Baptizaram-no Diógenes. Assim, fácil, sem antecedentes familiares, sem padrinho homónimo, alguém se lembrou, impossível averiguar quem e em que estado etílico, gritou “Diógenes” e Diógenes ficou, contra a vontade muda da mãe, a indiferença tácita do pai e a reprovação do avô, que era muita mas toda de aguardente e pouca de desacordo onomástico ou de interesse pelo neto que, por ser o décimo-quarto, embora em fealdade ocupasse lugar mais cimeiro, não suscitou entusiasmos. Diógenes nasceu completo de dedos, motivo de suspiros de alívio mais do que contentamentos. Outros indícios não escaparam ao escrutínio de uma vizinha, mulher de virtude, especialista em prever acontecimentos nefastos em borras de café e no determinar de futuros pelo olhar da criança aos quinze dias. O olhar aparvalhado do pequeno Diógenes dispensava os augúrios da velha que, no entanto, fez questão de decretar o diagnóstico, “Vai ser burro até à cova!” Chorou copiosamente a mãe, que não havia filho que parisse que não tivesse moléstia ou fraqueza de entendimento; o pai, desconfiado da autoria de prole tão modesta, jurou que aquele não havia de conhecer escola, nem letras, nem números, pois não era de razão desperdiçar recursos com rebento tão aziago; o avô permaneceu no silêncio de bagaço, expelindo ocasionais “ora”, sem que ninguém lhe ligasse muito. O resto da descendência ignorava o benjamim como ignorava quase tudo. Eram treze, todos entretidos em judiarias e em toda a sorte de actividades denunciadoras da debilidade de intelecto. Eram muitos e todos estúpidos. Haveria Diógenes de ser diferente? Mas foi. Cresceu silencioso, moderado e à sombra do avô, que lhe começou a ganhar estima quando a criança balbuciou a primeira palavra, um avoengo “ora”, o que inculcou na mãe o temor que, para além de mais estúpido do que os demais, o ultimogénito viesse a ser tão bêbado como o avô. Quando Diógenes entrou em idade escolar, a ameaça do pai cumpriu-se e a criança não sofreu aprendizagens canónicas. Verdade seja dita que, por esta altura, Diógenes aprendera a ler sem que ninguém soubesse como. O suspeito natural era o avô, mas tinha o álibi de um extenso analfabetismo. A vizinha sibilina, a quem os anos tinham diminuído o acerto mas não o atrevimento, aventou o mancomunamento da criança com o demónio, criatura sempre atenta às almas mais fracas. O avô, cansado dos palpites da vizinha, agarrou-a, sacudiu-a e disse-lhe para não voltar a pôr os pés naquela casa enquanto não conseguisse guardar a língua na boca. O tempo de a velha se recompor da turbulência foi o tempo que demorou a aparecer a notícia de que também o velho teria vendido a alma ao diabo a troco da sapiência do neto. A mãe de Diógenes já não pôde testemunhar estes sucessos, porque dois anos após o nascimento do filho, aproveitou a boleia de um vendedor de roupas que por ali passava amiúde para nunca mais se lhe saber o paradeiro. Tamanha fortuna satisfez o marido, que familiarizava muito com a ideia de uxoricídio e que, desde esse dia, gozou o proveito sem ter outra fama que não a de corno, um mal que suportava com alegria e desenfado. Os filhos lá iam crescendo, sem cuidados de maior, salvo uma ou outra constipação, uma otite mais teimosa e as cáries cruelmente expostas pelos risos idiotas. Andavam todos juntos, grande bando de pássaros, guinchos e crocitos ouviam-se ao longe, anunciando-os com antecedência. Não eram maldosos, não lhes chegava a inteligência para tanto, mas eram temidos por serem muitos e trazerem com eles desordem e desassossego. Diógenes não os acompanhava. O avô não queria e o pequeno habituou-se à solidão velada pelo velho, cada vez mais desabituado da bebida e mais dedicado ao neto, descobrindo afectos soterrados por anos de álcool e pelo ruído de uma multidão de macacos que trepavam à exígua mobília, atacavam a comida como uma matilha de cães esfaimados, relinchavam infância e falta de educação. Através do neto mais novo reaproximou-se da humanidade, conseguia vê-lo como um ser único, um indivíduo. Conseguira extraí-lo daquele corpo multicéfalo. Não tendo amor suficiente para aquelas crianças todas, cujos nomes desconhecia, isolou uma para a poder pensar como alguém, e até o nome, que despachara com o habitual “ora”, soava-lhe adequado e insubstituível. A criança respondeu a esse afecto único, com todos os seus sentimentos, com a entrega pura e ilimitada de que só as crianças e os loucos são capazes. O avô era tudo, uma árvore magnífica, uma rocha antiga e inabalável, salvo a tremura das mãos à conta de uma vida de bagaceiras ruins. Certo dia, naquele tempo em já se esgotara o crédito de alegria pela ausência da mulher, o pai, intrigado pela proximidade de avô e neto, quis pôr à prova os laços que os uniam. Insistia, maldizia o avô, procurava criar dissensão, destruir o oásis de amizade no deserto de afectos. Diógenes olhava-o sem espanto e sem inocência, antes comiserado, doído de um pai amargo. Como a criança se recusasse a trair o avô, a embarcar na corrente de ódio, a mão do pai levantou-se para lhe cair com toda a fúria e frustração nas faces, nos braços, nas costas. Quando o violento turbilhão de rancor se acalmou, cansado de não ver na cara do filho as lágrimas esperadas, a criança imune ao vírus do ressentimento, os olhos magnânimos, “perdoo-te, pai, pois não sabes o que fazes”, o pai sentou-se, exaurido, e viu a figura do velho avançar para a criança, a ancestral firmeza dos braços recuperada. O avô pegou o neto ao colo, os braços da criança enlearam-lhe o pescoço, as mãos miúdas e suaves na pele rugosa, como os veios de um rio que secou, os nós de uma árvore que dura, e essa união fundamental e incompreensível entre dois seres envergonhou o pai, que se levantou num vagar imbecil e estuporado e foi para a rua associar-se aos cães que o igualavam em magreza mas que o superavam em discernimento. Os anos passaram-se. Os irmãos de Diógenes partiram para o mundo, cada qual ao encontro da desgraça que lhe estava destinada, até que não sobrou nenhum e o silêncio tomou conta da casa. A criança fez-se homem, o velho fez-se mais velho, o pai fez-se fantasma. Diógenes cuidava do avô, limpava-lhe as chagas do corpo, dava-lhe à boca a sopa que o velho aceitava em sorvos de passarinho, fazia-lhe a barba com paciência, contava-lhe o que o dia lhe trouxera e que os olhos do avô já não podiam ver, lia-lhe histórias de vidas em terras longínquas, do cavaleiro de figura triste ou do homem tão sábio que nunca escrevera uma única palavra, e o avô, no pasmo infantil da velhice, lembrava-se de toda essa gente, garantia que os conhecera a todos, que noutra vida e noutro tempo tivera a fortuna da amizade daqueles homens sobre os quais agora se contavam histórias. Então, sossegava. Ficava numa mudez assertiva, como se negociasse com a morte. “Ninguém há-de contar a minha história”. E Diógenes passava-lhe a mão pelo cabelo ralo, a testa coberta por uma película de água, a pele frágil que mal protegia o crânio de porcelana. Beijava-o. Naquela manhã, a primavera entrou pela casa com o cheiro forte da relva cortada e da madeira batida pelo sol. Diógenes acordou mas tardou a levantar-se. Quando o fez, chegou-se à porta do quarto do avô mas não entrou. Esperava ouvir-lhe a respiração débil. Encostou o ouvido à porta mas não se ouvia nada. Empurrou a medo a porta, receoso da verdade que o esperava. Quando entrou, viu a cama vazia. Olhou em volta e não havia nada. Nem roupas, nem fotografias, nem sequer a lâmina e o pincel da barba. Diógenes correu para a rua. Ninguém. Só cães estendidos ao sol, à espera do meio-dia.