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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

25
Abr09

Tyson

Bruno Vieira Amaral

 

 
 
 
Quem é Mike Tyson? Um homem grande, um corpo maciço de onde sai uma voz tímida que tem medo de levar algumas frases até ao fim, ao lugar onde as palavras não se distinguem das emoções. No documentário de James Toback, há momentos em que Tyson está à beira de qualquer coisa de tremendo e nós só não sabemos se o que se segue é explosão ou derrocada. Quando fala sobre o mentor, Cus d’Amato, quando recorda as humilhações de infância, Tyson é metade animal pronto a soltar a sua fúria, metade criança à beira das lágrimas. Fade out.
 
Há uma tendência para vermos no boxe um simples mecanismo de controlo social, como se o ringue fosse uma reprodução simétrica e domesticada da violência na vida real. Joyce Carol Oates escreveu no seu livro O Boxe: “A vida é semelhante ao boxe em muitos aspectos inquietantes. Mas o boxe só se parece com o boxe.” Não basta ser preto, pobre e sem futuro. O boxe requer disciplina, treino, sacrifício. Talento. Arte. Isto é fácil de perceber quando vemos um combate do elegante Muhammad Ali. O estilo de Tyson era outro. Ao vê-lo a liquidar adversários em poucos segundos, somos levados a crer que estamos perante uma manifestação de força bruta, instintiva, animal. O que vemos, no entanto, é uma quase impossível aliança entre força, velocidade e precisão. Uma máquina construída não para vencer, mas contra o próprio medo de falhar.
 
Tyson diz algo como isto: “Nasci para dar amor, não para receber”. Quem nada recebe, nada pode perder. Na sua relação com as mulheres, com o dinheiro, tudo é desequilibrado. A desconfiança com que olhou para o seu treinador no início transformou-se, mais tarde, numa lealdade absoluta e incondicional: “Se ele me dissesse para morder, eu mordia”. A amizade com Don King acabou com o empresário a ser pontapeado por Tyson no meio da rua. O que aprendeu com o boxe serviu apenas para nunca mais ser humilhado fisicamente, mas não lhe eliminou as fraquezas emocionais. Invencível no ringue, capaz de quebrar o espírito do adversário mesmo antes de o combate começar, na vida real Tyson continuou a ser um homem vulnerável. Nunca deixou de ser o miúdo gordo de pulmões débeis, a antítese do monstro dos ringues. Porque o boxe só se parece com o boxe.
24
Abr09

Crime na Universidade de Lovaina

Bruno Vieira Amaral

Can you not give it to me?
Do not be ashamed – I do not mind if it is small.

 

Sylvia Plath – Ariel

 

 

Não comece a pensar coisas. O verso em epígrafe quererá dizer alguma coisa mas nada que interesse para a história que vou contar. Gente dos blogues adora expor obscenidades de poetas anglo-saxónicos em epígrafe. Você entra no blogue e já está a levar com uma ejaculação de Pound na cara. Nesta história, que está num blogue mas não é um, você leva com Plath, não confundir com Paltrow. Adiante. A história é policial e tem mais de um capítulo. Começa assim:

 

Subitamente, Vanenburg lembrou-se: “Kundera!”. Correu para a sala, evitando as quinquilharias e as pilhas de livros de Sidney Sheldon, e gritou: “Kundera! A resposta é Kundera”. O dr. Eufrázio olhou-o com espanto. Kundera, como é que nunca tinha pensado nisso. Refez os acontecimentos: às 15:45 do dia 26 de Novembro Carly Simon, assistente estagiária na Universidade de Lovaina, foi encontrada morta no apartamento da Rue des Flutes. Overdose de Kierkegaard, a causa provável. O alerta foi dado pela empregada de limpeza, Sueli Morton de Oliveira, uma autoridade em Filosofia Medieval, que vinha todas as terças e sextas.

O inspector Klaus Augenthaler, especialista em Criminologia e a acabar uma pós-graduação em Literatura Austro-húngara, ficou perplexo: “O tom azulado da pele e uma edição barata de Temor e Tremor; não há dúvidas: overdose de Kierkegaard.” Em menos de uma semana era o terceiro caso fatal. Alguém andava a lixar os leitores belgas. Kierkegaard mal traduzido é normalmente fatal. Após uma breve análise, o criminólogo detectou vestígios de Nietzsche. “Cá está! Traduzem Kierkegaard e, para render, acrescentam um parágrafo de Nietzsche, uma frase de Feuerbach, uma vírgula sabe-se lá de quem!” O assistente, Guimarães Rosa Filho, ouvia com atenção o inspector. Aquele não era um cenário bonito. Guimarães Rosa Filho nunca pensou que conheceria o mundo sórdido da tradução: livros, mulheres de óculos, gongorismo, linguística. Saíram para interrogar Ademir Van Damme. Arraia-miúda. Tinha feito umas traduções de autores croatas, nada mais. Mas conhecia bem o meio.
- Não sei de nada – disse Van Damme e sorriu enigmaticamente.
- Não nos faças perder tempo. Sabes bem que há poucas pessoas capazes de traduzir Kierkegaard e acrescentar-lhe duas linhas de um artigo de Homero Serpa. – disse Augenthaler. A história do Homero Serpa era mentira mas era uma técnica antiga do inspector.
- É verdade. Há um tipo que costuma esconder filósofos do século XIX na edição de Domingo d’ “A Bola”.
- Filho da mãe! – vociferou Augenthaler pontapeando uma coisa que soube mais tarde ser a perna de Guimarães Rosa Filho – Esta gente é capaz de tudo. Bem, Ademir, estou capaz de te oferecer uma edição de bolso dos Aforismos de Schopenhauer. Ouvi dizer que já não consegues ler nada na íntegra.
- Sabe como é que é, Inspector. Chega uma altura em que tudo o que seja mais do que uma citação dá cabo do sistema nervoso.
- Ah, e preciso da morada dele.
- A morada, não sei. Mas sei onde é que o podem encontrar.


Claro. À porta do Liceu Francês. Augenthaler já tinha ouvido falar de uns tipos sem escrúpulos que aliciavam os miúdos com primeiras edições falsificadas. Há menos de um mês, tinham encontrado um rapaz de quinze anos – uma criança, por amor de Deus! – numa valeta. Ao lado, uma edição de “Ulisses” assinada pelo autor, um tal de James Jones. Os miúdos não ligavam a esses pormenores. Mal sabiam eles que o monólogo de Molly Bloom só pode ser lido duas horas depois da refeição. Não. Ávidos de sabedoria, morriam ingloriamente. O que será de uma cidade em que os adolescentes matam e morrem por umas linhas de grande literatura universal? Augenthaler e Guimarães Rosa Filho chegaram sem dar nas vistas. Acontece que estacionaram em cima de uma velhota. A multidão quase que os linchou. No meio da confusão, Augenthaler viu alguém que lhe fez gelar o sangue. Ao lado do homem que procuravam estava Sueli Morton de Oliveira. O caso era ainda mais estranho do que julgavam. Que outras revelações iriam ser reveladas? (no próximo capítulo, Sueli Morton de Oliveira despe-se em exclusivo para os leitores deste blogue).
 

23
Abr09

The loose end of her cloth

Bruno Vieira Amaral
"As they stood there together, Ekwefi's mind went back to the days when they were young. She had married Anene because Okonkwo was too poor then to marry. Two years after her marriage to Anene she could bear it no longer and she ran away to Okonkwo. It had been early in the morning. The moon was shining. She was going to the stream to fetch water. Okonkwo's house was on the way to the stream. She went in and knocked at his door and he came out. Even in those days he was not a man of many words. He just carried her into his bed and in the darkness began to feel around her waist for the loose end of her cloth."
 
Chinua Achebe, Things Fall Apart
21
Abr09

Susan

Bruno Vieira Amaral

Não aprendemos nada com a história do patinho feio, nem sequer com a do pós-moderno Shrek. Mas os produtores de televisão conhecem-nas bem. Quando Susan Boyle subiu ao palco tinha todo o ar de feia aberração de feira. Quando começou a cantar foi como se os anjos tivessem tido pena de nós. Os programas televisivos de talentos precisam destas narrativas: meninas pobres, solteironas feias, rapazes introvertidos. O underdog que triunfa. É o sal dramático que tempera o que de outro modo seria um insípido desfile de gente com e sem talento. Quanto mais feia, mais desajeitada, mais virgem, melhor para a produção. Susan Boyle foi apresentada sem qualquer sinal exterior de talento para que a surpresa do espectador fosse maior. "Play them like an organ", dizia Hitchcock. É isto que as televisões nos vendem: o Zé Maria de Barrancos, a Susan de um vilarejo escocês, a Floribella desgraçada, o canalizador que interroga Obama. A ilusão do autêntico. A ilusão do real. A televisão corrige as desigualdades sociais e os desequilíbrios estéticos. A televisão promove a meritocracia. Dá voz a quem não tem voz. Dá voz a quem não tem cara que se apresente. Viva a televisão! Susan não tem culpa de nada disto. Não tem culpa de ser o fascinante oxímoro que é: uma voz de anjo numa cara que não lembra ao diabo.

20
Abr09

Karaoke Cinema

Bruno Vieira Amaral
15
Abr09

Verhoeven

Bruno Vieira Amaral

 
Paul Verhoeven já foi chamado de misógino, racista, nazi e homofóbico. Não o convidem já para jantar. Vejam os filmes. Nas últimas duas décadas, Verhoeven tem sido dos poucos autores a trabalhar dentro do sistema de Hollywood e a fazê-lo de uma forma tão radical e pessoal. A assinatura (alguns chamam-lhe mau gosto) é a representação da violência e do sexo sem suavizações para as massas. O seu tríptico de ficção científica (Robocop, Total Recall e Starship Troopers) é o trabalho mais importante de reinvenção de um género cinematográfico na história recente do cinema americano. Nada de metafísica kubrickiana, nada da candura benigna e infantil de Spielberg. Ficção científica de regresso à série B, filtrada pela (in)sensibilidade de Verhoeven. Fez de Instinto Fatal um Vertigo trashy e explícito (comparar a cena da perseguição alucinante no primeiro com a perseguição sonâmbula e onírica no segundo). É um autor disfarçado de tarefeiro. Uma espécie em vias de extinção.
11
Abr09

A não-vida de Roberto Saviano

Bruno Vieira Amaral

“Ya no soy un hombre, soy un equipo”.

 
Roberto Saviano foi acusado de plágio mas essa não deve ser a maior das suas preocupações. Quando o seu livro, Gomorra, se tornou num sucesso de vendas e Saviano se transformou numa figura pública, os clãs camorristas decretaram-lhe a pena de morte. Demasiada informação a circular por demasiadas mãos. Apesar de movimentar milhões de euros em negócios ilícitos e lícitos, a Camorra (a máfia napolitana) actua na obscuridade, prospera na sombra. É um mercado à parte, com regras privadas e constantes mutações nas hierarquias. É o capitalismo selvagem levado ao extremo. A eliminação da concorrência não se limita ao sentido figurativo. As fusões são quase sempre assinadas com sangue. E é apenas quando as guerras de clãs eclodem, quando já não é possível ignorar os cadáveres que dia após dia aparecem nas ruas de Nápoles e nas lixeiras dos arredores, que a comunicação social se dá conta de que o “Sistema” existe. Terminada a limpeza, redifinidos os equilíbrios de poder, os jornalistas regressam às redacções e o “Sistema” ao “business as usual”. Roberto Saviano não se limitou a descrever o clímax das guerras. Seria o equivalente a reduzir “O Padrinho” ao momento em que Michael Corleone ordena a execução dos rivais. Saviano descreve a vocação tentacular da Camorra, a sua capacidade para se dedicar a negócios tão distintos como a distribuição de lacticínios e o tráfico de armas, passando pelos clássicos da corrupção autárquica: construção civil, futebol e recolha de lixo. É fascinante perceber como este Leviatã dependente de milhares de acções individuais se move com a harmonia de um ballet russo. O trabalho de Saviano é uma notável peça jornalística e literária (apesar das excessivas metáforas orgânicas) sobre a economia, a antropologia (ler o capítulo sobre as mulheres da Camorra), a história (Kalashnikov) e a psicologia dos camorristas. Homens que, a dada altura, vivem em bunkers ou em casas sem condições, não desfrutando da riqueza que administram, vendo o seu poder reduzido ao poder de iniciar um banho de sangue. Assim é a vida de Saviano. Com uma escolta permanente, longe da família e dos amigos, não podendo gozar da fama e do reconhecimento que Gomorra lhe trouxe. Mesmo que não venha a ser morto, Saviano já foi condenado a viver com o medo de uma morte iminente, já foi condenado a não ter uma vida normal, já foi condenado a uma não-vida. Tal como muitos daqueles que Saviano, com tanta coragem, denunciou.
06
Abr09

Serpico

Bruno Vieira Amaral

 

Frank Serpico. Polícia hippie e barbudo, vive em Greenwich Village, ouve ópera e é incorruptível (sugiro a canonização). Esta combinação improvável de vocação e de qualidades rende-lhe a inimizade dos colegas, o fim da relação amorosa e um sempre doloroso tiro na cara.
 
O idealismo do filme não era uma novidade na Hollywood liberal, nem sequer na carreira de Sidney Lumet (12 Angry Men). A diferença reside na imagem da polícia enquanto instituição corrupta, da base ao topo. “The system is corrupt”, berra Serpico sem que ninguém o oiça. O indivíduo contra o sistema com o fundo urbano do realismo sujo dos anos 70 (poucos anos mais tarde, um Al Pacino mais histérico voltaria a ser um homem contra o sistema em “…E  justiça para todos”). Serpico diz que a polícia não faz ideia do que se passa nas ruas. E ele, tal como o cinema da época, sai para as ruas, suja-se, mistura-se, arrisca-se. O filme começa com um Serpico crístico e insiste na imagem de um homem contra os vendilhões do templo, até na cena mais notável do filme: a da solidão de Serpico, abandonado no parque pelos colegas que não conseguem convencê-lo a aceitar os subornos.
 
P.S. - A banda sonora não se percebe. Remete-nos para as raízes italianas de Serpico quando o filme quase que ignora essa questão étnica.

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