Autocarros alemães
Falar sobre livros dentro de autocarros alemães adquiridos em 2ª mão revela a perversidade dos habitantes da Margem Sul. O chiar dos pneus, os pedidos de socorro do motor, o persistente sinal sonoro das portas automáticas, supostamente inteligente, mas que teima em ignorar que as portas já se fecharam, o bip de validação dos lisboas vivas e dos sete colinas – e o escarcéu quando a máquina ruboriza um “erro na leitura”, e esta mensagem não é inocente – tudo isto convida a que se fale sobre qualquer coisa menos sobre livros. Gripe A, a diferente viscosidade dos desinfectantes nos edifícios públicos, o Gonçalo que no colégio já tem uma namoradinha, os empregados da Fnac que tão depressa ejaculam considerações sobre o Lobo Antunes como logo a seguir não sabem o preço de um dvd do Spike Lee, as capas dos saltos que mandaram pôr ao senhor Correia há mais de duas semanas – “começa a arrefecer e eu sem as botas” -, os hamburgers do Lidl que até são bem bons, “e então a tua prima, aquela que se estava a separar?”, “há uma gaja lá no trabalho, tu nem vais acreditar”, os brasileiros do rés-do-chão com música aos berros a noite toda, “para a próxima chamo a polícia, juro-te, aquilo é de mais”, as férias que não se gozaram, tantas e tantas coisas sobre as quais se pode falar no interior de um gigante germânico, visivelmente doente e cansado, e há gente que ainda fala sobre livros. Dan Brown e José Rodrigues dos Santos, verdade seja dita, mas livros ainda assim.