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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

21
Nov09

Conversa n'A Catedral

Bruno Vieira Amaral

 

 

Publicado no i
 
Quarenta anos depois da publicação de Conversa n’A Catedral, o magistral romance de Mario Vargas Llosa, a pergunta que surge logo na primeira página ainda ecoa como senha do desencanto: “Em que altura se tinha fodido o Peru?” É o Abre-te, Sésamo que dá acesso à autópsia de uma sociedade sob o jugo da ditadura. Uma nação falhada é um cadáver gigantesco composto por milhares de fracassos individuais, de ricos e de pobres, de intelectuais e de camponeses, de brancos, de negros e de mestiços. E há sempre os vermes para os quais o corpo putrefacto é um festim.
 
Apesar de retratar uma ditadura, Conversa n’A Catedral não se insere no género latino-americano de romance de ditadores. Aqui, o ditador (o General Odría que governou o Peru entre 1948 e 1956) é uma sombra tutelar, uma ausência omnipresente. Odría é a emanação provisória do regime e dos interesses que o sustentam: “Bom, enquanto conseguirem mantê-los satisfeitos, eles apoiarão o regime. Depois arranjam outro general e põem-nos fora. Não tem sido sempre assim no Peru?” Vargas Llosa desvia-se do tema do exercício solitário do poder absoluto e centra-se na descrição da ditadura enquanto sistema. O fundamental é a descrição dos mecanismos de controlo e repressão, dos bastidores onde se unem as pontas soltas dos interesses, das encenações em que o poder se celebra. Um ambiente propício ao cínico, pragmático e maquiavélico Cayo Bermúdez, cérebro e Cerbero do regime, eminência parda que rapidamente se transforma na peça essencial do jogo do poder. Enquanto Bermúdez, homem endurecido pela miséria e pelo orgulho, nunca teve ilusões, Santiago Zavala, outro dos personagens centrais do romance, perdeu-as antes de chegar aos 30 anos. Menino bem, filho de um dos apoiantes e cúmplices do regime, Zavalita renuncia aos privilégios de classe e à protecção da família para também ele falhar, apenas com o parco consolo de o fazer pelos próprios meios. É Zavalita que, anos mais tarde, conversa n’A Catedral, uma tasca de Lima, com o negro Ambrosio, ex-motorista do pai e de Cayo Bermúdez. Juntos, tentam perceber o que os levou até ali. Essa longa conversa, que atravessa todo o romance, é a trave mestra da assombrosa obra de engenharia narrativa que é Conversa n’A Catedral. Ao leitor é exigida uma participação atenta na construção do enredo e da complexa teia com dezenas de personagens, constantes saltos temporais e diálogos que se cruzam numa dinâmica caleidoscópica.
 
A cidade de Lima, mortiça e suja, surge como sinédoque da sociedade peruana: dos bairros finos aos bairros de lata, dos palácios do poder às tascas esconsas, dos clubes reservados às casas de má fama, tudo sob a mesma cacimba mole que leva Zavalita a concluir que, como tudo o resto, “até a chuva estava fodida neste país; se ao menos chovesse a cântaros”. E a pergunta inicial fica sem resposta. O que separa a descoberta do amor da desilusão conjugal, os ideais revolucionários da resignação política, o curso de Direito de um trabalho medíocre, as virtudes públicas dos vícios privados, um país próspero de uma nação miserável, não é um único momento isolado. É a vida. Triste. Cinzenta. Fodida.
20
Nov09

Jesus

Bruno Vieira Amaral

A igreja não está cheia. São nove e um quarto da noite, quarta-feira, as ruas luzidias como a carapaça de um insecto, as nossas cidades são tristes a esta hora, a luz lúgubre das tascas, os restaurantes com poucos clientes, os empregados que assomam à porta, o cheiro morno da chuva, um táxi solitário na praça. Um homem entra na igreja, esfrega as mãos, sorri, “arrefeceu mesmo, caramba”, duas raparigas à entrada servem café em copos de plástico, bolachas, a velha Dolores lê a Bíblia, cabeceia de sono ou do cansaço da velhice, os miúdos correm entre as filas de cadeiras, “parem quietos”, alguns sem-abrigo já se habituaram a vir ali, a fome pode mais do que a fé, às vezes ficam para o culto, alguns já aprenderam os hinos e acompanham os louvores com as vozes cavas do desespero, depois desaparecem na noite,

 

A testa luzidia de suor, um sorriso beatífico que se derrama sobre toda a sala, uma garagem transformada em igreja, lâmpadas fluorescentes no tecto, ao fundo uma cruz sem Cristo, que abraça cada um dos presentes, famílias inteiras, crianças de colo, viúvas, homens sombrios e acabados à procura de consolo, de início não tinha condições, um barracão escuro, mas as pessoas juntavam-se ali, o pastor era tão bom, e as coisas que dizia tocavam-nos o coração, nunca mais quero outra igreja, um adolescente de óculos toca uns acordes lentos na guitarra com autocolantes “Jesus ama-te”, o pastor, lenço premido contra a face, desce do púlpito improvisado, aproxima-se de um homem sentado na última fila, incógnito, levanta-o, olha-o com bondade, tanta bondade não pode ser humana, o homem resiste, há anos que não sente aquele calor, o homem soçobra, chora, o peito sacode-se em convulsões, abraça-se ao pastor, ajoelha-se, as lágrimas, o pastor segura-lhe a cabeça, a música sobe,

 

Joaquim perdeu o filho e a mulher num acidente, tinham uma vida tão boa, ele meteu-se na bebida, as mãos tremiam-lhe, a mãe é que lhe dizia sempre para ele ir à igreja, o pastor é tão bom, filho, tens de lá ir, e ele com raiva, amaldiçoa o teu Deus e morre, e bebia mais, e morria mais, a dor tão funda que não aguentava, tremia todo, e o pastor, tanta bondade, tanta bondade, quem encheu o coração deste homem de tanta bondade, bondade que transborda, o pastor abraça-o, não sofras mais, ampara a cabeça daquele homem que chora como uma criança, entrega a tua vida a Jesus, tanta alegria, o filho e a mulher ao lado dele, pensei que nunca mais vos via, que alegria, descansa o teu coração em Jesus, confia n’Ele, a música, uma das raparigas canta, os olhos fechados, um anjo, o pastor leva Joaquim até ao púlpito, Joaquim olha para os rostos, lágrimas, tanta felicidade, ele cambaleia, dobrado, agarrado ao pastor, tanta gratidão, tanto amor, uma oração, Vamos dar graças ao Senhor, vamos agradecer pela vida do Joaquim, o nome dele dito assim, era outra vez alguém, queria tanto aquele amor, para que ele entregue o seu sofrimento, vamos pedir-Lhe que alivie o coração deste homem do fardo que tem carregado sozinho, não, nunca mais, senta-se no chão, chora, baba, ranho, lágrimas, deita-se, chora e ri ao mesmo tempo, a mulher e o filho ali, tão perto dele.

12
Nov09

Grande Ave Negra

Bruno Vieira Amaral

 

Fraqueza não gripal atirou-me para a cama. Não é que me tenha atirado, eu é que me fui deixando ficar, Novembro a arrefecer, o rádio do vizinho que não se cala dia e noite (ontem, duas da manhã, “ai que sarilho / ser pai dum filho”), The Wire no Mov, deixa lá ver isto, duas cenas, à terceira um preto beija um mulato, ambos gangstas, estas coisas só nas séries da HBO, o mulato, filho da cobra, é bichona, bichinho, quer que o preto o coma, corte para outra cena, adormeço. Lembro-me do Lito. Preto, um metro e oitenta, olhos grandes de gazela, bom corpo, ademanes, entrava no café rodeado de um séquito felliniano, um mulato baixinho, magro, sem um dos dentes da frente, ria-se e ocultava o buraco com a língua, estava ali para se rir das palavras do Lito, uma ou duas putas, cabelos oxigenados, dentição ruim, perfumadas até à náusea, à mesa transfiguravam-se, seguravam os talheres como princesas, comiam de boca fechada, levavam o copo de vinho à boca como descendentes dos Bourbon, um branco gordo, vermelho de futuras apoplexias, inchado de digestões demoradas, sub-empreiteiro, ford transit às seis e meia da manhã a dar a volta para pegar cabo-verdianos, comia que nem um porco, na quantidade – grande – e nos modos – nulos. No meio, iridescente, Lito, o Rei-Sol negro, saca de um maço de notas, cigarro ao canto da boca, exibe-o com o despudor dos ex-pobres, gargalha como uma grande ave negra e bêbeda, uma grande ave fêmea, capaz de gestos lábeis e fúrias tremendas: “Ouviu, ó, Sr. Teixeira? Ponha na conta. Não faça essa cara, porra! Alguma vez lhe fiquei a dever? Diga lá! Alguma vez aqui o Lito lhe ficou a dever?” E a trupe contorcia-se de riso, o gordo à beira de rebentar, o Lito a brandir um maço de notas e a dizer ao homem para pôr na conta, este Lito, pá, tem cada uma, e o Lito olhava-os malandramente, e eles, os acólitos, riam, empanturrados de pão e febras, “Que merda de febras são estas, ó, Sr. Teixeira? Sirva lá comida como deve ser!”, e uma vez quando o Teixeira exigiu pré-pagamento, os pratos, a mesa, os copos, foi tudo pelos ares, os outros calaram-se, o Sr. Teixeira, com a raiva muda dos mansos, a olhar para aquilo, o Lito a chegar ao pé dele, narinas enfunadas, os olhos cheios de sangue e ódio, a lançar o bafo na cara do velho, que tentava afastá-lo timidamente pondo-lhe as mãos na cintura, “Já lhe fiquei a dever alguma coisa, caralho?”, com a cara quase encostada, silêncio, o Lito pega num cinzeiro e atira-o contra as prateleiras, duas ou três garrafas para o chão, meu deus, o desânimo do Teixeira, a impotência dele, o olhar cheio de súplicas aos outros clientes, que faziam que não viam, e quando ele pensava que o Lito ia saltar para cima dele como uma hiena, o Lito, a grande ave negra, grande Ava negra, desata numa gargalhada histriónica, exagerada, abraça-se ao Teixeira, beija-lhe a testa, “Ó, Teixeira, desculpa lá esta confusão, eu pago tudo”, sempre a rir, a mão a tactear os bolsos, tira as notas, o Teixeira a querer apanhar os cacos, “Deixa lá isso, nós já apanhamos tudo”, sorri a medo, ainda assustado, uma criança velha, era o que ele parecia. Acordo. Tiros no The Wire, Novembro mais frio, rádio do vizinho (três da tarde, “casei com uma velha / da Ponta do Sol”).
08
Nov09

Sabedoria Popular

Bruno Vieira Amaral

 
Publicado no i
 
Há várias maneiras de um escritor, escreva bem ou mal, se destacar: uma polémica, um prémio, a morte. Felizmente, a fama de João Ubaldo Ribeiro no nosso país deve-se apenas às duas primeiras. Pela via de uma polémica de hipermercado ou pela via do Prémio Camões, o que interessa é chegar à obra de Ubaldo Ribeiro, um dos maiores prosadores da língua portuguesa. O Albatroz Azul serve de confirmação.
  
Livro entre um começo e um fim, este romance é uma reflexão sobre a continuidade, sobre aquilo que herdamos e aquilo que nos preparamos para deixar aos que vêm depois de nós. A história começa no dia do nascimento do neto de Tertuliano Jaburu, um velho sereno “que goza de familiaridade com os seres, visíveis e invisíveis.” Tertuliano é o único que sabe, contra todas as evidências e augúrios, que vai ter um neto homem. Este futuro avô vê o nascimento do neto como uma derradeira oportunidade concedida pelo destino: a sua missão é “preparar as glórias do seu grande neto, o que em si, já continha sua própria glória” e garantir que nenhuma imprudência na hora do parto comprometa o futuro do neto, que antevê glorioso. Após o nascimento auspicioso da criança, que até nasce de rabo virado para a lua, Tertuliano sente-se renovado. Porém, uma conversa com um amigo, que o recorda de acontecimentos nefastos que marcaram a sua vida, lança nuvens no dia radioso. Então, numa longa analepse, ficamos a conhecer a história da família de Tertuliano e da ferida funda que, ao longo dos anos, aprendeu a domar mas que nunca soube cicatrizar. E, no tempo que vai do júbilo pelo nascimento ao doloroso remoer das memórias, Tertuliano adquire a certeza pacífica de que a sua hora final está prestes a chegar.
 
Ubaldo Ribeiro faz um elogio da sabedoria popular e das suas expressões: tradições, superstições, crenças e provérbios. Por exemplo, o saber empírico da parteira Altina, que havia pilotado mais de três mil partos, é mais valorizado do que a ciência de “medicastros de merda”. Tertuliano pensa que o “saber coisas demais termina por prejudicar a noção” e apesar de acreditar em Deus nunca foi “de igreja, nem de padre, nem de freira, nem de missa.” Os anos de convívio simples e atento com as coisas do mundo ensinaram-lhe mais do que os livros, os latinórios dos padres e as manhas dos advogados. Nenhum deles pode ensiná-lo a ouvir uma pedra. Dentro deste conceito de filosofia natural, deste panteísmo tropical, quase caeiriano, a linguagem das personagens desempenha um papel fundamental. É ela que, ao mesclar arcaísmos, regionalismos e expressões populares, define as personagens.
 
Ubaldo Ribeiro aproveita os matizes populares para caracterizar as personagens, mas a sua prosa é pródiga em recursos que denotam um conhecimento profundo da variante literária da língua, do Padre António Vieira a Guimarães Rosa. Do estilo mais directo dos dois romances anteriores (A Casa dos Budas Ditosos e O Diário do Farol) Ubaldo Ribeiro passa para um barroquismo elegante, numa demonstração da amplitude do seu talento. Um talento que merece estar acessível a todos os leitores, inclusive os de hipermercado.

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