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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

29
Mar10

Ondas de Paixão

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i

 

“Na época em que o rei Frederico II da Dinamarca reinava na província de Bohus, vivia em Marstrand um pobre peixeiro, de nome Torarin.” Um arranque destes já era anacrónico quando Selma Lagerlöf escreveu O Tesouro, em 1904. Hoje, assente que está a poeira das modas, podemos considerá-lo intemporal. A história emerge com a solidez da sua simplicidade. Combina elementos dos contos populares e das histórias de fantasmas, sob uma atmosfera moral e religiosa, inspirada em lendas escandinavas e em episódios bíblicos.

 

O Tesouro narra a história de Elsalill, uma rapariga que se apaixona por um dos homens que lhe matou a família. Perseguida pelo fantasma da irmã adoptiva, Elsalill vive atormentada pela dúvida: denunciar o homem que ama ou fugir com ele, tornando-se cúmplice do crime e carregando em silêncio a culpa dos dois. A questão central do romance é este dilema moral de Elsalill, no qual se confrontam os seus sentimentos e uma noção de justiça transcendente. Enquanto os assassinos não são punidos, não é apenas a alma da irmã que não tem descanso; a própria Natureza, o longo braço de Deus, impõe as suas leis. O barco que levaria os criminosos de volta à Escócia, de onde eram originários, permanecerá encalhado no gelo até que a justiça seja feita. Sendo a paixão de Elsalill o único obstáculo entre o crime e o castigo, o seu sacrifício torna-se a condição para o apaziguamento dos defuntos e da cólera divina. Ao aceitar o seu destino trágico, Elsalill expia o seu pecado: o de um amor corrompido pela culpa.

 

Simples na caracterização das personagens e na descrição dos ambientes, e profundo no tratamento dos temas (amor, culpa, redenção), O Tesouro é uma obra anti-naturalista que reveste a estrutura dos contos tradicionais de uma sensibilidade cristã típica dos países nórdicos. Um antepassado literário de filmes como A Palavra (Dreyer), A Fonte da Virgem (Bergman) e Ondas de Paixão (von Trier), com os quais partilha a austeridade mística e a economia narrativa. Selma Lagerlöf, a primeira mulher a receber o Prémio Nobel, escreveu um romance sem adiposidades, sempre as primeiras presas da voracidade do tempo. A designação de clássico serve-lhe na perfeição.

25
Mar10

O vilão que ri

Bruno Vieira Amaral

As contribuições de Dan Brown para a História da Literatura ainda estão a ser contabilizadas. O trabalho está a cargo de uma organização secreta para a qual eu trabalho a recibos verdes e em regime de part-time. Até há bem pouco tempo, recebia semanalmente uma mensagem codificada com o local e a hora onde tinha de entregar um relatório sobre os progressos da minha investigação. Como o local e a hora eram sempre os mesmos, a organização decidiu acabar com as mensagens, o que entendi como uma prova de confiança na minha capacidade de dedução. O último relatório que entreguei indicava que Dan Brown teria criado o segundo vilão mais sorridente de todos os tempos (depois do Joker e muitos lugares à frente do Salieri de F. Murray Abraham): Mal’Akh. E quais são as razões para Mal’Akh sorrir? Em primeiro lugar, Mal’Akh cortou os próprios testículos, uma excelente razão para alguém passar o tempo a sorrir, sobretudo na modalidade “sorrir para consigo”. “Satisfeito, passou a palma da mão macia pelo couro cabeludo liso e sorriu” (p.25); “Mal’Akh sorriu para consigo” (p. 38); “Sigo na dianteira, pensou Mal’Akh, sorrindo para consigo” (p. 72); “Sorriu, saboreando a frescura do crepúsculo” (numa página qualquer); “Mal’Akh riu-se para si mesmo”, “Mal’Akh sorriu”, “Mal’Akh sorriu” (p. 125); “Mal’Akh sorriu uma última vez ao homem” (p. 152); “Depois desta noite, pensou ele com um sorriso, não terei necessidade deste lugar” (p. 292); “Mal’Akh sorriu”, depois de ter recebido um e-mail (p. 359); “o homem tatuado limitou-se a sorrir” (p. 420). Dan Brown libertou gás “hilariante-para-consigo”, um elemento químico presente em algumas plantas da selva boliviana e em prosa de má qualidade, e Mal’Akh não consegue parar de sorrir, seja para consigo, para com os outros, ao sentir a frescura do crepúsculo, enquanto conduz. Enfim, é um homem satisfeito como qualquer outro prestes a descobrir um segredo que pode transformar o mundo, destruir os pilares da democracia americana e desencadear o processo de beatificação de Paris Hilton. Segue as transcrição de uma conversa entre Dan Brown e Mal’Akh:

 

- Bom dia. O senhor é o Dan Brown?

- Sim, sou eu. Em que posso ajudá-lo?

- Bem, em primeiro lugar ficar-lhe-ia muito grato se me restituísse os meus testículos. Nos últimos tempos sinto-me como um lançador do martelo da ex-RDA, ou como uma lançadora. Tanto faz.

- Quem é o senhor?

- O meu nome é Mal’Akh que significa…

- Nada. Mal’Akh não significa nada. Foi uma brincadeira da minha parte. Então você existe mesmo? Curioso. Mas, olhe, eu não lhe posso devolver os testículos. Você é uma personagem de ficção. O processo é muito demorado.

- Se há alguém capaz de o fazer, é o senhor.

- Nada feito. Que tal escolher o actor que o vai representar no cinema?

- Pode ser o Yul Brynner?

- Não. Já morreu. Eu escrevo ficção. Baseada em factos e teorias da conspiração, é verdade, mas ficção. Não ressuscito ninguém.

- Oiça uma coisa, o senhor descobriu a descendente de Jesus Cristo e diz-me que o Yul Brynner não pode ser o Mal’Akh? Arranje uma solução!

- A sério, não posso. Clive Owen?

- Caramba, quem é que vai acreditar que o Clive Owen não tem tomates?

- Sigourney Weaver?

- Vá lá, o senhor é capaz de melhor.

- E se eu lhe arranjar um papel no meu próximo livro?

- Não me interessa. Graças à sua imaginação, passei uma temporada numa prisão turca e fiquei sem testículos. Que tipo de pesquisa é que o senhor fez? Viu O Expresso da Meia-Noite enquanto lia a biografia do Farinelli? Só faltou uma gaja a esfregar as mamas no vidro.

 

A partir deste momento, a gravação perde qualidade e é impossível transcrever a conversa com rigor.

18
Mar10

Arduamente

Bruno Vieira Amaral

Confesso com desgosto que a falta de tempo não me tem permitido acompanhar a nova telenovela da TVI. É unânime que o nível das telenovelas portuguesas tem subido drasticamente nos últimos anos. Mas subiu no sentido em que sobe o nível das águas, deixando a povoação de Reguengo do Alviela isolada. Hoje, o horário nobre está rodeado de telenovelas por todos os lados e não há protecção civil que nos valha. É certo que temos o Mário Crespo, mas o homem guardou a melhor actuação para a AR TV e não aprecio o papel que ele representa no noticiário, a fingir que é imparcial e isento. Achei o indiano do Rogério Samora muito mais convincente. Ontem, por acaso e porque o Barcelona já estava a dar quatro ao Estugarda, dediquei alguns minutos à telenovela Mar de Paixão. Tentarei resumir o enredo: Paula Lobo Antunes é a protagonista. Fala como uma personagem da TVI, move-se como uma personagem da TVI, pensa como uma personagem da TVI mas, garantem-nos os adereços (bóias, redes de pesca e um fogão antigo e imaculado) e alguns passeios à beira-mar, é pescadora, da zona de Setúbal, embora não carregue nos erres (falha imperdoável do guionista). Comunidade piscatória, Setúbal, começa a fazer lembrar aquela telenovela em que separaram o Caniço da sua masculinidade. No entanto, Paula Lobo Antunes não corre o risco de uma excisão. Ela precisava de um coração novo. E arranjou-o. A anterior proprietária do coração morreu num acidente. A rapariga era noiva de José Carlos Pereira e filha de Rogério Samora, fatalidades que atingem praticamente todas as personagens femininas das telenovelas da TVI. Os cenários até podem mudar (Douro, Açores, Alentejo) mas, num determinado momento da narrativa, a rapariga sabe que ficará noiva de José Carlos Pereira e descobrirá que é filha de Rogério Samora, ou vice-versa. A esta, coube-lhe o duplo infortúnio e, como se a quisesse poupar a padecimentos suplementares, o guionista dá-lhe o golpe de misericórdia. A partir daqui, o objectivo do guião é encontrar uma noiva para José Carlos Pereira e uma filha para Rogério Samora. Como o coração vai parar à personagem de Paula Lobo Antunes, já se sabe o que aí vem. Porém, o caminho até esse desfecho é longo e pavimentado de metáforas cardíacas: “o teu coração é novo, mas a bondade é a de sempre”, entre outras subtilezas poéticas. Nesta fase pré-noivado com José Carlos Pereira, Paula Lobo Antunes apaixona-se por um golfinho: “se calhar a pessoa que me deu o coração era tratadora de golfinhos”. Não era, mas era noiva de José Carlos Pereira, um actor muito menos expressivo do que qualquer golfinho e do que a maioria das alforrecas que costuma invadir a praia de Sesimbra. O episódio de ontem terminou com o golfinho na praia, emaranhado em redes de pesca e com um ar de sofrimento muito realista. Não ponho de parte a hipótese de ter sido agredido por um José Carlos Pereira movido pela inveja. Eunice Muñoz também participa na telenovela. É a matriarca da comunidade piscatória (chama-se Ti’Alice) mas fala como se fosse a Eunice Muñoz com as roupas de matriarca de uma comunidade piscatória: “esta é nossa família, à qual vocês também pertencem”. E não se fica por aqui: “lá está o rapazinho que não anda, ali, sentado numa cadeira de rodas” e a câmara, para provar que da boca da Ti’Alice só saem verdades, mostra o rapazinho que não anda, sentado numa cadeira de rodas. Era bem possível que, sendo esta uma vila de pescadores (ICHTUS, que em grego significa peixe, acrónimo de Jesus, etc), a Ti’Alice pudesse dizer “lá está o rapazinho que não anda, a correr pela praia”, mas o único milagre a que temos direito é a um advérbio de modo proferido pela personagem de Helena Laureano: “sabes que eu trabalhei arduamente” (isto provavelmente é da telenovela da SIC, fiz zapping). Nas telenovelas ninguém trabalha como uma cadela, como uma moura ou como uma galega. Trabalham arduamente, ao contrário de alguns guionistas.

18
Mar10

Diamantes

Bruno Vieira Amaral

Thriller histórico é um rótulo que esconde mais do que revela sobre aquilo que é O Olho de Hertzog. Não é inexacto, é insuficiente, como são todos os rótulos quando aplicados a bons romances. Há a Lourenço Marques do pós-I Grande Guerra, reconstituída com riqueza de detalhes que captam a diversidade de uma urbe labiríntica, moderna e arcaica, entre o cimento e a palha. E há o mistério, O Olho de Hertzog, o diamante procurado por todos, e cujo segredo é gerido com mestria pelo autor, como se de uma preciosa pedra narrativa se tratasse. O que liberta o romance do espartilho do thriller histórico mais simplista está na afirmação de uma das personagens: “já nada do que ali se passava tinha a ver com o diamante”. A jóia é um engodo. O que interessa são as personagens, as suas motivações, os vários passados que carregam e que tentam dissimular com outros nomes, outras vidas. O tenente alemão Hans Mahrenholz aparece em Lourenço Marques como Henry Miller. Florence Greeff é Florence de la Rey. Natalie Korenico é Peggy Foster. O incansável jornalista João Albasini assina alguns editoriais como João das Regras (o branco) e outros como Chico das Pegas (o indígena). Hans perde-se neste labirinto de passados inventados e de identidades falsas, incapaz de resistir às histórias que lhe vão contando. Aquilo que a princípio parece um pobre recurso para dar a conhecer ao leitor os acontecimentos, revela-se o trunfo do romance: um novelo de histórias magnéticas que inebriam o protagonista e prendem o leitor. Onde o romance falha é na linguagem, excessivamente conformista, sem rasgo. Tivesse João Paulo Borges Coelho guardado para a prosa metade do que investiu na arquitectura narrativa, teríamos um grande romance. Assim, é apenas bom. Um diamante narrativo sem o brilho da prosa.

15
Mar10

Um homenzinho sem importância

Bruno Vieira Amaral

 

 

Publicado no i

 

Quando a personagem principal de um romance de J.M. Coetzee é um escritor sul-africano chamado John Coetzee, o alarme metaliterário dispara. O leitor, que se julga sempre mais esperto do que o escritor, aproxima-se cautelosamente, com a esperança de comer o isco confessional sem ficar com a boca presa no anzol da ficção. Mas o pescador experiente, como é o caso de Coetzee, faz do isco e do anzol um só corpo. O peixinho está condenado a saber menos do que o pescador. Deve ler e deleitar-se com a arte que o engana.

 

Após a morte de John Coetzee, o seu biógrafo entrevista cinco pessoas (quatro mulheres e um homem) que se cruzaram com o escritor no período entre 1972-77, antes da consagração literária. Dos relatos fragmentados emerge uma imagem unívoca e pouco favorável do homem. Mais do que um inadaptado, era um inadaptável. É retratado pelas mulheres como assexuado e frouxo, “um homem sem aptidão para o casamento, como um homem que passou a vida no sacerdócio e perdeu a virilidade e se tornou incompetente com as mulheres.” Socialmente, Coetzee assemelhava-se a um seminarista divorciado do próprio corpo, divorciado dos outros. Calvinista nos afectos e na falta de jeito para a dança, era “um homenzinho sem importância”, sem nenhum sinal exterior do talento que haveria de demonstrar.

 

Apesar do jogo de espelhos auto-referencial, Verão não é um romance solipsista. É uma (falsa) biografia em construção, em que os personagens secundários (os entrevistados) invadem o palco principal, deixando o protagonista fora de cena. Desta forma, o foco do romance desvia-se, em determinados momentos, do mundo fechado do escritor para incidir sobre a sociedade sul-africana: a gradual transformação das relações entre negros e brancos, o desencanto burguês dos subúrbios e a ligação complexa dos colonos ao país.

Quase no final do livro, uma das personagens faz uma avaliação crítica da obra de John Coetzee. Conclui que o estilo, “demasiado frio”, denota falta de ambição. Ela projecta nos livros as qualidades do homem, enquanto que a mensagem do romance é a oposta. Não devemos confundir o homem com a obra. Não devemos confundir J.M. Coetzee com John Coetzee.

12
Mar10

Baldio

Bruno Vieira Amaral

"Que é um baldio senão o cadáver do campo dentro da cidade?"

 

O Olho de Hertzog, João Paulo Borges Coelho

04
Mar10

Feira Velha

Bruno Vieira Amaral

A excitação infantil com os objectos novos em folha. Depois, o tédio. Finalmente, o abandono. Lembro-me da Feira Nova, do luxo de quatro salas de cinema, a lotação esgotada para as sessões da noite, lojas e restaurantes cheios. Agora, passo por lá e está tudo vazio. As salas de cinema desactivadas, o grande pronto-a-vestir fechado, escondido por papel pardo colado aos vidros, como um sem-abrigo a ocultar a miséria atrás de jornais velhos. Um derradeiro indício de decoro. Onde havia luzes, barulho e pessoas só há escuridão e silêncio. Resiste um único café. A empregada está ali, profissional e soturna, à espera de ninguém. Até o ruído da máquina de café soa como um lamento, como se tudo naquele espaço - pessoas e objectos - fizesse um sacrifício para servir os últimos clientes. Do outro lado do balcão, a televisão está desligada. De onde estou, vejo a cozinha vazia e arrumada, a arrumação fúnebre das coisas que estão para acabar. Dos altifalantes do hipermercado cai uma música fantasmagórica, um requiem foleiro, o som de uma grafonola num bordel de putas velhas, a transpirar boleros húmidos. Andar por aqueles corredores sabe a ferrugem. Uma criança corre à volta de um carro de moedas que tem colada uma folha branca escrita à mão “Fora de Serviço”. A criança só tem presente. Ignora que aquele tempo já passou. Sobe para o carro e já está noutro lugar. Deixo o interior do animal gigante e moribundo. Cá fora, o mundo é o mesmo de sempre: a chuva miúda, as poças tímidas, o odor longínquo do mar, o odor acre de tudo o que perdemos.

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