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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

09
Out09

Autocarros alemães

Bruno Vieira Amaral

Falar sobre livros dentro de autocarros alemães adquiridos em 2ª mão revela a perversidade dos habitantes da Margem Sul. O chiar dos pneus, os pedidos de socorro do motor, o persistente sinal sonoro das portas automáticas, supostamente inteligente, mas que teima em ignorar que as portas já se fecharam, o bip de validação dos lisboas vivas e dos sete colinas – e o escarcéu quando a máquina ruboriza um “erro na leitura”, e esta mensagem não é inocente – tudo isto convida a que se fale sobre qualquer coisa menos sobre livros. Gripe A, a diferente viscosidade dos desinfectantes nos edifícios públicos, o Gonçalo que no colégio já tem uma namoradinha, os empregados da Fnac que tão depressa ejaculam considerações sobre o Lobo Antunes como logo a seguir não sabem o preço de um dvd do Spike Lee, as capas dos saltos que mandaram pôr ao senhor Correia há mais de duas semanas – “começa a arrefecer e eu sem as botas” -, os hamburgers do Lidl que até são bem bons, “e então a tua prima, aquela que se estava a separar?”, “há uma gaja lá no trabalho, tu nem vais acreditar”, os brasileiros do rés-do-chão com música aos berros a noite toda, “para a próxima chamo a polícia, juro-te, aquilo é de mais”, as férias que não se gozaram, tantas e tantas coisas sobre as quais se pode falar no interior de um gigante germânico, visivelmente doente e cansado, e há gente que ainda fala sobre livros. Dan Brown e José Rodrigues dos Santos, verdade seja dita, mas livros ainda assim.

 
“- ...e aquilo é tudo baseado em factos...(ronco do autocarro)...e depois cada um tira as suas conclusões...muita coisa na igreja que não bate certo com os factos da história...depois cada um tira as suas conclusões...já li esse...(travagem, entra um passageiro, porta de trás abre-se, sai um passageiro, bip do sete colinas, sinal sonoro, portas fecham-se, sinal sonoro continua)...o seguidor de Jesus...o gajo que seguiu a filosofia de Jesus deturpou tudo...São Paulo...(ponto de embraiagem, óleo a pingar para a estrada)...teve uma visão...andava atrás deles e depois deturpou tudo...(paragem, uma mulher entra, arrasta dois sacos de compras e uma criança enfezada)...adorei “A filha do capitão”...(o dinossauro urra ladeira acima)...a Maria Emília candidata-se outra vez? Ganha? Pudera! Não tem adversário à altura...é o Pedroso...(risos)...6ª feira, pá, fim-de-semana outra vez...pois é...(o autocarro resfolegante chega ao destino).”
 
Despedem-se com dois beijinhos. Saio do autocarro e observo com tristeza o mal que fazemos a este Outubro: carros buzinam, megafones berram a esquerda que é esquerda, a esquerda que não desiste, a esquerda que luta e que sonha, coisas que não rimam com Assembleia Municipal; de um lado da rua, azáleas; do outro, palmeiras; mais à frente, um baldio despenteado de capim – como é melancólica a desarmonia botânica dos meus subúrbios. Dan Brown, rogai por nós agora e na hora da nossa morte!
06
Out09

História de um Fratricídio

Bruno Vieira Amaral

 

As pessoas já não se esmurram. Perderam o hábito genuíno de responder com violência às ofensas e aos apoucamentos de carácter. Guardam a vergonha no bolso interior do casaco, com mil cuidados para que não se amarrote, mantêm a ferida viva e quando chegam a casa escrevem um post sobre humilhação, com o título “Humilhação – algumas considerações”. A última vez que me lembro de ver uma discussão resolvida a murro fui eu o receptor do argumento final e o efeito foi tremendo; a discussão terminou ali e eu, embora sem o auxílio do meu maxilar, não tive pejo em reconhecer a superioridade retórica do meu oponente. Toda a gente recorda, mesmo os que lá não estiveram, a famosa “Disputa de Valladolid”, em 1550-1551. O combate opôs Bartolomé de las Casas a Ginés de Sepúlveda, e se os nomes lembram pesos-mosca cubanos e heróis de romances de cavalaria, a verdade é que estes dois espanhóis, pois era esta a nacionalidade dos infames, passaram meses a discutir se os índios tinham alma sem que nenhum dos dois tivesse tido a coragem de partir a boca do outro. No final, como seria de esperar, ambos reclamaram vitória. Alguns séculos depois, García Márquez e Vargas Llosa, duas consequências literárias daquela antiga discussão, consumaram, enfim, a violência anunciada; este encontro de uma face caribenha com um punho andino ficou conhecido como o mais célebre murro da literatura latino-americana. Depois do boom, o bonc! (é uma onomatopeia esquisita para soco, eu sei). O episódio ocorreu em 1976, na Cidade do México, na antestreia de um filme cujo guião tinha sido escrito por Vargas Llosa. Ao ver o companheiro, García Márquez exclamou um eufórico “Irmão!”. Vargas Llosa, menos eufórico mas mais certeiro, respondeu-lhe com um murro que deixou o futuro Nobel quase inconsciente. No cerne do desaguisado não terá estado a existência da alma dos índios mas, segundo consta, o corpo da mulher de Vargas Llosa, cuja existência aparentemente só oferecia dúvidas a García Márquez. Não há certezas. Como numa boa cena de um mau western, o peruano terá acompanhado o murro de uma justificação pouco clara: “Isto é pelo que disseste à Patricia” ou “Isto é pelo que fizeste à Patricia”. Dito ou feito, na forma tentada ou verbalizada, o atrevimento valeu a García Márquez um inquestionável murro, com direito a um lugar eterno nas discussões entre intelectuais hispânicos. E Vargas Llosa provou que também com os punhos se fala bom castelhano.
 
O famoso episódio é narrado, sem novidades, na biografia de GGM, de Gerald Martin.
02
Out09

Honra o teu pai

Bruno Vieira Amaral

Inferno é uma palavra vazia que só se enche de horror na noite em que ouves as balas por cima da tua cabeça, e pensas na tua mãe, mãezinha, caralho, quem me mandou vir para aqui morrer?, e rezas sabes lá a quem, e encolhes-te muito, pode ser que a morte passe e tenha piedade de um insecto e leve outro, um homem, e não é que resulta?, ali está um de miolos no chão, valente soldado, mercenário valente, e o mais triste é que eu nem sabia o nome dele, porque a primeira coisa que fazem quando chegamos é mudar-nos o nome e depois fazem de nós homens, sem nome mas homens, para combatermos como homens e morrermos como homens, mas ninguém morre como homem, morremos todos como crianças, cagados, meu filho, literalmente cagados, e quando tudo acabava, quando acabavam os tiros, quando as explosões acabavam, quando acabavam os inimigos e os companheiros acabavam, no fim de tudo acordavas, o terror aturdido de alguém que desperta de uma anestesia e olha para as pernas para ver se não lhas amputaram, e olha para os braços e tem os dois, e vê o tórax, o abdómen, está completo, graças a Deus, não lhe falta nada, um homem inteiro, coisa assombrosa é um homem pleno, e levantavas-te e andavas, saías dali recém-renascido e dois meses depois estavas na Bósnia e caminhavas por uma estrada lado a lado com os teus companheiros, os homens sem nome, e na curva da estrada viam um autocarro, abrandavam o passo, enquanto se aproximavam só se ouvia o som das botas na terra, os pulmões com um mínimo de ar, e então viam os corpos decepados, torcidos, o esgar canino, as bocas entreabertas que deixavam ver os dentes de leite escurecidos pelo sangue seco.

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