Preferia o ódio, a reação visceral e indignada ao aplauso automático e burro: “Toda a unanimidade é burra”, tornou-se uma das suas frases mais citadas. Esta obediência às exigências da arte (que não se preocupa com o êxito e com os louvores), e a sede quase infantil de antagonismo, arranjaram-lhe críticos em todos os setores da sociedade e tornaram-no um alvo preferencial da censura. Ele, que ainda hoje é um mito para a direita culta, mordaz e desabrida, foi vítima da direita inculta, brutal e beata. Álbum de Família, escrita em 1945, só foi encenada em 1967, por causa da completa proibição da censura.
O poder revelador do teatro de Nelson Rodrigues era enorme. Sábato Magaldi fala sobre rasgar “o véu da consciência”, “as verdades profundas do indivíduo” e o “desnudamento do universo interior”, ações de revelação que só poderiam ser servidas por uma linguagem crua, igualmente reveladora. Se o “teatro não tem que ser bombom com licor”, a linguagem não pode ser “a pirâmide de confeitaria”, a melodia de Guimarães Rosa. Nelson não queria fazer literatices: “Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos mais jovens: não façam literatice. O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra. Aos 13 anos escrevi: “O crepúsculo era uma apoteose de sangue”. Hoje é difícil eu cair no pecado da literatice.” Na sua prosa sente-se a febre da redação, o estilo tenso do repórter, obrigado a constantes tiros certeiros no meio das rajadas que se via obrigado a produzir: o “ódio impotente”, a “fidelidade mórbida”, a “fúria obtusa” e o “choro ignóbil”. Algumas formulações são dignas de épocas em que a sentenciosidade era a segunda natureza do romancista: “Tomou-se dessa agressividade que há no fundo de qualquer tímido”, “Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça, mas o povo o tem”, “o amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequeninos escrúpulos, de vergonhas medíocres, de limites covardes”. Nelson Rodrigues aliava a capacidade do cronista de observar comportamentos ao talento literário para os registar de forma quase arquetípica. O Dr. Arnaldo, pai de Engraçadinha, sai diretamente do romance para o Olimpo, em representação do político ineficaz e popular. Eis o génio romanesco, queirosiano, de Rodrigues: “Até o momento de estourar os miolos o dr. Arnaldo era o político mais popular do Estado. [...] Dizia-se, com certo humor respeitoso, que era popular até entre os vira-latas que, na rua, vinham lamber-lhe as botinas. É certo que não lhe conheciam atos, projetos ou medidas de bem público que justificassem tal projeção. [...] Mas o dr. Arnaldo – é preciso que se note – tinha, se assim posso dizer, o gênio do cumprimento. Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimentava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhecidos, e, digo mesmo: - saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos.” A sua linguagem, como toda a sua obra, é “vital”, nunca é apenas “interessante.” O próprio Nelson fazia esta distinção e queria evitar que a linguagem obscurecesse a limpidez da criação. Dizia sobre o dramaturgo francês Jean Giraudoux que “a melodia de sua prosa é um luminoso disfarce da sua impotência criadora.” Como em tudo na sua obra, a linguagem de Nelson Rodrigues é um assunto sério, tem um valor ético que supera as qualidades ornamentais, musicais, da palavra. A clareza da linguagem é a clareza do pensamento, mesmo quando a linguagem descreve a ambiguidade, mesmo quando o pensamento se debruça sobre as contradições.
Se era um repórter das contradições dos seus personagens, Nelson Rodrigues não ignorava decerto as suas próprias contradições. “A minha ficção é uma coisa. E eu posso ser outra”, dizia. As suas contradições são as de Raskolnikoff. Dizia-se um Raskolnikoff sem instintos homicidas e alegrava-se por Dostoievski ter posto o seu personagem mais célebre a ajoelhar-se perante Sónia, numa cena patética e sentimental. Segundo o cronista Pedro Lomba a “cabeça de Nelson Rodrigues fervilhava de contradição, consigo mesmo e com o mundo. Porque a verdade é que somos capazes de tudo. Do amor, da morte, da pureza, da bestialidade.” Era o anjo pornográfico, título da biografia definitiva de Ruy Castro: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. [Curiosamente, é através do buraco da fechadura que Zózimo, o marido pusilânime de Engraçadinha, vê pela primeira vez a nudez frontal da mulher]. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.” A vida e a profissão de repórter policial, com que se iniciou no jornalismo, deram-lhe muita matéria para espreitar e muitas oportunidades (trágicas) para se contradizer. A obsessão com o suicídio teve origem em histórias ouvidas na infância e que contaminaram a sua imaginação e sensibilidade. Mas também a vida familiar, com a sucessão de tragédias e reveses, alimentou o ficcionista das contradições humanas e o homem contraditório. A 26 de dezembro de 1929, Sylvia Seraphim, uma senhora da alta sociedade cuja separação do marido merecera honras de primeira página no jornal Crítica, propriedade de Mário Rodrigues, pai de Nelson, dirigiu-se à redação. O escândalo abalara a sociedade carioca e Sylvia queria vingança. Mário não estava no jornal. O tiro que lhe estava destinado acabou por matar um dos filhos, Roberto Rodrigues, artista plástico e ídolo da família. Pouco mais de dois meses depois, Mário morreu, vítima de uma trombose. Esta sequência de eventos deixou uma marca profunda na sensibilidade de Nelson e pode-se dizer, com o devido exagero rodriguiano, que o sangue de Roberto tinge toda a sua obra. Outro episódio decisivo ocorreu muitos anos depois, na década de 1970. O filho de Nelson Rodrigues, Nelsinho, era membro de uma organização revolucionária de guerrilha urbana, o MR-8. Viveu dois anos na clandestinidade antes de ser preso em 1972. O pai, o eterno anti-comunista, que dizia que “a experiência comunista é o que há de pior nos últimos trinta milhões de anos”, viu-se entre a espada das suas ideias e a parede do amor ao filho. Ele, que sempre negara a utilização de métodos de tortura pelo regime militar, sofreu a dor terrível de ouvir da boca do próprio filho que os presos políticos eram submetidos a violentas sessões de tortura. Em 1979, um ano antes de morrer, em entrevista ao jornal Última Hora, Nelson Rodrigues dirigia-se diretamente ao presidente do Brasil, João Baptista Figueiredo: “Solte esses rapazes, Figueiredo. Meia dúzia de obras gigantescas não colocam um presidente na História. Você é o único brasileiro que tem essa oportunidade na mão. Solte esses moços, Figueiredo. Por favor, Figueiredo, solte meu filho.” Como escreveu o seu biógrafo, a vida de Nelson Rodrigues, com tantos acasos retorcidos, chega a ser mais impressionante do que qualquer invenção literária do escritor.
Saímos de Nelson Rodrigues, da sua obra e da sua biografia, com a sensação incómoda de termos testemunhado a miséria das nossas abjeções, os terrores primitivos da nossa condição, a vil tristeza de um animal que deseja. Saímos, por isso, purificados, com a cicatriz de um golpe que nos fere profundamente e, ao mesmo tempo, nos deixa lúcidos para além de qualquer possibilidade de ilusão ou utopia. Sentimos que não é possível escavar mais fundo, que já chegámos à nudez absoluta do humano, na sua miséria, abjeção e glória. Nos livros de Nelson reencontramos, sem rodeios ou literatices, o que um crítico chamou de “certa selvagem beleza da vida”, sabendo que é nessa fonte de pureza primordial que bebemos os nossos amores e os nossos pecados.