Os Bons Selvagens
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“Virão depois as ásperas palavras do seu filho, quando um dia o avisam da visita de sua mãe e dos irmãos e ele responde: «Quem é minha mãe e quem são os meus irmãos?». E estendida a mão para os seus discípulos disse: «Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem tiver feito a vontade do meu pai que está nos céus, esse é meu irmão, irmã, mãe» (Mt 12, 48-50). Também aqui Maria cala e sofre aquela forma amarga de negação: «Quem é a minha mãe?». A sua mãe é aquela que permanecerá ao seu lado quando mesmo os mais fiéis discípulos se dispersam, aquela que estará aos pés da sua agonia, obrigada a assistir e a sobreviver ao suplício de um filho condenado à morte.”
Caroço de Azeitona, Erri De Luca, trad. João Pedro Brito
"Chegou o dia e saí num cavalo ético e melancólico, o qual, mais de manco que de bem criado, ia fazendo reverências. As ancas eram de macaco e sem rabo; o pescoço de camelo e mais comprido; torto de um olho e cego do outro; quanto a idade não lhe faltava mais que fechar os olhos; enfim, mais parecia cavalete de telhado que cavalo, pois a ter uma gadanha, lembrava a morte dos rocins. Demonstrava abstinência no seu aspecto, e bem se lhe viam as penitências e jejuns, nunca tinham chegado à sua notícia a cevada e a palha."
O Buscão, Francisco de Quevedo, trad. João Palma-Ferreira
Continuação deste post.
A impaciência do senhor Teixeira aumentou com as primeiras queixas dos clientes. Enquanto a exigência do Zé Lopes se poderia atribuir à debilitada condição física, à irritação provocada pela dificuldade de se fazer compreender, outros clientes não beneficiavam aos meus olhos de tais atenuantes. Muito embora tivessem conta aberta no café, o que significava que as bicas bebidas, os SG filtro sofregamente chupados até ao caramelo, as colas e os chocolates com que atafulhavam as crias, só seriam pagos no fim do mês, isso não os desencorajava de reclamar. Pelo contrário, o absurdo nível de exigência era sustentado não pelo argumento do muito que pagavam, mas do muito que deixariam por pagar. Entre os frequentadores assíduos que recorriam ao sistema da conta aberta, destacava-se um casal de bicómanos. O tipo era educado, decente e coxo. A mulher era nervosa e, como muitas mulheres do bairro que se julgavam merecedoras de mais do que a merda de vida que lhes coubera em sorte, propensa à indignação. O esforço que despendia a ocultá-la era a causa do ar macilento, dos lábios secos e gretados, da pele baça e do cabelo ralo. Ou talvez fosse fígado. Eu tomava nota da despesa diária num bloco de notas, discriminando artigo e valor. Depois, um dos elementos do casal conferia e assinava. No final do mês, juntavam-se os talões e a dívida era saldada. Conquanto não tivesse sido esse o nome dado à pia, o homem era conhecido por Beto, suponho que diminutivo de Alberto, e era assim que eu o identificava no talão de despesa. Ora, esta minha escolha, que nem escolha era, causava um profundo incómodo na mulher. Convencida de que o emprego do diminutivo era acintoso, como se ao fazê-lo eu não só diminuísse o Alberto mas também o homem, o marido e o pai, a mulher fazia questão de corrigir a minha insolência antepondo ao Beto um maiúsculo e inquestionável SENHOR. SENHOR Beto. Devolvia-me o talão sem me prodigalizar um olhar, um agradecimento. Pelo que percebi, a senhora terá sido das primeiras a queixar-se de mim ao senhor Teixeira. Outras queixas se seguiram. Não sem justiça, apontavam a minha falta de jeito e de presteza. Outras, maldosamente, sugeriam a minha desonestidade. Se as primeiras incomodavam o senhor Teixeira, estas arruinavam-lhe os nervos. Confiava ele que a solução para as minhas falhas decorrentes da inexperiência seria o tempo e a prática. Os mesmos tempo e prática que, a confirmar-se a minha desonestidade, só serviriam para lhe aumentar o prejuízo. Desconfiado e oblíquo como era, o senhor Teixeira nunca me acusou de qualquer comportamento menos sério. Ao invés, procedia a indagações que, na sua mente mesquinha, considerava subtis. A voz, normalmente aguda, cheia de fendas, transformava-se num ciciar melífluo de falsa amabilidade e partilhava casos exemplares de antigos empregados que apanhara em falso e das consequências trágicas que sobre eles se abateram. Um educador da classe, o meu patrão. Para além de me explorar, tinha ao serviço mais duas empregadas, uma das quais era voz corrente que lhe disponibilizaria mais do que uma indesmentível capacidade de trabalho. A outra era uma senhora cabo-verdiana de voz meiga, prole vasta e marido reformado por invalidez, embora outra não se lhe descortinasse que não a pura indolência. Chamava-se Armanda. Calma e contemplativa por natureza, reagia com condescendência à desconfiança indiscriminada do Sr. Teixeira. A outra empregada era a Isa. Era uma mulher de trinta e tal anos, mãe de sete e casada com um indivíduo que se dedicava ao trabalho de forma algo intermitente. Era magra mas de uma magreza que de modo algum poderia ser confundida com elegância, sendo antes o resultado das duras condições de vida, para as quais não contribuía pouco uma sogra de telenovela. As qualidades de Isa eram reconhecidas e apreciadas: enérgica, despachada, sem medo de trabalhar e com aquela pontinha de ambição que parecia afirmar que não seriam os sete filhos, o marido imprestável e a impossível sogra a impedi-la de subir na vida se e quando a oportunidade se lhe deparasse. Depois de fazer oito horas no café, lavava escadas de prédios a 600 escudos à hora e, no único dia de folga, ainda servia a dias na casa de velhotas reformadas a precisar de quem lhes engomasse a roupa. Quando eu fui trabalhar para o café, a Isa já abdicara destes serviços extra, o que motivou os primeiros falatórios que também não ignoravam uma ligeira, porém firme, mudança no seu comportamento, sobretudo quando na presença do Teixeira. A antiga humildade dera lugar a uma altivez de patroa. Mas o tempo passou e as conversas extinguiram-se. Nas traseiras do café, ficava o armazém onde, para além de grades de bebida, havia uma pequena cama de ferro sobre a qual se acomodava um colchão o seu tanto pestilento, supostamente destinada ao descanso vespertino do Senhor Teixeira. Em várias ocasiões, o patrão regressava do armazém com uma disposição renovada e um bom humor inusual. A mudança era tão brusca e inopinada que, durante anos, e mesmo depois de tudo o que veio a acontecer, eu jurei pelas propriedades curativas da sesta.
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A Volta ao Dia em 80 Mundos é o melhor livro para se entrar no universo do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984). E é também o pior. É o melhor porque este caleidoscópio vertiginoso, publicado em 1967, reúne ensaios e contos, poemas e crónicas, e maravilhas de ourivesaria como Louis, Enormíssimo Cronópio. É o pior porque esta máquina enciclopédica, em que vamos viajando através dos 80 ou mais mundos de Cortázar, pode desanimar o leitor menos persistente. Não se esperem, portanto, facilidades do encontro com a obra de Cortázar.
O título pode criar no leitor uma expectativa de paródia ou de gracejo erudito. Depois das primeiras páginas, este leitor terá perdido toda a vontade de tratar Cortázar por che. É que, ao contrário de O Jogo do Mundo (Rayuela), este livro não vem com manual de instruções. Sugerimos, pois, que o leitor inicie a abordagem ao livro por territórios reconhecíveis e onde a mão de Cortázar sempre foi mais feliz: os contos. Tema para São Jorge, Com Legítimo Orgulho e A Carícia mais Profunda são óptimos preliminares para o deleite futuro. O primeiro trata de López, um ergófobo que em todos os locais de trabalho encontra um monstro feito dos hábitos do escritório; o segundo relata a história de uma comunidade cujo espírito gregário assenta na antiga tradição de recolher as folhas secas; o terceiro conto é kafkiano do início ao fim, a história de um homem que se afunda no chão, a cada dia que passa cada vez mais, sem que as pessoas à sua volta se dêem conta do facto. Nestes contos exemplares da arte de Cortázar, o fantástico não é o avesso do real, um mundo invisível habitado por entes sobrenaturais; é aquilo que paira no ângulo morto da realidade. O monstro que só é visto por López e o homem que se afunda no chão sem que ninguém repare não são menos monstruosos, fantásticos e absurdos do que a anestesia do quotidiano que impede que os outros os vejam.
Feito o tirocínio, saciado o desejo de leitor-fêmea (Cortázar haveria de corrigir esta expressão para leitor-passivo), é altura de avançar. A Volta ao Dia em 80 Mundos, como bom labirinto de um escritor com apetência para o jogo, tem muitas entradas: a paixão pelo boxe e pelo jazz (Thelonious Monk e Clifford Brown), o fascínio da voz de Gardel ouvida na grafonola, a contaminação da memória pela imaginação (Acerca da maneira de viajar de Atenas a Cabo Súnion), o presente e o futuro da literatura latino-americana ou o grave problema que os argentinos enfrentam para iniciar uma carta (Querido Amigo, estimado, ou o nome sem mais). Esta última entrada é uma emanação directa do sol que está no centro do universo de Cortázar: o humor. Um humor com a cara de Buster Keaton, um sol com raios de melancolia. Um humor que nos resgata da seriedade bolorenta e fúnebre que alguns escritores, mais propensos à metafísica e à solenidade, confundem com a grande literatura. Cortázar fustiga-os. “Por que diabos existe entre a nossa vida e a nossa literatura uma espécie de «muro da vergonha»?” Uma questão dirigida aos escritores argentinos da altura, mas que, a 40 anos de distância e no periférico mundo das letras portuguesas, não perdeu utilidade.
O post anterior sofre de uma imprecisão (talvez mais do que uma, mas esta eu posso identificar). O conto de Daphne du Maurier não decorre durante a guerra, mas no período do pós-guerra. Apesar disso, a leitura do conto enquanto uma alegoria das angústias e dos temores provocados pela guerra permanece válida. Deixo apenas alguns trechos do conto:
"Fez-lhe lembrar tempos passados, no início da guerra. Ainda não era casado e tinha feito todos os painéis de madeira para o blackout na casa da mãe em Plymouth. Também construíra o abrigo. Não é que tenha servido de grande coisa, quando chegou a hora."
"Na vila dizem que foi obra dos Russos. Que os Russos envenenaram os pássaros."
"Porque é que as autoridades não fazem alguma coisa? Por que não chamam o exército, arranjam metralhadoras, qualquer coisa?"
"A programação habitual fora interrompida. Isto só acontecia em ocasiões em excepcionais. Eleições, coisas assim. Tentou recordar-se se isso acontecera no tempo da guerra, durante os intensos bombardeamentos de Londres."
"As forças reagrupavam-se. Não era assim que chamavam a isso, nos velhos noticiários do tempo da guerra?"
Contos, Daphne du Maurier, trad. Margarida Periquito (funny, isn't it?)
O primeiro Mendonça do Amaral que a historiografia regista ficou para a posteridade como barão, mas teve os mais modestos começos como ladrão de galinhas e de toda a sorte de legumes. O primeiro documento a referir Mendonça do Amaral omite a forma como terá enriquecido, mas inscrições em lápides, entre outra documentação menos fiável, apontam no sentido de extorsões diversas e um outro rapto sem consequências gravosas para as vítimas. A respeitabilidade de Mendonça do Amaral cresceu ao ritmo da fortuna. Os amigos dos primeiros tempos afastaram-se, certamente por falta de calçado adequado, e os inimigos, se alguma vez os houve, ou ascenderam a amigos ou tornaram ao pó, tal como as Sagradas Escrituras nos garantem que sucederá a todo e qualquer homem, por muita influência que este tenha no Ministério das Obras Públicas. Da casa, e respectivas adjacências, incluindo um barracão onde era guardada a lenha, de Mendonça do Amaral, brotou uma casta inigualável de ilustres varões, todos eles guerreiros ferozes que, por acasos da História que lhes não podem ser atribuídos, jamais tiveram o ensejo de alardear a inequívoca coragem no campo de batalha. Ao longo de três gerações, os Mendonça do Amaral destacaram-se por cultivar uma enérgica inimizade com os livros, facto mais do que comprovado pela vastíssima biblioteca de que eram proprietários. Até que nasceu Artur Mendonça do Amaral e aquele venerável nome, cuja glória inicial se alicerçou em pilhagens e delações, roubos e chantagens, foi destruído a golpes de putas nada sérias e de croupiers ominosos. O génio de Artur, asseveram todos os que com ele travaram conhecimento, era essencialmente verbal. Um talento cruelmente cerceado pelos infortúnios de uma gaguez contraída na primeira infância e do analfabetismo hereditário. Se assim não fosse, talvez hoje o querido esqueleto de Artur repousasse sob a egrégia sombra dos Jerónimos em vez de jazer esquecido no cemitério de T., arredores de Coruche, ladeado, como Cristo, por dois populares gatunos, ambos assassinados pela fúria de um caseiro à renda do qual procuraram subtrair galinhas e legumes.
A teoria mais recorrente quando se trata de fazer uma segunda leitura ou interpretação de um filme ou de um livro é a do aquilo-não-passa-de-um-sonho. Simples. Os filmes de David Lynch não passam de um sonho, Vertigo não passa de um sonho e Fuga para a Vitória não passa de um sonho. Ora, para mim, Avatar é que não passa mesmo de um sonho. O filme, como é óbvio, é sobre a Guerra do Iraque. Jake Sully fica sem as pernas e, de acordo com a minha teoria, o filme começa precisamente nesse momento. A partir daí, é tudo uma alucinação de Sully (plantas fluorescentes, uma tribo de alienígenas azuis – o verde está fora de moda, cães que se parecem com os dobermans dos pesadelos, seres que se unem através de uma coisa bastante parecida com fibra óptica). Num estado de inconsciência, de semi-vigília, Sully é assaltado por preocupações e memórias: a recuperação da mobilidade, a relação difícil com o superior, o sentimento de culpa e Danças com Lobos. Sully, que se encontra numa situação física extremamente precária, sonha-se herói e até voa montado num bicho grafittado na Amadora. É sempre ele a delirar. Criado em roulottes por um casal de hippies (a minha interpretação tem uma dimensão genealógica), Sully renega a família e o consumo de marijuana quando se alista no exército. É este sentimento de culpa que, no momento em que perde as pernas, o faz imaginar uma tribo muito new age, em harmonia com o universo, a viver numa árvore e com rituais místicos próprios de quem passou uma boa parte da vida metido em ácidos e a ouvir Helter Skelter. No fundo, Sully é um hippie imperialista, um oxímoro que o torna propenso ao fenómeno que afecta Douglas Quaid em Desafio Total (baseado num conto de Philip K. Dick): embolia esquizóide. Os efeitos 3D são excelentes mas só reforçam a minha teoria. Fui.
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