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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

30
Ago10

Tal como nos filmes

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i

 

Unha com Carne, Elmore Leonard, Teorema

 

“Não tinha paciência para os argumentistas que tentavam fazer descrições de cenas com um toque literário. Chamava-lhes argumentos Ó-pra-mim-a-escrever. Agora olha para o argumento dos irmãos Coen para o Este País Não É Para Velhos. É sucinto mas tem lá tudo, nem uma palavra a mais.” (p. 228)

 

Há uma frase no filme Chinatown que ajuda a perceber o consenso da crítica em relação a Elmore Leonard, basta que lhe acrescentemos os escritores: “Políticos, prédios feios e prostitutas tornam-se respeitáveis se duram muito.” Longevidade, despretensiosismo e adaptações cinematográficas por realizadores como Soderbergh e Tarantino transformaram Leonard em autor de culto: nem suficientemente bom para estar ao lado dos grandes, nem tão mau para ser atirado para o caixote do lixo. Aos oitenta e quatro anos, Leonard continua a escrever como sempre escreveu (um estilo expurgado de ornamentos), dentro do género que o popularizou (escrevia westerns mas quando o negócio passou de moda dedicou-se aos thrillers policiais) e até se dá ao luxo de recuperar personagens de outros romances, que é o que acontece neste Unha Com Carne, como se convidasse velhos amigos para uma grande festa. Jack Foley, o assaltante de bancos de Out of Sight, Cundo Rey, o criminoso cubano de LaBrava e a vidente Dawn Navarro, de Riding the Rap, são figuras resgatadas para este romance de amizades interessadas, traições e reviravoltas.

 

Não é difícil imaginar uma futura adaptação para cinema, mas a ligação entre a sétima arte e os livros de Leonard é duplamente parasitária. Se o cinema se tem alimentado da obra de Leonard, o próprio autor não dispensa os nutrientes do cinema. O que se vê não apenas na estrutura que facilita a adaptação (narrativa linear, capítulos curtos, muitos e bons diálogos, nada de descrições e psicologia), mas também nas personagens que citam Scarface ou Os Três Dias do Condor e que podem ser ex-vedetas e produtores de cinema, assaltantes de bancos e o lumpen do show-biz: strippers, videntes e partenaires de mágicos.

 

Tantas vezes louvado pelo realismo de diálogos e personagens, em Unha com Carne Elmore Leonard monta, uma vez mais, um jogo de espelhos em que a realidade se parece despudoradamente com a ficção. Se o leitor chegar ao fim a pensar “isto é como nos filmes” é porque os romances de Leonard devem mais aos códigos do policial (literário e cinematográfico) do que a qualquer forma de realismo. Os policiais são mesmo assim, como nos filmes.

27
Ago10

Contra a Interpretação

Bruno Vieira Amaral

Entrevista de Bret Easton Ellis ao Público (Helena Vasconcelos):

 

P: Em "Quartos Imperiais", Clay recebe mensagens de texto anónimas no seu telemóvel, que repetem frases como "estou a ver-te, "estou de olhos em ti", "ela não está contigo", etc. Essa situação reflecte a vida das personagens numa sociedade fechada, na qual toda a gente vigia toda a gente?

 

R: Que engraçado! Estão sempre a arranjar histórias onde não há história nenhuma. Trata-se apenas de alguém dentro de um jipe que observa Clay...e é tudo. Querem que eu dê respostas gloriosas a este tipo de perguntas mas eu não respondo, não consigo.

21
Ago10

Conos

Bruno Vieira Amaral

Connadamãe

 

O circunspecto, superiormente educado, afável e eloquente Professor Queirós (no fundo, um homem cheio de tensões e de raivas acumuladas e com pouco talento para as disfarçar) depois de ter utilizado estas qualidades para convencer o comentador Jorge Baptista da iniquidade dos comentários deste, mandou o Professor Luís Horta para a connadamãe, sugestão que aparentemente não terá sido acatada com a presteza usual entre professores. Quando um professor manda alguém para a connadamãe quer simplesmente dizer “volta lá para o buraco de onde saíste”. Queirós podia ter mandado Horta para casa, para o laboratório, para a escola, mas optou pela mais regressiva de todas as possibilidades, uma variação conal do que se dizia aos pretos (“Vai lá prá tua terra, ó preto”, um insulto que hoje em dia caiu em desuso porque o ofendido geralmente baixava a cabeça e comprava um humilde bilhete de comboio para a Amadora). Ao dizer o que disse, Queirós afirmou que era melhor que Horta não tivesse nascido, aconselhando-o a regressar à connadamãe para prolongar o período de gestação até limites supra-paquidérmicos.

 

 

Connamole

 

Cresci num tempo em que connamole era insulto. O connamole era o enjoado, a quem repugnava o ar livre e até o oxigénio, se não lhe fosse essencial à sobrevivência. O connamole não se limitava a não participar nas nossas iniciativas bárbaras; ele gostava de expor a molezzadiconna à nossa contemplação. Em vez de ir para casa quando não queria brincar, ele ia para a rua precisamente quando não queria brincar. Sabendo que não nos podia impedir de fazer o que nos apetecesse, o connamole fruía o secreto prazer de retirar às brincadeiras o fôlego da unanimidade, indispensável quando nos queremos comportar como verdadeiros símios. De forma involuntária, o connamole introduzia uma dose de racionalidade em actividades que, quando observadas do exterior, careciam desse atributo. O connamole constrangia-nos a sermos menos estúpidos do que desejávamos.

 

Connarrapada

 

Não quero emular o espanhol que com infinitas graça e tesão descreveu minuciosamente os encantos das mais variadas espécies de cona. Terei alguma apetência para sátiro mas nenhuma para entomólogo, o que me proíbe de grandes tratados de conologia. A minha reflexão, à força de muito cunnilingus (que mania esta de se lamber em latim) e não pouco tédio, tem o humilde propósito de aumentar a bibliografia sobre a connarrapada, género que relegou a connafelpuda do mainstream para um circuito alternativo frequentado por fetichistas e intelectuais franceses. Apesar da recente popularidade, a connarrapada permanece alvo de desconfianças múltiplas que insistem em identificar a glabra preferência com uma oblíqua nostalgia infantil ou com a padronização industrial ditada pela pornografia. Confesso, desde já, que no meu caso trata-se de um notório cruzamento de ambas, ao qual acrescentaria um fascínio pela beleza nua de bivalve que é própria da cona. Há quem ache a cona esteticamente repugnante, grupo que inclui indiscriminadamente mulheres e homens, embora a maior parte destes não se detenha nesse tipo de apreciações supérfluas e um tanto efeminadas. Mas o aumento do número de ninfoplastias, ou conoplastias, ao revelar uma crença na perfectibilidade da cona, no seu embelezamento cirúrgico, significa que a beleza da cona é um dado objectivo e não uma impressão que me assaltou subjectivamente ontem à noite enquanto executava um minete com tal arte que a minha língua se fez Menuhin de uma cona-violino (não vêm os melhores de Cremona, nome sugestivo de entre todos?). A cona pode ser bela. A cona deve ser bela. A questão da connarrapada é da ordem do que deve ser mostrado: é mais apetecível a muçulmana de burqa que atravessa as ruas do Cairo ou a rapariguinha que se bamboleia de mini-saia na estação de Rio de Mouro? Nenhuma, se ambas padecerem de candidíase. Sátiros de todo o mundo, quereis a cona de burqa ou a cona imberbe, a cona oculta ou a cona desaforada, courbetcona ou schielecona? A minha preferência, hoje, sábado, 21 de Agosto de 2010, embora possa ser circunstancial e daqui a uns anos pareça um anacronismo ou uma deficiência de espírito característica da época (lembrai-vos das bem nutridas figuras femininas de Rubens), vai para a connarrapada. Talvez no Inverno mude de ideias.

20
Ago10

Professor Alfredo Tinoco

Bruno Vieira Amaral

Um bom professor vale anos de estudo de manuais obsoletos, compensa o convívio forçado com patetas incuráveis, justifica o tempo perdido em transportes para se chegar à faculdade. O bom professor é aquele que nos ensina o que só ele nos pode ensinar. O bom professor é aquele que, durante uma aula de História numa secundária dos subúrbios, discute Ian McEwan connosco. O bom professor é aquele que nos leva até Borges e, com toda a generosidade do mundo, nos empresta uma edição de Ficções. O bom professor é aquele que, a pretexto de uma matéria qualquer, nos convida para ver Ondas de Paixão. O bom professor é aquele que, no meio da estupidez geral de uma turma do nono ano, tem a coragem de se dizer fã de Debussy. O bom professor é aquele que sai do caminho estreito dos programas e partilha com os alunos um pouco do seu mundo, da sua experiência, do seu conhecimento, da sua perplexidade perante a vida. Alfredo Tinoco foi um desses professores. Recordo pouco das aulas dele, qualquer coisa sobre Museologia, mas não esqueço aquela tarde numa esplanada de Entrecampos em que afirmou, com um sorriso gaiato e a voz rouca de gigante, que era anarquista e que, por isso, não se dava ao trabalho de votar. Proclamou, ufano, a aversão ao bicho automóvel e confessou que não tinha carta de condução e que, mesmo a trabalhar no estrangeiro, encontrara sempre uma solução para esse problema que, na nossa época, equivale a uma deficiência. Esta simples lição sobre diferença ensinou-me mais do que todas as aulas sobre eco-museus e patrimónios. Infelizmente, não vou a tempo de lhe agradecer essa dádiva, porque o Professor Alfredo Tinoco, mestre gentil e grave, morreu esta semana. A generosidade, da qual fomos felizes beneficiários naquele fim de tarde, permanece comigo.

 

 

Bruno Vieira Amaral e Henrique Raposo

19
Ago10

Amérique-Lapin

Bruno Vieira Amaral

Vario Llargas Mosa, Mabel Maria Garcez, Túlio Jorcázar, Lorbe Juiz Ogres, Lizé Josama Jima, Carpejo Alentier, Calermo Ifera Guinfante, Montusto Auterroso, Alberto Ralt, Falos Cuentes, Guan Julfo, literature from amérique-lapin is diversas nacionalidades but these hombres including peruviano autor or colombeño or argentiniano or mexicato and de la revolución cubista or guatemaltenho all gave contribuitres por el engran-decimento de letters hispanic, e no de las armas, souvenir du discours de El Quijote, from a town de que no quiero acordar-me. Cientos años of solidó, La ciudad and los cheyennes andaluces, Para-diso Pára-mo, Cuatro quentes quesos, Fixaciones, oeuvres son maestras and reflect the profundíssima originalité de amérique-lapin letters. Porsuposto, hay diferencias. Who can comparatista Rayo-L and Conversion en the Ca-thé-dral? Not many few, claramente. Proximamente, desarrollo de thesis ici danse blog, circulo of la boue.

19
Ago10

Deliciosos Delitos

Bruno Vieira Amaral

Nenhum de nós será virgem na experiência de ser convidado para um delito, tentação que, para os apreciadores do género, entre os quais me incluo, se nos oferece costumeiramente sob a forma de uma mulher que a literatura policial e poetas sem imaginação designam por fatal. Não será este o caso, até porque o convite me foi endereçado por um homem, ainda que em representação de um colectivo que inclui senhoras, senhoritas e, se posso confiar nos meus conhecimentos, um escritor. Confesso, portanto, que foi com o maior dos prazeres (exagero, é claro, como o confirma a primeira frase) que participei no delito e disponibilizo-me às autoridades para explicar os contornos da minha esporádica e deliciosa transgressão.

16
Ago10

Beautiful People

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i

 

O panteão dos escritores tem várias portas de entrada. W. Somerset Maugham (1874-1965) não utilizou a mesma de contemporâneos como Proust ou Joyce. Enquanto estes traçavam os caminhos que a narrativa haveria de percorrer nas décadas seguintes, Maugham repisava trilhos desbravados décadas antes.

 

O Fio da Navalha (1944), a sua última grande obra, exala todo o perfume da impertinência aristocrática do romancista. Maugham cortejava o cliché sem remorsos (é contar os narizes aquilinos ou atentar nesta pérola: “a nossa imaginação zarpa nas asas douradas do sonho”) e com a segurança de quem tem coisas mais importantes a dizer e não está disposto a despender energias com problemas que há muito foram solucionados (não era Borges que se gabava de utilizar as metáforas mais usadas, estrelas/olhos, morte/sono, exactamente por serem eternas?). Cultivava o aforismo, uma flor de civilização e de espírito, com um afinco comparável ao de Oscar Wilde, mas era através das personagens e do ouvido apurado para o diálogo que o génio de Maugham se expressava na totalidade. Larry, Isabel e Elliott são criações tão completas que temos de admirar os dotes demiúrgicos do seu autor. Um poder aplicado também à descrição do mundo em que viviam, as altas sociedades americana e europeia das décadas de 20 e 30. Os vícios de uma Europa decadentista, o materialismo optimista da América, a sordidez do bas-fond parisiense, o requinte da nobreza na Riviera: Maugham domina os cenários com a desconcertante naturalidade do homem mundano e culto. Por isso, a digressão pelo misticismo hindu soa a nota forçada. Aquela que deveria ser a parte mais espiritual do livro é muito mais superficial do que a descrição da vida fútil do dandy Elliott Templeton. Não há no romance momento mais humano e mais patético do que o sofrimento de um moribundo Elliott por não ter sido convidado para uma festa. À conta daquele faux pas hindu de Maugham, Edward Said poderia ter acrescentado mais um capítulo ao seu Orientalismo.

 

O leitor pode, no entanto, seguir a recomendação de Maugham, saltar o penoso capítulo místico e deleitar-se com o resto do livro, o resultado do entendimento perfeito que o autor tinha do seu ofício e que surge lapidar quando diz que “a arte é triunfante quando consegue usar a convenção como instrumento para seu próprio proveito.”

13
Ago10

Saramago

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i há uns tempos

 

Terra do Pecado (1947)

 

O título deveria ser A Viúva, mas o editor alterou-o para Terra do Pecado. História dos Pecados de uma Viúva teria contentado os dois. Numa altura em que o neo-realismo dominava, Saramago ainda escrevia sobre criadas chantagistas, à boa maneira de Eça de Queiroz.

 

Manual de Pintura e Caligrafia (1977)

 

Saramago gostou tanto do livro de estreia que demorou trinta anos a regressar ao romance. Há uma personagem H. e outra M., o que se pode considerar uma crítica premonitória ao capitalismo e à alienação das grandes cadeias de lojas de roupa através da venda de blusas escandalosamente baratas.

 

Levantado do Chão (1980)

 

Um escritor comunista escrever sobre o Alentejo é tão óbvio como um “tio” escrever sobre os gelados Santini ou um militante do CDS elogiar a beleza da Ria de Aveiro. Saramago encontrou a sua voz neste romance sobre trabalhadores rurais mas poderia ter escrito, com igual sucesso, sobre operários da Lisnave.

 

Memorial do Convento (1982)

 

Não diga a ninguém que nunca leu Memorial do Convento. Há um Baltasar, uma Blimunda e um Bartolomeu, um rei megalómano com um interesse pouco cristão por freiras e um fascínio por edifícios faraónicos e um tanto inúteis. E não se esqueça: de um lado os ricos e do outro os pobres.

 

O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)

 

Quatro anos antes do centenário do nascimento de Fernando Pessoa e do célebre “tanto Pessoa já enjoa”, Saramago “matou” o heterónimo Ricardo Reis, aquele rapaz que preferia ficar de mãos dadas com Lídia (que aqui é uma empregada de hotel) em vez de trocar carícias.

 

A Jangada de Pedra (1986)

 

E se a Península Ibérica se separasse do resto do continente europeu? Se a Grécia estivesse incluída na viagem diríamos que o romance era uma resposta às preces de Angela Merkel. Mas os tempos eram outros, Portugal e Espanha acabavam de aderir à CEE.

 

História do Cerco de Lisboa (1989)

 

Meta-literatura e romance histórico num só. É também uma reflexão sobre o poder dos revisores de texto (afinal de contas, os responsáveis pela versão final do texto que está a ler neste momento), os heróis invisíveis que podem alterar o sentido da História com um simples “não”.

 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991)

 

Um Jesus Cristo humano, demasiado humano, um diabo simpático e um Deus insuportável. Com este romance, Saramago despertou a fúria dos católicos e ofereceu ao país um personagem inesquecível: Sousa Lara, obscuro não sei quê da cultura.

 

Ensaio sobre a Cegueira (1995)

 

A cegueira como metáfora e como factor que desencadeia o mais primitivo e brutal que a Humanidade carrega dentro de si. A única personagem que resiste à epidemia é a mulher de um médico: a burguesia é sempre privilegiada.

 

Todos os Nomes (1997)

 

Mergulho kafkiano nas trevas da burocracia. A ideia do romance surigu enquanto Saramago pequisava dados sobre a morte do seu irmão Francisco, vítima de pneumonia aos quatro anos. Se o mundo de Borges era uma biblioteca, o deste romance é uma imensa conservatória do Registo Civil.

 

A Caverna (2000)

 

Platão, olaria, centros comerciais e anti-capitalismo. O primeiro romance depois do Nobel é um livro que respira o ar de Seattle 99 e em que o escritor cede o lugar à estrela mediática do pós-comunismo, ao porta-voz de uma globalização alternativa.

 

O Homem Duplicado (2002)

 

Ao ver um filme, Tertuliano Máximo Afonso descobre um homem que é sua cópia exacta. Este é um ponto de partida que levanta profundas questões de identidade: se existe um outro eu qual dos dois tem a obrigação moral de pagar as multas de estacionamento?

 

Ensaio sobre a Lucidez (2004)

 

E se os eleitores decidissem maioritariamente votar em branco? Este exercício de desconfiança em relação à democracia representativa mostra o Saramago mais esquemático e menos interessante para o leitor que não frequente a Soeiro Pereira Gomes.

 

As Intermitências da Morte (2005)

 

“No dia seguinte ninguém morreu.” Eis aquele que é provavelmente o melhor início de sempre de um romance português. Se o movimento pendular da ceifeira se interrompesse seria muito difícil encontrar um equivalente a Sete Palmos de Terra.

 

A Viagem do Elefante (2008)

 

In illo tempore, os monarcas portugueses não ofereciam serviços Vista Alegre aos seus primos europeus. Presenteavam-nos com elefantes, bicho exótico para austríacos acostumados a vacas. Com este regresso à História, Saramago convenceu os críticos mais contumazes.

 

Caim (2009)

 

E porque Saramago nunca foi homem de consensos, a sua despedida da cena literária aconteceu com esta pequena provocação de um adolescente octogenário. O Deus Todo-Poderoso levou aqui uma valente sova, mas não se incomodou. A última palavra é sempre d’Ele e da morte sem intermitências.

11
Ago10

Aforismos

Bruno Vieira Amaral

E estão todos num único livro:

  

Uma das particularidades menos agradáveis da vida em França é corrermos o risco de sermos instados a beber um cálice de um porto avinagrado às horas mais impróprias.

 

Não vou apreciar menos a sua beleza só porque sei o quanto ela deve à feliz combinação de um gosto perfeito com uma determinação impiedosa.

 

Sabe, os filisteus há muito que puseram de lado a roda e a fogueira como meios de eliminar as opiniões que receavam; descobriram uma arma de destruição muito mais mortífera: a piada mordaz.

 

A arte é triunfante quando consegue usar a convenção como instrumento para seu próprio proveito.

 

Porque as americanas esperam encontrar nos maridos o nível de perfeição que as inglesas apenas têm esperança de encontrar nos mordomos.

 

Meu caro, os Ingleses são um grande povo, mas jamais foram, e jamais serão, capazes de pintar.

 

O americano médio consegue entrar no reino dos céus muito mais facilmente do que no boulevard St. Germain.

O Fio da Navalha, W. Somerset Maugham, Asa, Trad. Ana Maria Chaves

11
Ago10

Os inquilinos do sétimo círculo

Bruno Vieira Amaral

A literatura não se cansa de nos oferecer suicídios. Na vida real, conhecemos as histórias de alguns. Amigos, parentes, conhecidos que tomaram um último cálice de veneno, que se atiraram de um terceiro andar ou de uma ponte, que ficaram no meio da linha à espera do comboio, que deram o tiro de misericórdia. Um desgosto, uma doença terminal, uma vida incurável: nada parece ser suficiente para justificar o acto e, contudo, nenhum gesto parece tão racional, lógico, quando imaginamos os sofrimentos indizíveis que o motivaram. Não somos capazes de julgar um acto que não sabemos se é heróico ou trágico, cobarde ou corajoso, desesperado ou cruelmente lúcido. Talvez tenha um pouco de todas essas características.

 

Em 2003, Tad Friend publicou um artigo na New Yorker sobre os suicidas da Golden Gate, em São Francisco. Entrevistou um homem que sobreviveu ao salto e estas foram as suas palavras: “I instantly realized that everything in my life that I’d thought was unfixable was totally fixable – except for having just jumped.” Os suicidas bem sucedidos inspiram-nos desdém pelo egoísmo revelado, admiração pela determinação necessária para executar o gesto e uma estranha compaixão que resulta de não termos acesso ao derradeiro assomo daquela consciência. Queria apenas chamar a atenção? Será que se arrependeu? E no caso de não se ter arrependido, que valores podem justificar o atentado contra o bem supremo? O suicídio não tem sentido? Ou é o único clarão de sentido numa vida absurda? Confrontados com estas questões, somos levados a repetir o célebre incipit de O Mito de Sísifo, de Albert Camus: “Il n’y a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide.”

 

E, no entanto, os suicídios não são todos iguais. Na literatura, muitas vezes a finalidade do suicídio é oposta. O suicídio de Judas Iscariotes é ignominioso, uma morte adequada ao seu papel de traidor. Se Judas morresse às mãos de um dos discípulos ou, anos mais tarde, de morte natural, à traição faltaria o derradeiro opróbrio, a mancha final e eterna. Os evangelistas não brincaram em serviço e Judas tem direito a dois suicídios: Mateus escreve que Judas se enforcou e Marcos, nos Actos dos Apóstolos, afirma que Judas “adquiriu um campo com o salário de seu crime. Depois tombando para frente arrebentou ao meio e todas as vísceras se derramaram.”

 

Muito diferente é o suicídio de Antígona, na tragédia homónima. Condenada por Creonte a viver emparedada, Antígona tira a própria vida quando o tio se preparava para revogar a pena. Ainda hoje, Antígona é um símbolo da luta do indivíduo contra a Razão de Estado e o seu suicídio um grito contra a tirania. Quando a desgraça se abate sobre Creonte (a mulher Eurídice e o filho Hémon também se suicidam) o seu castigo não é a morte mas “ter de continuar a viver” (Maria Helena da Rocha Pereira, Antígona, Ed. Gulbenkian, 1992) o que coloca em perspectiva a afirmação de que a vida é o bem supremo.

 

No livro Atentar contra Si, o escritor Jean Améry (que se suicidou dois anos após a publicação do livro) analisa dois “suicídios” muito diferentes (desde logo porque um é ficção e não se concretiza e outro é real) para questionar aquela afirmação: o do segundo-tenente Gustl, personagem de um conto do austríaco Arthur Schnitzler, e o de uma empregada doméstica cuja história ocupou as primeiras páginas dos jornais durante a juventude de Jean Améry. A empregada atirou-se de uma janela alegadamente por não ver correspondida a sua paixão por um galã da rádio. Gustl pensa em suicidar-se por não se julgar à altura do “uniforme imperial”, depois de ter sido humilhado numa briga com um padeiro. Em ambos os casos, Améry detecta nas “personagens” a consideração de valores que se sobrepõem à própria vida. No caso de Gustl, o código de honra do exército, o significado do uniforme que enverga. No caso da empregada, “a voz maviosa do artista”, as promessas de felicidade que não se podem cumprir. O primeiro é um quase-suicídio político, relativo à polis, anti-antigoniano (a razão do corpo colectivo impera sobre o indivíduo). O segundo é pessoal, íntimo e sentimental, claramente wertheriano. No entanto, Werther (A Paixão do Jovem Werther, Goethe) é não apenas um suicida mas também, na definição de Améry, um suicidário, alguém que corteja a ideia da morte voluntária e que é capaz de produzir pensamento sobre o tema (Améry, ele próprio, é o exemplo do suicidário que, por fim, se suicida). Eis a síntese da teoria wertheriana: “A natureza humana [...] tem os seus limites: pode suportar a alegria, o sofrimento, a dor até certo ponto, arruína-se, porém, mal ele seja ultrapassado. Assim, a questão não é ser-se fraco ou forte, mas conseguir suportar a medida do seu sofrimento, seja moral ou físico. E acho tão estranho chamar covarde a quem põe fim à própria vida como a quem morre de febre maligna.” Werther, incapaz de lidar com a frustração amorosa e social, não morre de febre maligna. O seu suicídio, baseado na teoria que expôs, é o reconhecimento de que, em determinadas circunstâncias, a vida não é o bem supremo. Uma ideia que tem sido aproveitada pela literatura, das tragédias gregas ao romance do século XIX.

 

No seu romance mais recente, The Humbling, Philip Roth elenca alguns suicidas em peças teatrais (Hedda Gabler, Jocasta, Ofélia, Fedra) para concluir que “what was remarkable was the frequency with which suicide enters into drama, as though it were a formula fundamental to drama, not necessarily supported by the action as dictated by the workings of the genre itself.” A estrutura dramática pede o suicídio. A literatura socorre-se da morte voluntária para punir os prevaricadores, para castigar os sobreviventes e para exacerbar o clímax. Neste sentido, Madame Bovary é uma descendente de Judas (as trinta moedas de prata que Judas recebeu certamente chegariam para pagar a dívida de três mil francos que é a gota de água que empurra Ema para a morte) e parente afastada da empregada doméstica de Améry. O seu suicídio é um castigo que não mancha as mãos de outros e resulta de ilusões amorosas de natureza muito distinta da paixão do jovem Werther. Os sentimentos nobres de Werther contrastam com a sensualidade pequeno-burguesa e um tanto reles de Ema, embora as personagens partilhem fraquezas de carácter. Enquanto Goethe “mata” Werther de uma forma limpa e digna, Flaubert “constrói” a agonia de Ema (que ele dizia ter sentido fisicamente) como um resumo da sordidez moral da personagem. Mas a grande diferença reside aqui: Werther escreve, Ema lê. Madame Bovary não é uma suicidária. O suicídio é apenas a resposta desesperada à situação em que caiu. A antítese do suicídio de Jeremiah de Saint-Amour, uma das mais fascinantes do vasto panteão de personagens inesquecíveis concebidas por Gabriel Garcia Marquez. “Nunca hei-de ser velho”, confidencia de Saint-Amour à amante. Refugiado antilhano, inválido da guerra, fotógrafo de crianças e xadrezista, Saint-Amour prepara o suicídio com método. O acto não nasce do desespero. É um projecto acalentado durante anos, planeado ao pormenor e executado sem falhas. Encerra-se em casa, fecha portas e janelas e vaporiza cianeto de ouro numa tina. Na porta deixa um aviso: “Entre sem tocar e avise a polícia”. Deixa uma carta de onze páginas ao seu melhor amigo, o Doutor Juvenal Urbino. A caligrafia é “esmerada”. O suicídio de de Saint-Amour, uma personagem secundária, ocorre logo nas primeiras páginas de Amor nos Tempos de Cólera. Por estes motivos, não pode ser lido como um “truque” dramático exigido pelas convenções do género romanesco. É apenas a afirmação serena mas resoluta, expurgada de todo o desespero, de que até na literatura a vida não é o bem supremo.

 

No Inferno de Dante, os suicidas habitam o sétimo círculo. Pier della Vigna é o primeiro encontrado por Dante no seu percurso. Della Vigna era secretário de Frederico II. Conhecedores da influência que exercia sobre o imperador, os nobres conspiraram contra Della Vigna, que acabou acusado de traição. No contexto da obra de Dante, este episódio equivale a uma absolvição de Della Vigna, vítima de uma acusação injusta. Para o tema do suicídio, mostra-nos que há coisas sem as quais não vale a pena viver. Um uniforme, a voz de um cantor, a honra, o respeito pelos nossos mortos, a juventude, a confiança daqueles que servimos e amamos, tudo o que nos pode parecer fútil ou desnecessário quando comparado com o bem que é a vida, é essencial para que alguns homens e mulheres insistam em viver. A vida e os livros estão aí para nos ensinar esta lição.

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