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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

28
Fev10

Anita em Buenos Aires

Bruno Vieira Amaral

 
 
Publicado no i
 
A badana do livro, fonte sempre fiável, assegura-nos que Daniel Galera é “considerado o melhor escritor brasileiro da sua geração”. O melhor elogio que se pode fazer é que o terceiro romance do escritor gaúcho não desmente a badana. Cordilheira é um livro de um escritor maduro, sem o espalhafato verbal com que se impõem muitos dos novos valores e sem a colagem a patronos literários que facilita a entrada na primeira divisão das letras. Aqui de nada servem os baptismos fáceis, “Guimarães Rosa de Porto Alegre” ou “Machado de Assis do século 21”. Galera é o seu próprio padrinho.
 
A história é narrada por Anita van der Goltz Vianna, uma jovem escritora a quem o sucesso do primeiro livro perturba mais do que motiva. O seu grande objectivo é mais doméstico: ser mãe. Mas o entusiasmo de Anita não contagia Danilo, o namorado, que pensa que ela faria melhor em investir na carreira literária. Perante a recusa de Danilo de a acompanhar no seu projecto egoísta e após o suicídio de uma amiga, Anita aproveita o lançamento do seu romance em Buenos Aires para deixar tudo para trás e perseguir o seu desejo: “Eu desejava o mais próximo que poderia haver de uma concepção milagrosa”. Anita sai do Brasil e mergulha na ficção, decidida a controlar os acontecimentos em vez de lhes atribuir um sentido a posteriori. Embora não tão arrojada, é uma ideia semelhante à de José Holden, o homem com quem se envolve. Holden e os seus amigos não se contentam com escrever livros, assumem a vida das suas personagens até às últimas consequências.
 
Enquanto nos diverte com alguns passos metaliterários (a Carnicería Cortázar, a tasca La Catedral), Daniel Galera não faz do estilo um traje carnavalesco. A sua prosa é clássica sem ser barroca e actual sem ser “moderninha”. Consegue imagens que não podiam ser de outro tempo (“[...] seu piscar azulado transformou a sombria alameda Chile num ambiente de rave evacuado.”) e guarda a melhor mão para momentos-chave: a descrição rigorosa de um ataque de pânico ou uma cena de sexo com as palavras certas no sítio certo. Mesmo quem não aprecia consagrações de badana não poderá negar que o século 21 já tem o seu Daniel Galera.
26
Fev10

Não vou

Bruno Vieira Amaral

 

Eu também tive o meu momento Sartre. Quando, pela primeira vez, me foi outorgado um prémio literário, pensei de imediato na forma mais extravagante de recusá-lo. Um comunicado, o silêncio, uma acção terrorista durante a cerimónia de entrega. Nada disto. No dia fatal, lá estava eu, a minha timidez e, na cadeira ao lado, o meu tio. Primeira lição: prémios literários em escolas secundárias dos subúrbios atraem pouca atenção. Para além dos vencedores e de uma esforçada professora de português, estariam os derrotados e, à porta, uma contínua impaciente para lavar a sala. E o meu tio. Os escolhidos foram chamados para declamarem os respectivos poemas. A grande vencedora foi uma rapariga a quem a vida não parava de maltratar e que, consequentemente e sem remorsos, se vingava na poesia. O poema era sobre tristezas várias e creio que mencionava um namorado ou talvez fosse uma sopa de legumes. Os poemas misturavam noções frágeis da poesia de Florbela Espanca e, mais do que prémios, mereciam uma intervenção da Segurança Social. Houve aplausos da plateia. Eu, a suar toda a minha adolescência, antecipava o doloroso momento de declamar as minhas pobres rimas. Sublinho que ganhei na categoria de poesia popular. Esta associação fez-me temer por um futuro literário em jogos florais, quadras em azulejos e taças de tinto sorvidas em tascas tristes. O subtil ironista, que eu julgava ser, era, aos olhos do corpo docente, apenas um pantomimeiro de bairro social, um artista de vaudeville das barracas, um António Aleixo dos pobres (mesmo sabendo que António Aleixo também era um António Aleixo dos pobres). O que podia o meu ouvido popular, desabituado de livros e erudições, contra o confessionalismo patético de uma rapariguinha acabadinha de perder a virgindade para um jogador da bola? Nada. E lá fui chamado. Não respondi. Chamaram-me novamente. Novamente ignorei a chamada. “Não está aqui o Bruno Vieira?” Cedi. Afinal, por muito embaraçosa que fosse a situação, eu estava ali. O meu tio olhou-me e o olhar tinha escrito “não me envergonhes”. Levantei-me. “Podes vir ler o teu poema?” “Não vou”. Raros terão sido os objectores de consciência a proferir um “não vou” tão convicto, tão cheio da superioridade moral de que só as grandes causas nos podem insuflar. “Mas não queres ler o teu poema?” E eu, um bocadinho mais humilde, como se um imaginário pelotão de fuzilamento tivesse desaparecido revelando a prosaica realidade de contínuas e apagadores, professoras e cheiro a sonasol verde, balbuciei um “não” que agora era mais “terei todo o gosto em ouvir o meu poema na sua bela voz, as palavras que imaginei a vencerem a leve resistência dos seus lábios”. Sorte que a mulher era horrível e tais devaneios não me atravessaram o espírito. “Mas não queres mesmo ler?” E a cada insistência a minha determinação esvaía-se um pouco mais, empapada em suor e calcinada pela bola de fogo que me queimava o estômago, abrindo caminho até ao esófago e jorrando num largo, abundante e apoteótico vómito que se substituiu ao “não” definitivo que me preparava para suspirar. A contínua, a única que não tinha sido anestesiada pelos vapores da má literatura, apressou-se a limpar os restos do meu almoço e da pouca poesia que, desde aquele dia, me abandonou.
16
Fev10

Carnavandalizando

Bruno Vieira Amaral

 

O meu Carnaval preferido foi há muitos anos. A RTP passou o filme “Um cadáver de sobremesa”. Truman Capote fazia uma aparição no final. Eu não sabia quem era Truman Capote, ainda hoje não sei quem foi, mas o nome ficou. Ainda julguei que aquele filme seria o Jesus de Nazaré do Carnaval. Se eu, naquela altura, fosse director da RTP, teria inaugurado uma nova instituição carnavalesca. Ninguém inaugurou, but we’ll always have Rio.
 
Carnaval era nudez. A nudez ocultada no resto do ano, a nudez que a televisão única e pública escondia e que aparecia envergonhada nas madrugadas de fim d’ano e de Carnaval. O acontecimento não era o Carnaval enquanto espectáculo busby-berkeliano-favela-chic, eram as maminhas ao léu e o frenesim tropical-mulato (jovens que agora tendes 18 aninhos, lembrai-vos que naqueles tempos não havia YouPorn; os serões das famílias portuguesas eram passados a ler as caridosas recomendações do Padre António Vieira. Bernardim Ribeiro foi para a minha geração o que James Blunt é para a vossa, acreditai!). Uma não-nudez que era toda a nudez a que os nossos RTPios olhos tinham direito. Uma nudez anódina, Crazy Horse, uma nudez show-biz daquela que não perturba, não incomoda porque é uma nudez tapada pela própria nudez. Foi então que percebi que as impassíveis máscaras venezianas são muito mais eróticas do que as bamboleantes bundas cariocas (na verdade, eu só percebi isto cinco minutos antes de começar a escrever este texto, há duas horas; atenção, percebi mas eu não acredito em tudo o que percebo). É por isso que toda a gente adora o Eyes Wide Shut, não é? Porque na cena da orgia, um grande Carnaval sincrético, há a beleza do corpo e o mistério das máscaras. Não há mulatas mas não se pode ter tudo. Já imaginaram o que seria uma baiana num filme de Kubrick? Recorrendo a um hidrolusismo, seria o mesmo que plantar mil bananeiras num conto de Borges ou construir cem bibliotecas em pleno García Márquez.


Isto esteve para ser a minha singela homenagem ao Carnaval da Mealhada.

15
Fev10

Gestas e Varas

Bruno Vieira Amaral

 

O que eu gostava mesmo de escrever, se talento tivesse para tais empreitadas, era uma gesta. O texto primordial da nação, a bíblia do patriotismo, acessível a qualquer filho-da-mãe que, após a leitura, verteria lágrimas de arrependimento, amaria profundamente a pátria, os seus heróis e cada uma das pedras, vetustas ou lá colocadas na altura da Exposição do Mundo Português, dos castelos, saberia o nome dos rios e o cognome dos reis, onde nascem as fronteiras e desaguam as tragédias, a árvore genealógica da família real e os brasões das casas de má fama, as ínclitas gerações e os barões assinalados, as proclamações de independência e os murmúrios de dependência, os terramotos e as reconstruções, os filipes e as conchas, os duartes, os sidónios e os possidónios, os sidosos e os sifilíticos, os comunas e os regicidas, saberia tudo de todos e alegrar-se-ia de ser ele também fruto da árvore frondosa (aquela que contornamos no início do filme do Oliveira), antiga e invencível, sob a qual descansam os ricos e bons homens do morgadio e a cujos ramos trepam os macacos de aldeia e seus acólitos, lá vem o taberneiro, traz duas pipas cheias e duas filhas zarolhas, uma mulher sem dentes carregada de pastéis de bacalhau, tira-os da algibeira e joga-os aos cães e aos pobres, que a eles se lançam como gato a bofe, sete cães a um osso, estala o foguetório, “Ah, Bodas de Camacho!”, bons eram os tempos, boa e velha árvore, que a nós nos dás sombra e bolotas aos porcos. Mas tarde cheguei à nação, que já por aí andava ao deus-dará quando eu nasci, espetaram-lhe colheradas de democracia mas aquilo caiu-lhe na fraqueza, engasgou-se e pôs-se a arrotar restos de europa, a bolçar expos e euros e agora é assim como vedes, calhou-nos este moisés das beiras, de vara na mão a apascentar varas de sócrates, que o seguem mal e porcamente, que o Mar Vermelho é já ali e mesmo sem o bafo dos exércitos do faraó nos pescoços hão-de afundar-se, que isto de apartar águas não é para todos.
15
Fev10

Férias

Bruno Vieira Amaral

As férias, não o trabalho, são a coisa mais burguesa que existe, ainda mais do que as batatas pré-fritas e os sacos do aspirador. Suponho que sejam uma das conquistas de Abril, mesmo quando são gozadas em Fevereiro. O trabalhador, reza a legislação, tem o direito inalienável às férias, como um escravo mal comportado tem direito a um intervalo entre a 25ª e a 26ª chibatadas. Recebe o subsídio de férias que apenas serve para o manter afastado das imediações do local de trabalho. As férias começam com os habituais “finalmente”, “já não aguentava aquilo”, “estava pelos cabelos” e a ladainha prolonga-se durante a primeira semana. A segunda semana é pródiga em “como é bom estar longe daquela gente”, “e os outros a ter de aturar filas e transportes”. Com a terceira semana vem o tédio, outra invenção burguesa. O dinheiro escoou-se e resta-nos A Praça da Alegria e o Opinião Pública. Seguem-se as revelações e as boquiaberturas de espanto: o sorriso da Sónia Araújo depois de ter ficado sem um Jaguar, vítima, ao que parece, de um daqueles casos de combustão espontânea muito comuns na área metropolitana do Porto. No Opinião Pública discute-se a liderança do PSD, mas um telespectador aproveita para insultar a convidada, Inês Serra Lopes, referindo-se ao processo Casa Pia. Leio o Sol (poderá a isto chamar-se heliomância?). Concordo com a Ana Cristina e percebo o título do jornal: O Polvo. Aqueles dois são cefalópodes (e por mais do que um motivo). Muito mais grave do que não haver liberdade de imprensa, é a liberdade de impensa estar ameaçada por...aquilo. É óbvio que aqueles tipos têm de se mover em águas profundas, na sombra dos gabinetes. Se assomam à superfície, acabam em salada. A sério. Para que o tráfico de influências se possa credibilizar, é necessário arranjar umas caras decentes. Na preparatória, eu tinha colegas com caras daquelas e uma coisa posso garantir-vos, nunca lanchavam. Aproveito para deixar registado que nada disto melhora as minhas férias.

14
Fev10

Biografia rima com burocracia

Bruno Vieira Amaral

 

Publicado no i

 

 

Esta biografia de José Saramago, da autoria do investigador João Marques Lopes, é a prova da difícil relação dos portugueses com o género. Trata-se do percurso invulgar do único prémio Nobel da literatura de língua portuguesa e de um homem polémico que ainda não perdeu a capacidade de provocar reacções epidérmicas aos adversários de sempre: a direita e a Igreja Católica. No entanto, se compararmos esta biografia com as de outros nobelizados, como Gabriel García Márquez e V.S. Naipaul, não podemos deixar de sentir a falta de ambição e de talento para nos dar um retrato mais completo e complexo não só do homem e do escritor, mas também da sua época. É verdade que nem todos podem ser Ruy Castro, cujas biografias são muito provavelmente o expoente máximo do género em língua portuguesa. O que não desculpa a linguagem burocrática e, pontualmente, hermética de Marques Lopes, que confunde o rigor da investigação com uma prosa em rigor mortis. A função do biógrafo é de transportar o leitor para a vida do biografado e não para os arquivos e bibliotecas onde fez a pesquisa, por muito meritória que esta seja. Uma das opções mais questionáveis é a ausência de entrevistas. A base da investigação é exclusivamente documental, o que não se compreende, tendo em conta que alguns dos protagonistas dos episódios mais polémicos da vida de Saramago poderiam oferecer testemunhos relevantes. Seria interessante ouvir o desaparecido Sousa Lara ou Maria Lúcia Lepecki, membro do júri do prémio da APE que elegeu O Evangelho Segundo Jesus Cristo, que votou por uma obra de que ninguém se lembra. Em relação a outras polémicas, Marques Lopes suaviza a participação de Saramago no saneamento de jornalistas do DN durante o PREC, menospreza a crítica literária quando esta não é simpática com Saramago, atribuindo-lhe motivações ideológicas, e eleva o escritor à condição em que o próprio gosta de se rever: a de profeta-mor dos desempregados morais do comunismo. As afinidades ideológicas entre biografado e autor são óbvias e, até por esse motivo, este será o primeiro a reconhecer que a biografia paroquial que escreveu não honra a dimensão universal de Saramago.

 

09
Fev10

Ânimo

Bruno Vieira Amaral

Melómanos não devem escolher a música que se ouve nos supermercados. As meninas da charcutaria ouvem Leonard Cohen e suspiram todo o desconsolo: "Esta música não dá ânimo nenhum."

05
Fev10

Deco

Bruno Vieira Amaral

Para o Lourenço.

 

Simpatizo com o Deco. O Deco gosta de fazer filhos. É público que tem vários de várias relações. Vê-se que o homem nasceu para aquilo. Ele vai na onda. Oiçam as escutas: aqueles hum-huns, sim-sins, presidente. O Deco estava-se nas tintas. Aposto que estava a fisgar a Jaciara. Convidaram-no para representar a selecção portuguesa. Ele fez umas contas rápidas, o escrete estava difícil, despachou os diligentes funcionários da federação com mais hum-huns, sim-sins, e voltemos ao que é importante, que o mundo precisa de mais gente. Claro que o Deco falhou o timing. No ano em que aceitou jogar pela equipa de todos nós (e se é de todos nós, também é do Deco, porque o Deco é um de nós e gosta de fazer filhos), o Porto de Mourinho começou a limpar a mobília da Uefa. Caramba, deve ter pensado o Deco, mais um aninho e estava na canarinha. Agora, cansado do frio londrino, das viagens constantes, o Deco diz que após o Mundial abandona a selecção. Nada de grave. Na verdade, ele nunca esteve lá. A cabeça do Deco, jogador genial como poucos que acariciaram os nossos relvados (jogadores como ele não pisam), nunca está no campo e muito menos em delírios patrióticos à la Pepe, com choros convulsivos e declarações de amor às quinas e demais bicharada mitológica. Não o acusem de não urrar o hino como um “lobo” do râguebi. Ele está apenas a gerir a carreira, a de fazer filhos, e para isso convém estar longe da voz professoral e contraceptiva do Sr. Queirós.

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