Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
“Tout au début de la Genèse , il est écrit que Dieu a créé l’homme pour qu’il règne sur les oiseaux, les poissons et le bétail. Bien entendu, la Genèse a été composée par un homme et pas par un cheval”. Talvez Saramago não concorde com esta última frase de Milan Kundera. É esperar para ler o novo romance do nosso Nobel. A frase é retirada de um dos últimos capítulos de “A Insustentável Leveza do Ser” (perdoem-me a paneleirice do francês mas só tenho a edição baratinha da Folio, à qual restará pouco tempo, tal a decrepitude das folhas). Kundera defende que a bondade do homem só se pode manifestar em toda a pureza e liberdade quando é dirigida aos que não o podem ameaçar, aos que lhe são “hierarquicamente” inferiores. Refere-se aos animais. De acordo com esta ideia, a verdadeira crueldade também só se poderia manifestar quando exercida contra animais, contra aqueles que, por decreto divino e humana soberba, estão à nossa mercê. O homem é deus e senhor dos animais. Vive a sua superioridade quando dispõe do destino de uma mosca, de um cão, de uma galinha. Em “Aparição”, Carolino, esse Raskolnikov alentejano, sente uma vertigem de super-homem nietzscheano quando mata uma galinha à pedrada. “O homem é que é Deus porque pode matar”, conclui com lógica imbatível. No livro “O marinheiro que perdeu as graças do mar”, Yukio Mishima descreve a morte de um gato às mãos de um grupo de adolescentes. “Fui eu que o matei. Posso fazer tudo, por mais terrível que seja”. Nestes dois exemplos, a morte do animal é um exercício cruel de superioridade, o treino para o homicídio, o líquido viscoso que serve para encher “as cavernas do tédio”. Kundera reforça esta comparação. Na Checoslováquia, antes de passarem ao alvo humano, os russos organizavam campanhas de extermínio de cães, porque sujavam os passeios, porque eram um risco para a saúde infantil. “Il fallait d’abord l’entraîner contre une cible provisoire. Cette cible, ce furent les animaux”. Quando somos crianças, a crueldade contra os animais é um meio comum de testarmos os limites da nossa humanidade, e quem nunca arrancou as asas a uma mosca que atire a primeira pedra a um pombo. Embora moralmente distintos, são gestos tão humanos quanto os de uma criança que afaga um cão moribundo. As lágrimas que Tereza derrama por Karenina (“Bon Dieu, vous n’allez tout de même pas pleurer pour un chien!”) e o olhar triunfante de Carolino após matar a galinha são os extremos – de bondade e crueldade puras - da nossa humanidade condenada.
“As acusações de nepotismo são tão fáceis de responder que até meu secretário de imprensa, o Gedeão, casado com a mana Das Mercês, e que é um bobalhão, poderia se encarregar disto. Mas eu mesmo o farei. Não, não vou recorrer a subterfúgios e alegar que o nepotismo é antigo como o mundo, existe desde os tempos bíblicos e está mesmo nas origens do cristianismo. Quando Deus Todo Poderoso, que era Deus Todo Poderoso, quis mandar um salvador para a Terra, quem foi que escolheu? Um filho!”
“Sofria de um interminável ressentimento que se manifestava numa laboriosa e agressiva amabilidade”
Jorge Luis Broches seria um bom pseudónimo para Bolaño, um Borges sexualizado.
Inocente, julguei que Zonas Húmidas fosse um livro de Al Gore e nem a primeira frase – “Desde que me conheço que tenho hemorróidas” – me levou a pensar o contrário.
Os prédios eram altos, não todos, só as torres, sete andares, recentes mas gastos, como se a vontade de experimentar uma casa os tivesse corroído, a roupa a drapejar nos estendais, como se em cada casa vivessem dezenas de pessoas, os fogareiros a arder nas manhãs de domingo, os elevadores parados, gente a trepar pelas escadas, gente a expirar o cansaço até ao cimo, até às quatro assoalhadas cheias de mobílias velhas, resgatadas de barracas, fogões de dois bicos, candeeiros a petróleo, caixas de velas para iluminar a vida sem electricidade, homens a exibir a preguiça, homens pré-históricos, de fartos bigodes, crianças ranhosas e mulheres despenteadas a lavar a dura desgraça dos dias nos tanques de pedra nas varandas, sob o sol iníquo das vidas que não se mexem, nem para cima, nem para baixo, imóveis como os elevadores, um luxo morto, os mais ágeis tinham erguido barracas para servirem de garagens, os empreendedores, gente que tinha ido para ali com sonhos de abundância, sem saberem que tinham saído de um buraco mais fundo para outro mais à superfície, um buraco na mesma, onde a vontade de fazer, de ter mais, de não se resignar era ainda mais ridícula como um afogado à beira da praia que não sabe que as ondas nunca o deixarão chegar a terra, faziam e não paravam, em permanente acção, um burguesia esquisita, ignorante de que tudo aquilo, as barracas, as hortas, as obras no interior das casas, eram esforços inúteis para enganar a pobreza, que os assaltava a meio da noite, com os gritos, as festas até às tantas, a merda dos cães nas escadas, ainda não sabiam mas tinham caído naquele buraco para sempre, até ao fim das vidas, não podiam adivinhar que trinta anos mais tarde andariam naqueles passeios, mais civilizados, a passear os netos, os filhos que os viriam visitar em domingos envergonhados, orgulhosos de terem saído do buraco onde os pais tinham caído e fuçado, a ascensão social naqueles olhares de desdém e a piedade natural de quem sobe para os outros que ficaram, mesmo que sejam os pais, é a lei da vida, e não estão assim tão mal, os filhos nunca conseguem compreender as ambições dos pais, olham para trás e vêem-nos ali, imóveis e eternos, no lugar que é o deles, nem mais, nem menos, sem suspeitarem que trinta anos antes os pais chegaram ali, ao buraco, com a esperança de ser uma passagem, um interlúdio de sacrifício numa narrativa épica de ascensão, e tinham demorado uma vida inteira para perceber que aquela era a última estação e os filhos nunca perceberam que tinham subido fincando os pés nos lombos sofridos dos pais e estes com a única réstia de orgulho de disponibilizarem os lombos doridos aos filhos, exibindo os filhos nos cafés, com as mulheres e os maridos que não eram dali, os netos saudáveis e letrados, a crescer em infantários e casas com aquecimento central, a ignorar os avós e aquela pobreza toda de um bairro que haveria de ser sempre um bairro, onde as pessoas todas se conheciam e cumprimentavam como se fossem todos da mesma família, cumprimenta ali aquela senhora que é amiga da avó, os filhos, saudáveis, letrados e bons dentes, eles ali uma vida inteira encavernados mas ali estavam os filhos, saudáveis, letrados e bronzeados, prova de que tinham chegado à superfície, tinham estudado com os filhos dos doutores e agora tinham bons carros, bons dentes e tinham-lhes dado bons netos, que orgulho, a vida de formiga para chegar a ver aqueles netos, o cheiro nauseabundo do bairro, dos cafés de chão cheio de escarros, tudo tinha valido a pena, mesmo demolidas as garagens, mesmo terraplanadas as hortas, tudo valera a pena para chegar a ver aqueles netos que odiavam o cheiro nauseabundo do bairro dos avós, a mesma merda dos mesmos cães nas escadas, meu rico filho, e os filhos e os netos a fugir dali, do buraco, quase asfixiados, desejosos de regressar à superfície das suas vidas de casa própria e centro comercial. Naquela altura, há trinta anos, teriam desprezado quem lhes tivesse dito que trinta anos mais tarde ainda estariam ali a celebrar filhos e netos que os desprezavam ou, os melhores, os toleravam, incrédulos perante a resignação dos pais, desdenhosos dos sacrifícios, ignorando que o pescoço à superfície dependia dos lombos doridos dos pais. Há trinta anos era assim, os que acreditavam que era tudo uma questão de tempo até a vida melhorar e os outros para quem a vida já tinha melhorado tudo o que tinha a melhorar e muito bom seria se não piorasse, eram os que escarravam o chão dos cafés e cujos cães cagavam as escadas dos prédio, a ralé de uma comunidade que era toda ralé, mas que arranjou uma aristocracia, uma burguesia, um povo, porque se a natureza tem horror ao vazio, os seres humanos não vivem sem uma hierarquia, uma escada imaginária que possa ser escalada, desde os degraus cheios de merda de cães às alturas beatíficas, e enquanto uns montavam negócios, padarias e frutarias, oficinas e sapatarias, boutiques e retrosarias, cafés de chão escarrado e mercearias, vende-se fiado, outros ficavam a ver o mundo a avançar, enterrados de merda de cão e dívidas, sem hortas, nem garagens, pobres cada vez mais pobres a ver pobres como eles cada vez mais finos, sem entenderem porquê, a encherem essa ignorância de resentimento e inveja, porque afinal tinham todos chegado ali iguais na miséria e, de um momento para o outro, uns tinham deixado a miséria para trás enquanto outros se afundavam nela, todos iguais mas uns mais iguais do que outros, casas de borla para todos, casas sem portas nem janelas para todos, prédios com elevadores que não se mexiam para todos, casas com tanques para todos e bastaram dois três anos para uns terem portas e janelas de alumínio e outros arremedos de portas e janelas feitos de contraplacado e plástico, prédios com elevadores que começaram a andar para cima e para baixo e prédios em que os elevadores nem para cima nem para baixo, casas em que as máquinas de lavar vieram atirar os tanques de pedra para a colecção de artefactos pré-históricos e casas em que a máquina de lavar foi durante anos e anos um delírio futurista enquanto o tanque se enchia e vazava e enchia e vazava e uma mulher despenteada se esfalfava à torreira do sol a esfregar fraldas de pano cheias de merda e calças do trabalho cheias de óleo e a vida presa nessa nora, às voltas e voltas, nesse mastigar estúpido dos dias, nesse amassar da roupa e dos braços, do corpo inteiro até o sangue saltar do nariz num esguicho, nunca acaba, daqui ninguém sai vivo e olhar para trás sem nostalgia porque agora ao menos as paredes são de cimento e a merda dos cães é mais fácil de lavar das escadas do que da terra em frente das barracas, e enquanto uns tinham chegado ao paraíso e outros esperavam que aquilo fosse o purgatório, havia os outros, os retornados que finalmente conheciam o inferno, rodeados de brancos ressentidos, que temiam essa raça sem terra, os retornados que retornavam a uma terra desconhecida, refugiados que se refugiavam numa terra que os não queria, expulsos de um éden africano pela política dos brancos e pelo ódio dos pretos, mulatos, mulas, híbridos caídos em terra de ninguém muito menos deles.
Não tenho nada contra o ponto de exclamação. Nem a favor. Se algum passar por mim na rua, cumprimento-o. Se me pedir um cigarro, não dou. Mas sou assim com toda a gente e não abro excepções a sinais de pontuação. O movimento contra o ponto de exclamação, iniciado aqui, confundiu-me. Um movimento que se propõe acabar com alguma coisa parece-me de natureza imperativa. Não se sugere o uso moderado do ponto de exclamação, mas o seu extermínio, porque fere a sensibilidade, porque grita, porque é próprio de pessoas sem maneiras, porque é histérico. Grita-se, baixinho, contra o ponto de exclamação: eis o paradoxo! E com tantos caracteres dispensados à excomunhão pública do ponto de exclamação, creio que há por ali qualquer coisa mal resolvida. É o mesmo que estar sempre a falar mal da ex-mulher. Eu desconfio destes ódios. São barquinhos frágeis que seguem obsessivamente na mesma direcção, desfraldam a bandeira do ressentimento mas o que os mantém à superfície é a qualidade do casco e esse é feito de amor. Um amor não correspondido. Todos nós que já quisemos mandar alguém à merda sabemos como dói precisar de um ponto de exclamação e, na sua vez, aparecerem umas reticências nervosas, engasgadas, pusilânimes. Engolimos as reticências, que parecem comprimidinhos, e ficamos com o ponto de exclamação atravessado na garganta. Se esta, ou outra que se lhe assemelhe, é a razão do despeito, sugiro que façam as pazes com o ponto de exclamação. Ofereçam-lhe um ramo de pontos de interrogação, uma caixinha de vírgulas. Se ele não aceitar, e não são poucas as razões para estar magoado convosco, mandem-no à merda e, com um pontapé bem assestado, ponham-no à frente.
Publicado no i
“Tentei – comecei um romance chamado Tempestade sobre Castleford -, mas o herói estava sempre a jogar bilhar e a heroína ficava sentada à beira da cama, sozinha à noite, sem fazer nada. Foi talvez o mais próximo do realismo social que consegui estar.”
Senhora Oráculo, Margaret Atwood, trad. Maria Antónia Vasconcelos
37 seguidores
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.