Quiet
The Quiet Volume apresenta-se como “espetáculo sussurrado para duas pessoas de cada vez” e propõe-se abrir “porosidades entre a esfera de um e outro leitor.” Mesmo que o leitor ao nosso lado se chame Rogério Casanova, somos tomados por algum pudor em usar a leitura como pretexto para abrir porosidades entre a esfera de cada um. O conceito denomina-se “autoteatro” ou, como lhe chamamos lá em casa, A Grande Tenda de Onan. Insucesso é coisa que não existe aqui. Como público e actores coincidem, todas as sessões estão esgotadas. Mediante uma simbólica contribuição de cinco euros, o espectador tem o privilégio de “fazer o espectáculo” durante uma hora. Acaba-se assim com o velho hábito burguês de apreciar bovinamente uma peça. A tarefa pode parecer simples mas não é levada a cabo sem cerimónia. Somos recebidos por duas jovens senhoras. A primeira, com o ar levemente suicida e promíscuo das admiradoras de Sylvia Plath, explica-nos condescendentemente que há regras cujo não cumprimento impedirá que desfrutemos da experiência na plenitude. A segunda, manifestamente infeliz por não se encontrar em Veneza ou Bayreuth, passa-nos com certo desinteresse os auscultadores e o que julgo ser um ipod e pede-nos para não o desligarmos acidentalmente. (Tenho alguma dificuldade em concentrar-me no objectivo de não desligar acidentalmente qualquer aparelho). Em jeito de despedida, diz-nos que devemos mudar de página quando virmos este símbolo [uma mão a apontar para a direita] porque se não o fizermos acontece-nos o mesmo que ao pobre rapaz que sofreu a terrível consequência de passar todo o espectáculo na mesma página, indiferente às orientações esforçadas do pessoal. (Felizmente, assim que a peça terminou, tiveram a amabilidade de o encaminhar para a saída.) Sentamo-nos lado a lado e é então que a experiência tem o seu início oficial. A voz que me sussurra ao ouvido é masculina e insinuante. Temo que, de um momento para o outro, me pergunte o que tenho vestido. Resulta que só quer que eu me concentre nos sons, nas “vozes trazidas pelo vento”, que a esta hora, no interior da Biblioteca Nacional, sopra de fraco a moderado do quadrante oeste. Depois de uma breve digressão pelo tema das mãos dos outros utilizadores do espaço, ordena-me que leia um caderno que está em cima da mesa. Logo a seguir, obriga-me a pensar na última palavra que li, a qual, garante-me, ficará cada vez mais debotada e fraca na minha memória, sinal de que precisa da insulina. A palavra é “porta” e, por breves e telepáticos segundos, imagino que a voz será capaz de a adivinhar. Para minha desilusão, as capacidades sobrenaturais da voz não se destacam, ao contrário dos seus evidentes dotes soporíferos. Em vez de me ajudar a concentrar, o seu estrépito incessante atira-me para um profundo estado de confusão mental, do qual saio apenas para registar alguns vocábulos: (“nuvens”, “gavetas”, “Doris Lessing”, “Chinua Achebe” e um tal de “Rui Barbo”). O que prometia ser a descoberta da “intrigante magia no centro da experiência de leitura” – um artefacto procurado há séculos pelos arqueólogos – revela-se uma penosa excursão aos arrabaldes do tédio. Passo de um livro de José Saramago para um de Agota Kristof e, finalmente, para um de Kazuo Ishiguro. Das traseiras da minha mente, chegam-me agora vozes diferentes, semelhantes às dos vilões dos desenhos animados. A sessão termina, devolvo obedientemente os acessórios e não consigo evitar o sentimento de culpa por não ter estado à altura cosmopolita de um evento que já passou por cidades como Berlim, Buenos Aires e Londres. Saio da Biblioteca e a voz que agora oiço sugere-me que compre dois bilhetes para o próximo LaFéria.