Tyson
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Can you not give it to me?
Do not be ashamed – I do not mind if it is small.
Sylvia Plath – Ariel
Não comece a pensar coisas. O verso em epígrafe quererá dizer alguma coisa mas nada que interesse para a história que vou contar. Gente dos blogues adora expor obscenidades de poetas anglo-saxónicos em epígrafe. Você entra no blogue e já está a levar com uma ejaculação de Pound na cara. Nesta história, que está num blogue mas não é um, você leva com Plath, não confundir com Paltrow. Adiante. A história é policial e tem mais de um capítulo. Começa assim:
Subitamente, Vanenburg lembrou-se: “Kundera!”. Correu para a sala, evitando as quinquilharias e as pilhas de livros de Sidney Sheldon, e gritou: “Kundera! A resposta é Kundera”. O dr. Eufrázio olhou-o com espanto. Kundera, como é que nunca tinha pensado nisso. Refez os acontecimentos: às 15:45 do dia 26 de Novembro Carly Simon, assistente estagiária na Universidade de Lovaina, foi encontrada morta no apartamento da Rue des Flutes. Overdose de Kierkegaard, a causa provável. O alerta foi dado pela empregada de limpeza, Sueli Morton de Oliveira, uma autoridade em Filosofia Medieval, que vinha todas as terças e sextas.
O inspector Klaus Augenthaler, especialista em Criminologia e a acabar uma pós-graduação em Literatura Austro-húngara, ficou perplexo: “O tom azulado da pele e uma edição barata de Temor e Tremor; não há dúvidas: overdose de Kierkegaard.” Em menos de uma semana era o terceiro caso fatal. Alguém andava a lixar os leitores belgas. Kierkegaard mal traduzido é normalmente fatal. Após uma breve análise, o criminólogo detectou vestígios de Nietzsche. “Cá está! Traduzem Kierkegaard e, para render, acrescentam um parágrafo de Nietzsche, uma frase de Feuerbach, uma vírgula sabe-se lá de quem!” O assistente, Guimarães Rosa Filho, ouvia com atenção o inspector. Aquele não era um cenário bonito. Guimarães Rosa Filho nunca pensou que conheceria o mundo sórdido da tradução: livros, mulheres de óculos, gongorismo, linguística. Saíram para interrogar Ademir Van Damme. Arraia-miúda. Tinha feito umas traduções de autores croatas, nada mais. Mas conhecia bem o meio.
- Não sei de nada – disse Van Damme e sorriu enigmaticamente.
- Não nos faças perder tempo. Sabes bem que há poucas pessoas capazes de traduzir Kierkegaard e acrescentar-lhe duas linhas de um artigo de Homero Serpa. – disse Augenthaler. A história do Homero Serpa era mentira mas era uma técnica antiga do inspector.
- É verdade. Há um tipo que costuma esconder filósofos do século XIX na edição de Domingo d’ “A Bola”.
- Filho da mãe! – vociferou Augenthaler pontapeando uma coisa que soube mais tarde ser a perna de Guimarães Rosa Filho – Esta gente é capaz de tudo. Bem, Ademir, estou capaz de te oferecer uma edição de bolso dos Aforismos de Schopenhauer. Ouvi dizer que já não consegues ler nada na íntegra.
- Sabe como é que é, Inspector. Chega uma altura em que tudo o que seja mais do que uma citação dá cabo do sistema nervoso.
- Ah, e preciso da morada dele.
- A morada, não sei. Mas sei onde é que o podem encontrar.
Claro. À porta do Liceu Francês. Augenthaler já tinha ouvido falar de uns tipos sem escrúpulos que aliciavam os miúdos com primeiras edições falsificadas. Há menos de um mês, tinham encontrado um rapaz de quinze anos – uma criança, por amor de Deus! – numa valeta. Ao lado, uma edição de “Ulisses” assinada pelo autor, um tal de James Jones. Os miúdos não ligavam a esses pormenores. Mal sabiam eles que o monólogo de Molly Bloom só pode ser lido duas horas depois da refeição. Não. Ávidos de sabedoria, morriam ingloriamente. O que será de uma cidade em que os adolescentes matam e morrem por umas linhas de grande literatura universal? Augenthaler e Guimarães Rosa Filho chegaram sem dar nas vistas. Acontece que estacionaram em cima de uma velhota. A multidão quase que os linchou. No meio da confusão, Augenthaler viu alguém que lhe fez gelar o sangue. Ao lado do homem que procuravam estava Sueli Morton de Oliveira. O caso era ainda mais estranho do que julgavam. Que outras revelações iriam ser reveladas? (no próximo capítulo, Sueli Morton de Oliveira despe-se em exclusivo para os leitores deste blogue).
Morreu Jack Cardiff, director de fotografia. Imagem de Black Narcissus.
Não aprendemos nada com a história do patinho feio, nem sequer com a do pós-moderno Shrek. Mas os produtores de televisão conhecem-nas bem. Quando Susan Boyle subiu ao palco tinha todo o ar de feia aberração de feira. Quando começou a cantar foi como se os anjos tivessem tido pena de nós. Os programas televisivos de talentos precisam destas narrativas: meninas pobres, solteironas feias, rapazes introvertidos. O underdog que triunfa. É o sal dramático que tempera o que de outro modo seria um insípido desfile de gente com e sem talento. Quanto mais feia, mais desajeitada, mais virgem, melhor para a produção. Susan Boyle foi apresentada sem qualquer sinal exterior de talento para que a surpresa do espectador fosse maior. "Play them like an organ", dizia Hitchcock. É isto que as televisões nos vendem: o Zé Maria de Barrancos, a Susan de um vilarejo escocês, a Floribella desgraçada, o canalizador que interroga Obama. A ilusão do autêntico. A ilusão do real. A televisão corrige as desigualdades sociais e os desequilíbrios estéticos. A televisão promove a meritocracia. Dá voz a quem não tem voz. Dá voz a quem não tem cara que se apresente. Viva a televisão! Susan não tem culpa de nada disto. Não tem culpa de ser o fascinante oxímoro que é: uma voz de anjo numa cara que não lembra ao diabo.
“Ya no soy un hombre, soy un equipo”.
Frank Serpico. Polícia hippie e barbudo, vive em Greenwich Village, ouve ópera e é incorruptível (sugiro a canonização). Esta combinação improvável de vocação e de qualidades rende-lhe a inimizade dos colegas, o fim da relação amorosa e um sempre doloroso tiro na cara.
O idealismo do filme não era uma novidade na Hollywood liberal, nem sequer na carreira de Sidney Lumet (12 Angry Men). A diferença reside na imagem da polícia enquanto instituição corrupta, da base ao topo. “The system is corrupt”, berra Serpico sem que ninguém o oiça. O indivíduo contra o sistema com o fundo urbano do realismo sujo dos anos 70 (poucos anos mais tarde, um Al Pacino mais histérico voltaria a ser um homem contra o sistema em “…E justiça para todos”). Serpico diz que a polícia não faz ideia do que se passa nas ruas. E ele, tal como o cinema da época, sai para as ruas, suja-se, mistura-se, arrisca-se. O filme começa com um Serpico crístico e insiste na imagem de um homem contra os vendilhões do templo, até na cena mais notável do filme: a da solidão de Serpico, abandonado no parque pelos colegas que não conseguem convencê-lo a aceitar os subornos.
P.S. - A banda sonora não se percebe. Remete-nos para as raízes italianas de Serpico quando o filme quase que ignora essa questão étnica.
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