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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

28
Set10

Pontos no i

Bruno Vieira Amaral

Deus escreve direito por linhas tortas, insondáveis são os seus juízos e tal, mas a haver mão guiada por intervenção do Além para manhosamente vingar o autor de Aparição, essa mão foi a de J. Rentes de Carvalho. Alimentar um ódio, mesmo que de estimação, durante dezenas de anos, sofrer as idiossincrasias detestáveis de alguém que não suportamos, enfim, cultivar uma aversão a ponto de a expressar com “desmesurada fúria”, lamento dizê-lo, é coisa que cobra os seus juros. Quando odiamos com tamanha intensidade aproximamo-nos, consciente ou inconscientemente, do objecto desse ódio. Rentes de Carvalho não diz que se estava nas tintas para Vergílio Ferreira ou que nunca prestou atenção ao que ele escrevia, diz que era uma das suas bêtes noires. Diz que o leu por obrigação de ofício, mas leu-o, e suspeito que a leitura daquela má, empolada e nevoenta prosa tenha sido, por vezes, fonte daquele género de prazer que só o que nos exaspera profundamente é capaz de proporcionar.

 

Concedo que não é no estilo de um e de outro que a comparação faz sentido. Dizer que a prosa de Vergílio Ferreira é empolada e nevoenta é uma caracterização exacta, o contrário do estilo luminoso e límpido de Rentes de Carvalho. Alguns diálogos de Aparição são tão rigidamente filosóficos, tão falsos, que, lidos hoje, não só nos parecem datados como patéticos. Os diálogos de A Amante Holandesa, pelo contrário, nunca tropeçam na voz do escritor. O tom professoral de Vergílio Ferreira, que faz com que algumas personagens não sejam mais do que meros títeres animados por ideias filosóficas que lhes pré-existem, contrasta com a voz humana e simples de Rentes de Carvalho. Resumindo e exemplificando: em Vergílio Ferreira, o telúrico é uma ideia, em Rentes de Carvalho, uma realidade. E no entanto, o que os aproxima é aquilo que os afasta, como dois parentes desavindos, o que é visível nos pontos de contacto entre Aparição e A Amante Holandesa. Os narradores e protagonistas são professores que, pelas suas acções, omissões e sugestões, desencadeiam uma série de eventos que culminam em tragédia. Ambos são elementos estranhos num meio rural, provinciano e que lhes é hostil. Ambos são vítimas da voracidade dos autóctones. No entanto, o mais importante é que ambos propõem ao leitor o problema moral (para utilizar uma expressão de Susan Sontag em relação a Camus) e a questão da responsabilidade individual. Há outras curiosidades (o homem enforcado, a morte dos cães) que o escritor poderá desvaloriar como meras coincidências mas que cabe ao crítico evidenciar. Como é óbvio, não procedi a uma comparação exaustiva entre as duas obras, mas não tenho qualquer dúvida que essa comparação seria digna de uma tese, ainda para mais numa altura em que há por aí tantas teses indignas.

 

Era esse o sentido da comparação, temática e não estilística (embora isso não seja claro na minha crítica) entre Rentes de Carvalho e Vergílio Ferreira. E se, no que escrevi,  Rentes de Carvalho viu a mãozinha de um espírito vingativo (mas certamente pouco interessado em publicitar a vingança, ou teria escolhido para intermediário um crítico do Expresso ou do Público) eu agora vejo, no romance que escreveu, uma resposta longínqua à obra e ao estilo de Vergílio Ferreira, aproximando-os mais do que seria o desejo do autor.

12
Set10

Entre Bragança e Amesterdão

Bruno Vieira Amaral

Publicado no

 

 

“Num meio pequeno é assim que se sobrevive. As raivas, as invejas e os ódios vêm esporadicamente à tona, por vezes explodem, mas logo depois tudo assenta e o dia-a-dia continua a arrastar-se, sempre igual, imutável na sua fingida serenidade.” p. 107

 

A Amante Holandesa começa num registo evocativo da infância numa aldeia de Trás-os-Montes. Rentes de Carvalho (n. 1930) banha o relato de nostalgia: os sonhos de um rapaz pobre, os montes desertos, o comboio da linha do Sabor. Gradualmente, a história vai ganhando contornos mais negros. As recordações de Amadeu, ex-emigrante na Holanda e regressado à aldeia com a mágoa de ter deixado para trás mulher e filha, adensam o sentimento de frustração do narrador, amigo de infância de Amadeu e professor de História em Bragança. O rememorar de uma paixão avassaladora nas palavras de um homem simples e analfabeto perturba o professor, magoado com a vida, desiludido com o casamento e mortificado por segredos fundos e perigosos. Aquela história alheia, quase romanesca, acirra o demónio dos seus próprios falhanços, da monotonia da sua existência.

 

Um primeiro clímax encerra a metade inicial do romance, mas o mote para o que se segue já está lançado. Rentes de Carvalho pega nas pontas soltas e estica as cordas até um máximo de tensão. Então tudo se precipita e os pequenos incêndios na vida do professor alastram num grande e incontrolável fogo: o casamento, a relação com as gentes da aldeia e as consequências dos pecados ocultos. No meio da devastação, é a chegada da filha de Amadeu, fantasma e aparição, que oferece ao professor uma última esperança.

 

Uma personagem como a do professor, que nos faz balançar entre a repulsa e a empatia, é uma enorme criação literária. Apesar de ser vítima dos comportamentos gregários e ferozes dos habitantes da aldeia, compreende-os e perdoa-os porque também ele anseia pelo perdão que lhe é negado. Com uma linguagem dura e terna, simples e carregada de sentido, Rentes de Carvalho recria na perfeição a vida num meio pequeno e disseca as entranhas de um povo – a obsessão com as vidas dos outros, a crueldade que explode em violentas erupções para logo se camuflar nos hábitos rotineiros, os ódios alimentados na sombra, os desgostos inomináveis.

 

Aos 80 anos, com uma obra que faz lembrar um Vergílio Ferreira depurado de derivas filosóficas, Rentes de Carvalho afirma-se como mestre tardio e absoluto da nossa literatura.

06
Set10

Ler

Bruno Vieira Amaral

Na revista Ler deste mês

 

 

Sobre Zeitoun, de Dave Eggers:

 

"A melhor parte do livro vem com a tempestade: uma Nova Orleães devastada vista de uma perspectiva singular. Sem acesso a qualquer meio de comunicação, o ponto de vista de Zeitoun é “puro”. Nada transmite melhor essa ideia do que a sucessão de imagens irreais com que ele se depara (o resgate de uma prostituta, cavalos a pastar no meio da cidade). Zeitoun é tanto o último homem de um mundo que acabou como o primeiro homem de um novo mundo. Génesis e Apocalipse. A Estrada, de Cormac McCarthy, paira nestas páginas. Mas a realidade vai interromper esse conto pós-apocalíptico de um homem numa missão sagrada de auxílio a estranhos: o bom samaritano metamorfoseia-se em personagem de Kafka."

 

Sobre A Cidade Ausente, de Ricardo Piglia:

 

"Publicado em 1992, A Cidade Ausente, do argentino Ricardo Piglia, é relato policial, distopia futurista (esta Buenos Aires foi projectada no atelier Huxley, Bradbury & K. Dick), revisitação dos clássicos (A Divina Comédia, As Mil e uma Noites), labirinto de Borges e quebra-cabeças inspirado em Joyce. Tamanha cópia de referências insere Piglia numa linhagem erudita e urbana das letras argentinas, a mesma do próprio Borges, de Cortázar ou do santo padroeiro deste romance que é Macedonio Fernandéz."

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