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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

20
Jan10

Azares

Bruno Vieira Amaral

Continuação deste post.

 

A impaciência do senhor Teixeira aumentou com as primeiras queixas dos clientes. Enquanto a exigência do Zé Lopes se poderia atribuir à debilitada condição física, à irritação provocada pela dificuldade de se fazer compreender, outros clientes não beneficiavam aos meus olhos de tais atenuantes. Muito embora tivessem conta aberta no café, o que significava que as bicas bebidas, os SG filtro sofregamente chupados até ao caramelo, as colas e os chocolates com que atafulhavam as crias, só seriam pagos no fim do mês, isso não os desencorajava de reclamar. Pelo contrário, o absurdo nível de exigência era sustentado não pelo argumento do muito que pagavam, mas do muito que deixariam por pagar. Entre os frequentadores assíduos que recorriam ao sistema da conta aberta, destacava-se um casal de bicómanos. O tipo era educado, decente e coxo. A mulher era nervosa e, como muitas mulheres do bairro que se julgavam merecedoras de mais do que a merda de vida que lhes coubera em sorte, propensa à indignação. O esforço que despendia a ocultá-la era a causa do ar macilento, dos lábios secos e gretados, da pele baça e do cabelo ralo. Ou talvez fosse fígado. Eu tomava nota da despesa diária num bloco de notas, discriminando artigo e valor. Depois, um dos elementos do casal conferia e assinava. No final do mês, juntavam-se os talões e a dívida era saldada. Conquanto não tivesse sido esse o nome dado à pia, o homem era conhecido por Beto, suponho que diminutivo de Alberto, e era assim que eu o identificava no talão de despesa. Ora, esta minha escolha, que nem escolha era, causava um profundo incómodo na mulher. Convencida de que o emprego do diminutivo era acintoso, como se ao fazê-lo eu não só diminuísse o Alberto mas também o homem, o marido e o pai, a mulher fazia questão de corrigir a minha insolência antepondo ao Beto um maiúsculo e inquestionável SENHOR. SENHOR Beto. Devolvia-me o talão sem me prodigalizar um olhar, um agradecimento. Pelo que percebi, a senhora terá sido das primeiras a queixar-se de mim ao senhor Teixeira. Outras queixas se seguiram. Não sem justiça, apontavam a minha falta de jeito e de presteza. Outras, maldosamente, sugeriam a minha desonestidade. Se as primeiras incomodavam o senhor Teixeira, estas arruinavam-lhe os nervos. Confiava ele que a solução para as minhas falhas decorrentes da inexperiência seria o tempo e a prática. Os mesmos tempo e prática que, a confirmar-se a minha desonestidade, só serviriam para lhe aumentar o prejuízo. Desconfiado e oblíquo como era, o senhor Teixeira nunca me acusou de qualquer comportamento menos sério. Ao invés, procedia a indagações que, na sua mente mesquinha, considerava subtis. A voz, normalmente aguda, cheia de fendas, transformava-se num ciciar melífluo de falsa amabilidade e partilhava casos exemplares de antigos empregados que apanhara em falso e das consequências trágicas que sobre eles se abateram. Um educador da classe, o meu patrão. Para além de me explorar, tinha ao serviço mais duas empregadas, uma das quais era voz corrente que lhe disponibilizaria mais do que uma indesmentível capacidade de trabalho. A outra era uma senhora cabo-verdiana de voz meiga, prole vasta e marido reformado por invalidez, embora outra não se lhe descortinasse que não a pura indolência. Chamava-se Armanda. Calma e contemplativa por natureza, reagia com condescendência à desconfiança indiscriminada do Sr. Teixeira. A outra empregada era a Isa. Era uma mulher de trinta e tal anos, mãe de sete e casada com um indivíduo que se dedicava ao trabalho de forma algo intermitente. Era magra mas de uma magreza que de modo algum poderia ser confundida com elegância, sendo antes o resultado das duras condições de vida, para as quais não contribuía pouco uma sogra de telenovela. As qualidades de Isa eram reconhecidas e apreciadas: enérgica, despachada, sem medo de trabalhar e com aquela pontinha de ambição que parecia afirmar que não seriam os sete filhos, o marido imprestável e a impossível sogra a impedi-la de subir na vida se e quando a oportunidade se lhe deparasse. Depois de fazer oito horas no café, lavava escadas de prédios a 600 escudos à hora e, no único dia de folga, ainda servia a dias na casa de velhotas reformadas a precisar de quem lhes engomasse a roupa. Quando eu fui trabalhar para o café, a Isa já abdicara destes serviços extra, o que motivou os primeiros falatórios que também não ignoravam uma ligeira, porém firme, mudança no seu comportamento, sobretudo quando na presença do Teixeira. A antiga humildade dera lugar a uma altivez de patroa. Mas o tempo passou e as conversas extinguiram-se. Nas traseiras do café, ficava o armazém onde, para além de grades de bebida, havia uma pequena cama de ferro sobre a qual se acomodava um colchão o seu tanto pestilento, supostamente destinada ao descanso vespertino do Senhor Teixeira. Em várias ocasiões, o patrão regressava do armazém com uma disposição renovada e um bom humor inusual. A mudança era tão brusca e inopinada que, durante anos, e mesmo depois de tudo o que veio a acontecer, eu jurei pelas propriedades curativas da sesta.

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