Cinema Lusitano
Circunstâncias que revelarei em sede própria levaram-me ao visionamento de um filme pornográfico português. Cada um à sua maneira, todos os filmes portugueses são pornográficos. Aquele que eu vi é pornográfico no sentido "damianiano" (de Gerard "Deep Throat" Damiano). Comecemos pelo título: "Xana - a empresária do Montijo". Poderia ser "Alexandra - a badalhoca da Faculdade de Letras", "Xaninha - a indecorosa chefe de repartição"; não é. Xana é um diminutivo que não se diminui, conspurca-se. Relacionado com actividades empresariais na Margem Sul adquire uma dimensão de crítica social, realçando que o que falta a este país não é mais Estado mas mais empreendedorismo. Xana é mulher, é empresária, é da Margem Sul. Dá para perceber que isto não é só pornografia.
O filme divide-se em três partes que não estão ligadas entre si (essa é a função dos actores). Quem já viu New York Stories percebe a intenção do realizador. Alguns elementos conferem unidade dramática ao conjunto, mas podemos falar em "quadros" independentes que continuam a ser compreensíveis quando vistos isoladamente. O primeiro segmento é o que dá o título ao filme. São três personagens (começa a notar-se um padrão relacionado com o número três): Xana e dois cavalheiros, um dos quais permanece de meias calçadas o filme todo. Os diálogos não se percebem muito bem. Isto diz muito sobre o grande respeito do realizador pelos espectadores, o que não é muito usual no nosso país. Não se queixa das deficiências técnicas, conhece as condições de visionamento deste tipo de filmes (volume no mínimo), assume a fraca vocação dos nossos guionistas para escrever diálogos convincentes. O que terá dito Bill Murray a Scarlett Johansson no final de Lost in Translation? As gerações futuras continuarão a interrogar-se sobre o que Xana diz ao homem das meias brancas. Enquanto eu pensava nisto, Xana já estava a ser duplamente penetrada - a velha questão do triângulo amoroso. Realce para o desempenho dos dois actores masculinos. O que se despojou das meias é um espanto de técnica. Influenciado pelo Método cai por vezes no overacting, mas temos de o desculpar. Consta que se terá preparado durante quinze anos para este papel, vivendo como um anónimo empregado de balcão numa pastelaria de Corroios. O outro é mais introspectivo. As meias sempre nos pés lembram-nos que mesmo nas condições mais extremas há valores de que um homem não deve abdicar, sobretudo se não tiver cortado as unhas. Toda a acção (e há muita) decorre na sala de estar (huis-clos, unidade de espaço, estes tipos não são amadores) e termina de uma forma brusca, confrontando o espectador com o seu voyeurismo ignóbil (Michael Haneke paira sobre este final).
A segunda parte, com outros actores, insiste na temática da mulher dividida entre dois homens. O cenário é minimal: uma secretária e um telefone. Quem pensar que aquilo é um t1 nas Olaias esvaziado de mobília para a rodagem de um filme pornográfico não percebe nada de Lars von Trier (cf. Dogville). Estamos num escritório e continuamos com uma consciência social aguda (o empresariado do Montijo, um escritório), um olhar clínico sobre a sociedade moderna. Para além disso, a secretária não é apenas mobiliário. Tem uma função dramática que se revela na cena em que a protagonista a utiliza para apoiar os antebraços. Neste momento, saltei para a última cena (tinha de entregar a crítica a tempo de ser publicada hoje).
O último segmento é Eyes Wide Shut do início ao fim. Os actores são um casal na vida real e expõem a sua intimidade com uma pungência raramente vista em obras deste quilate. Ela é branca e ele é negro (Febre da Selva, pois claro!). A ideia do realizador é provar que a fealdade não escolhe raças. Notam-se a cumplicidade e os sentimentos, mormente na cena de sexo anal. Aquilo é a vida real com os seus azares, rotinas e colchas foleiras. Não me recordo do final, mas creio ter percebido a ideia.
Quem comprar este filme com intuitos meramente onanistas terá uma grande desilusão. Eu fiz o mesmo com a obra de Godard e até hoje não recuperei. Mas se virem o filme com a paixão de um cinéfilo descobrirão uma autêntica pérola. Two thumbs up!