Sobre a fealdade
"Ela triunfara sobre a fealdade, o que tantas vezes é mais sedutor que a verdadeira beleza, nem que seja apenas por abarcar o paradoxo."
Boneca de Luxo, Truman Capote, trad. Margarida Vale de Gato
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"Ela triunfara sobre a fealdade, o que tantas vezes é mais sedutor que a verdadeira beleza, nem que seja apenas por abarcar o paradoxo."
Boneca de Luxo, Truman Capote, trad. Margarida Vale de Gato
Dona Benilde tem oitenta e tal anos ou talvez já tenha noventa ou terá chegado aos cem sem que ninguém, nem mesmo ela, o saiba. Tem o passo ligeiro dos velhos demasiado saudáveis para a idade e que costumam embarcar (para utilizar uma expressão da minha avó, que não conhece Caronte) num instante, sem tempo para maleitas degradantes e hospitais SA. Nenhuma mulher de trinta ou quarenta anos se move assim, com aquela presteza de movimentos. A mulher de quarenta anos é muito consciente de si e não quer que a pressa lhe hipoteque a graciosidade. A dona Benilde, de idade incerta, já não se preocupa com. Não manca, não se queixa e se se pode dizer que a morte do Carlitos a envelheceu, não é com menos autoridade que se pode afirmar que esses anos suplementares que toda a tragédia acarreta se fixaram no rosto e na luz dos olhos que perderam, é facto, alguma da antiga vivacidade. A tristeza da dona Benilde é um incêndio circunscrito que não se propagou ao resto do corpo. A que se deve a jovialidade física desta mulher? A dona Benilde veio de Angola em 1975 e com ela vieram duas irmãs, dona Lina e dona Olívia, ambas entre os oitenta e os cem anos, mais nova a Lina, Olívia a mais velha, a primeira famosa por uma peculiar escassez de dentes, a segunda conhecida por falar sozinha enquanto desce as escadas, do terceiro andar ao rés-do-chão, visto que confiou sempre mais nas pernas, ainda que trémulas, do que na ciência dos elevadores, ainda que inspeccionados. Este hábito ludita valeu-lhe, há uns meses, umas costelas partidas quando desceu um lanço de escadas mais depressa do que o permitido pela sua idade. Aterrou à porta de um vizinho que teve a gentileza de a socorrer primeiro e só depois se rir. Dona Olívia já regressou aos antigos hábitos: desce as escadas enquanto fala com seres imaginários, recriminando-os porventura de lhe não terem amparado a aparatosa queda. Esta é a justificação genética que encontro para a saúde da dona Benilde e não me embrenho em teorias geográficas porque conheço pouco do seu passado africano e já vi muito boas pessoas vindas de África a quem o clima europeu juntamente com as mágoas do exílio não fizeram nada bem aos ossos, às articulações e ao património. Não é despicienda a questão dos bens porque a dona Benilde não os tem. Desconheço se alguma vez teve bens cuja perda pudesse ter lamentado nestes trinta anos que leva de Portugal. Calculo que não. Tendo pouco, dona Benilde não se comporta como se alguma vez tivesse tido muito. Porém, os hábitos que me interessam são outros e é por eles que escrevo estas linhas. Ao ler um romance de Naguib Mahfouz, deparei com a descrição de uma personagem que me pareceu apropriada à dona Benilde: “uma autêntica enciclopédia de fatalidades”. Magoada ou não com o que a vida lhe reservou, dona Benilde especializou-se no negócio da morte, especificamente em funerais. Nunca perde um e não é criteriosa na escolha. Vizinhos, conhecidos, vagabundos, todos os habitantes do bairro sabem que terão companhia na derradeira viagem. Dona Benilde também acompanha doenças prolongadas mas é mais por consideração aos familiares do que por vocação. São os funerais que a entusiamam. E fazem-no a tal ponto que é licíto deduzir-se que a dona Benilde terá algum contrato com a morte e que essa será a explicação mais lógica da sua energia geriátrica. Gostaria de falar de outro assunto – a fotografia do homem que foi a grande paixão de dona Benilde – mas, por agora, devo calar-me.
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Um dos meus projectos de vida é ouvir a obra completa de Pierre Boulez mas deus sabe como é difícil encontrar toques polifónicos que lhe façam justiça. Quando os meus amigos falam sobre música clássica eu fico repentinamente cabisbaixo, perco o apetite, o gosto pela vida, pelas mulheres e imagino que ao meu lado está o Jorge Jesus, com o seu penteado táctico, a insistir entre caralhos e foda-ses que o futebol é composto por cinco momentos e que foi ele que descobriu o quinto. Se a conversa fica por Bach eu ainda acompanho, porque há muitos anúncios com músicas dele, porque eu sei que o acrónimo bsw não significa bondage swingers e porque sempre que alguém fala de “A Paixão segundo São Mateus” eu exibo uma expressão facial seguida de um “Sublime!” que convence toda a gente da minha erudição, como se ouvisse Bach desde o berço. Se metem Bartók na conversa eu eclipso-me ou em alternativa dedico-me a descascar amendoins como se à minha espera não estivessem um ou dois amendoins mas a revelação do mistério da existência humana. Eu conheço aquela história segundo a qual “O Outono do Patriarca” tem a mesma estrutura dos concertos para piano de Bartók, mas lamentavelmente esse pedaço de gloriosa criação musical não me inspirou a escrever nenhuma obra digna do Prémio Nobel. Aliás, e não quero sugerir um nexo de causalidade, fui acometido de uma violenta reacção gastro-intestinal, o que ainda não valeu um Nobel a ninguém (o que acontecerá no dia em que o entregarem a Philip Roth). A minha aproximação à música clássica deve-se em grande parte aos filmes que vejo e aos cd’s da Naxos (não é bonita a ideia de centenas de cross-dressers a trabalharem para a Naxos?). A utilização de música clássica nos filmes é quase sempre deprimente, especialmente quando sobreposta à imagem do Willem Defoe a morrer em câmara lenta e com impecável sentido estético na selva do Vietname. Isto para não falar da xaropada pseudo-místico-futurista, pré-new-age com ácidos, que é o 2001. A obra de Kubrick enerva-me e não prometo que não assassino o próximo gajo que, para o elogiar, me fale em “geometria” e “cerebralidade”. Há dias, revi o Eyes Wide Shut, que também tem muita música clássica, que aliás é um filme com muita “classe”, muito “arrumadinho”, e não pude deixar de me rir com aquela cena inicial da boazona pedrada no escritório do Sidney Pollack e parei de ver o filme quando Tom Cruise fuma um charro, a cena mais inverosímil da história do cinema desde que o Danny Glover sobreviveu a uma bomba na sanita. Salvam-se a cena em que o traseiro de Nicole Kidman é filmado num enquadramento digno de Greta Garbo no Queen Christina e a outra em que Nicole limpa o pipi depois de fazer xixi. Meus amigos, isto não é de realizador genial, isto são os últimos desejos de um moribundo que, reconheça-se, teve a generosidade de os partilhar com todos os que apreciam carne dos antípodas.
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A novela Órfãos do Eldorado é a continuação por outros meios das obsessões do escritor brasileiro de ascendência libanesa Milton Hatoum (n. 1952). Em três romances (Relato de um Certo Oriente, Dois Irmãos e Cinzas do Norte), todos distinguidos com o prestigiado Prémio Jabuti, Hatoum delimitou um território privado na ficção brasileira. No cenário físico da Amazónia e no cenário cultural da comunidade de emigrantes libaneses, construiu um mundo de estranhos num local estranho. Com estas coordenadas geográficas e culturais, o leitor incauto pode entrar na obra de Hatoum à procura de tucanos e velhos patriarcas orientais a fumar narguilé. Sairá desiludido. Não que os não haja, mas Hatoum não se deixa prender pelas armadilhas do exotismo amazónico e de um certo oriente idealizado. Os conflitos familiares e os mitos que os envolvem são o seu tema. Através de uma linguagem escorreita e de um conceito clássico de narrativa, Hatoum resgata as suas personagens do pântano do exótico e coloca-os no palco dos temas universais. É isso que acontece em Órfãos do Eldorado, novela que foi convidado a escrever para incluir na colecção Mitos. Respeitando a dinâmica narrativa da novela, o autor integra o mito do Eldorado na história da ascensão e queda da família Cordovil, na primeira metade do Século XX. É a história clássica de um pai “forte” que constrói fortuna e reputação e de um filho fraco que deita tudo a perder. O que lhe confere a aura de tragédia é o facto de o pai ser, de várias maneiras, o responsável pela “fraqueza” do filho. Culpa-o pela morte da mãe (“Tua mãe te pariu e morreu”), entrega-o para ser criado no meio dos mitos que lhe inflamam a imaginação e que acabam por lhe moldar o carácter errático e, sem que o saiba, coloca no caminho do filho a mulher que será a causa da sua perdição. À boa maneira grega, é no caminho para a glória que se lançam as sementes da desgraça. Hatoum semeia presságios (“vais morrer afogado”; “ela não vai ser tua mulher”; vais voltar com o demónio no coração”), carrega os nomes de simbolismo (Arminto, Amando, Edílio, Azário) e incorpora subtilmente mitos de outras paragens. O Eldorado real, o barco do qual depende a fortuna dos Cordovil, naufraga porque o comandante se desvia da rota para ir ver uma amante, talvez atraído pelo canto da sereia. A teia narrativa é arquitectada pela memória do narrador, o filho pródigo Arminto. Com este recurso, Hatoum trabalha uma vez mais a questão da memória enquanto alicerce da sua obra ficcional e, mais importante, dá à novela uma ambiguidade que enriquece a leitura. Contada pelo homem que a viveu e que é considerado louco, a história funde-se com o seu narrador numa amálgama de realidade e de lenda. Órfãos é um transplante bem sucedido para os limites da novela de um universo que, até agora, Hatoum apenas explorara em romances. O maior mérito, porém, não é a coerência, uma característica que pode justificar os mais entediantes monumentos. Hatoum não faz mais do mesmo. Aprofunda e refina aquilo que o distingue: retratos de família universais com a Amazónia em fundo.
Eu nem queria acreditar que à minha frente estava Anatole Melquiades Ovchinikov. A minha geração, como é dever de todas as gerações cosmopolitas, odiava profundamente a geração precedente que, como todas as gerações latinas, se desfazia em ódios intestinos. Coincidiam ambas as gerações no ódio ao surrealismo, ao ensopado de borrego e a essa figura mítica das letras beirãs que era Anatole Melquiades Ovchinikov cujo pseudónimo, Baltazar Rubirosa von Offenbach, nunca teve grande sucesso e não teria ficado para a história não se tivesse dado o caso de a Segurança Social lhe ter atribuído a reforma de Anatole. A Segurança Social desculpou-se com o programa informático obsoleto que também atribuíra uma pensão vitalícia, se é que o termo pode ser aplicado com rigor neste contexto, a Alexandre Herculano. O valor não era pago por cheque nem por transferência bancária. Na primeira 5ª feira de cada mês, um funcionário deixava um saco do Modelo com o dinheiro lá dentro perto de um cruzamento na EN214. Os pormenores desta ocorrência podem ser consultados na "Antologia de Poesia Futurista de Idanha-a-Nova", prefaciada por Amadis Lobo Antunes e recentemente traduzida para russo por Igor Belanov e Svetlana Belanova (ISBN: 900-100-320-89-1). Anatole era o que hoje chamaríamos, algo neo-realisticamente, de desempregado. Isso reflectiu-se na sua obra (vide a qualidade do papel utilizado) e, de forma espectacular, no seu índice de massa corporal. Quando o vi naquela noite, Anatole já estava muito melhor. De acordo com informações recentes, já não vivia da caridade. Tinha o ar superior dos artistas desalinhados das correntes do seu tempo. Era o único romancista que se podia orgulhar de não ter integrado nem o Grupo dos 9 (curiosamente composto por 11 elementos), nem as Brigadas Vermelhas (um grupo de neo-nazis admiradores de Pound e de Effenberg). Desprezava críticos literários e acusava empregados de mesa que serviam ao balcão de falta de personalidade jurídica. Aceitou o prémio Cidade da Moita mas recusou-o assim que descobriu que Moita não era cidade. Ficou com o dinheiro e prometeu devolvê-lo no dia em que Alhos Vedros fosse declarada capital. Por tudo isto, quando vi Anatole Melquiades Ovchinikov, sabia que estava perante o grande génio do nosso tempo, um indivualista radical, um adúltero compulsivo (na verdade, o adultério era uma "cosa mentale", visto que Anatole era solteiro) e um patriota que defecou sobre a bandeira quando a selecção de hóquei em patins acabou em 4º lugar no JO de Barcelona. Não consegui dirigir-lhe a palavra, não me achei digno de tal honra, mas ao passar a meio metro do homem, murmurei um dos seus anti-poemas à la Nicanor Parra: "O fumo sai das prisões..."
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