Pontos no i
Deus escreve direito por linhas tortas, insondáveis são os seus juízos e tal, mas a haver mão guiada por intervenção do Além para manhosamente vingar o autor de Aparição, essa mão foi a de J. Rentes de Carvalho. Alimentar um ódio, mesmo que de estimação, durante dezenas de anos, sofrer as idiossincrasias detestáveis de alguém que não suportamos, enfim, cultivar uma aversão a ponto de a expressar com “desmesurada fúria”, lamento dizê-lo, é coisa que cobra os seus juros. Quando odiamos com tamanha intensidade aproximamo-nos, consciente ou inconscientemente, do objecto desse ódio. Rentes de Carvalho não diz que se estava nas tintas para Vergílio Ferreira ou que nunca prestou atenção ao que ele escrevia, diz que era uma das suas bêtes noires. Diz que o leu por obrigação de ofício, mas leu-o, e suspeito que a leitura daquela má, empolada e nevoenta prosa tenha sido, por vezes, fonte daquele género de prazer que só o que nos exaspera profundamente é capaz de proporcionar.
Concedo que não é no estilo de um e de outro que a comparação faz sentido. Dizer que a prosa de Vergílio Ferreira é empolada e nevoenta é uma caracterização exacta, o contrário do estilo luminoso e límpido de Rentes de Carvalho. Alguns diálogos de Aparição são tão rigidamente filosóficos, tão falsos, que, lidos hoje, não só nos parecem datados como patéticos. Os diálogos de A Amante Holandesa, pelo contrário, nunca tropeçam na voz do escritor. O tom professoral de Vergílio Ferreira, que faz com que algumas personagens não sejam mais do que meros títeres animados por ideias filosóficas que lhes pré-existem, contrasta com a voz humana e simples de Rentes de Carvalho. Resumindo e exemplificando: em Vergílio Ferreira, o telúrico é uma ideia, em Rentes de Carvalho, uma realidade. E no entanto, o que os aproxima é aquilo que os afasta, como dois parentes desavindos, o que é visível nos pontos de contacto entre Aparição e A Amante Holandesa. Os narradores e protagonistas são professores que, pelas suas acções, omissões e sugestões, desencadeiam uma série de eventos que culminam em tragédia. Ambos são elementos estranhos num meio rural, provinciano e que lhes é hostil. Ambos são vítimas da voracidade dos autóctones. No entanto, o mais importante é que ambos propõem ao leitor o problema moral (para utilizar uma expressão de Susan Sontag em relação a Camus) e a questão da responsabilidade individual. Há outras curiosidades (o homem enforcado, a morte dos cães) que o escritor poderá desvaloriar como meras coincidências mas que cabe ao crítico evidenciar. Como é óbvio, não procedi a uma comparação exaustiva entre as duas obras, mas não tenho qualquer dúvida que essa comparação seria digna de uma tese, ainda para mais numa altura em que há por aí tantas teses indignas.
Era esse o sentido da comparação, temática e não estilística (embora isso não seja claro na minha crítica) entre Rentes de Carvalho e Vergílio Ferreira. E se, no que escrevi, Rentes de Carvalho viu a mãozinha de um espírito vingativo (mas certamente pouco interessado em publicitar a vingança, ou teria escolhido para intermediário um crítico do Expresso ou do Público) eu agora vejo, no romance que escreveu, uma resposta longínqua à obra e ao estilo de Vergílio Ferreira, aproximando-os mais do que seria o desejo do autor.