9 de Junho
Caro Guilherme,
Não é possível ter noção dos prazeres da vida no campo até se visitar a vila de F. Esta tarde, fui até ao rio. Sentei-me à sombra de uma árvore frondosa e ali, embalado pelo alegre chilrear dos pássaros, fiquei a meditar na beleza que me rodeava. Após algumas horas, resolvi-me a dar umas braçadas. Foi apenas quando fiquei sem pé que me ocorreu que não sei nadar. A vida aqui corre tão tranquila que tendemos a ignorar as nossas limitações. Por sorte, dois rústicos que por ali andavam entre os arbustos, apercebendo-se da minha aflição, salvaram-me. Um deles queria assassinar-me e o outro, mais piedoso, propôs que me violassem. Lamento não te poder transcrever toda a riqueza gramatical e etnográfica da conversa, mas enquanto eles discutiam, aproveitei para me esgueirar. A minha chegada à casa do moleiro, esbaforido e sem roupa, causou uma severa comoção na mulher deste.
13 de Junho
Guilherme,
Conheci o mais extraordinário ser que imaginar se possa. Um anjo, uma manifestação perfeita da sabedoria infinita do Criador. Bem sei que disse o mesmo quando conheci Ifigénia. Mas, acredita-me, esta tem todos os dentes da frente. Está noiva de um burguês todo janota.
20 de Junho
Caro Guilherme
O janota chama-se Alberto. É um daqueles burgueses que está convencido que um bom emprego, uma família decente, a beleza física e uma vasta cultura geral são suficientes para conquistar uma mulher. Por outro lado, despreza aqueles que conseguem equilibrar um cutelo no nariz e não acha graça a que um homem adulto dance com uma costeleta de novilho pendurada nas calças. Ainda por cima tem a tendência para contrariar tudo aquilo que eu digo. Como é um cobarde, nunca manifesta a discordância por palavras e só mesmo um excelente observador poderá descortinar o sarcasmo que se esconde sob aquela aparente indiferença. A verdade é que, apesar disto, simpatizo com ele, embora uma voz me ordene que lhe esmague o crânio com uma marreta.
29 de Junho
Guilherme,
Como são puros os meus sentimentos por Carlota. Ontem, enquanto a observava a partir o pão de centeio para a ceia, tive o desejo ardente de a possuir à canzana, mas logo passou e, instantes depois, já nos imaginava de mãos dadas a passear castamente nas margens do rio.
2 de Julho
Carlota, Alberto e eu fomos passear pelo bosque. A suave obscuridade que nos envolvia inspirou-me pensamentos lúgubres e sentimentos crepusculares. Um gamo ferido atravessou-se no nosso caminho. Senti-me invadido por uma profunda tristeza. Enquanto atava as botas, tive uma visão do meu próprio túmulo. Oh, Guilherme, tudo me entristece! Carlota compreende-me e também chora por tudo e por nada. A lua lembra-lhe os que já partiram. Só Alberto, esse burguês, ignora esta delicadeza de espírito e, enquanto choramos, ele come nozes.
6 de Julho
Guilherme,
Não me alimento adequadamente vai para três dias. Sabes que a minha compleição física não é de molde a resistir a semelhantes privações. Já pensei no suicídio, mas se arranjar um bom desconto, uma viagem a Itália não está fora de questão.
10 de Julho
Caro Guilherme,
Hoje, aproveitando a ausência de Alberto, visitei Carlota. Ela, como sempre, recebeu-me muito bem. Eu aproveitei para abrir o meu coração e para lhe dizer tudo o que tenho calado para meu grande sofrimento e angústia. Disse-lhe que Alberto é um crápula da pior espécie e que se gaba publicamente das doenças venéreas que contrai com “femmes de joie”. Carlota pareceu surpreendida e enojada. Para resistir ao impulso de me cair nos braços, expulsou-me de casa, brandindo uma foice. Já eu ia na estrada e ela ainda vociferava, certamente para ludibriar quem nos pudesse ouvir: “Pulha! Idiota!”. Eu, incapaz de ocultar os meus sentimentos, atirava-lhe beijinhos e chamava-a de minha amada.
17 de Julho
Guilherme,
Alberto finalmente confrontou-me e questionou-me sobre os sentimentos que nutro por Carlota. Fê-lo apontando-me uma arma, o que me deixou um pouco nervoso. Só esta reacção justifica que lhe tenha confessado a minha homossexualidade. Guilherme, sabes bem que não há no mundo homem que aprecie tanto a companhia feminina como eu, mas a real possibilidade de levar um tiro fez-me pensar se será assim tão mau partilhar intimidades com efebos. Alberto, contudo, não acreditou nas minhas palavras. Acusou-me de ser virgem. “Sim, sou virgem e com muito orgulho”, respondi, o que é verdade, à excepção do orgulho. Ameaçou-me e disse-me para não me voltar a aproximar de Carlota. Desatei a chorar. O mundo é negro. Longe de Carlota, sinto que não há nenhuma razão para viver.
Adeus, amigo.
17 de Julho, à noitinha
Caro Guilherme,
Já te falei da filha do moleiro?