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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

22
Nov10

Filho de Jesus

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i

 

 

“Ele espreitou para a sala de urgências e viu a situação: o funcionário – isto é, eu – ao lado do auxiliar, Georgie, ambos drogados, olhando para um paciente deitado com uma faca a sair-lhe do rosto.” P. 60

 

Na última história de Filho de Jesus (1992), uma das personagens pergunta aos seus companheiros nos Alcoólicos Anónimos: “Alguma vez andaram [...] sentindo que carregam uma carroça de pecados atrás de vocês, e alguma vez vos ocorreu: Atrás destas janelas, atrás destas cortinas, as pessoas vivem vidas normais e felizes?” É como se espreitasse para as casas de um romance de Updike (aqui recenseado na semana passada) e se sentisse à margem da felicidade que imagina existir ali. Filho de Jesus é sobre a multidão de derrotados nas margens do sonho americano. Denis Johnson (1949) traz a América on the road para este livro que soa a canção melancólica sobre heroína, vidas desperdiçadas, corpos gastos sem amor para dar, gente sem destino que vive de esquemas. O fundo é religioso, mas da religiosidade poeirenta das estradas e das pequenas epifanias da droga. A salvação não é uma questão da eternidade; é urgente como acordar e sentir a alegria estúpida de se estar vivo: “Senti-me doido de felicidade por não estar morto.” (p. 39); “Nada importava excepto estarmos vivos.” (p. 78). Nestes momentos, a vida ganha alguma definição, contrasta com os sonhos e com a realidade imaterial e nauseante tal como percebida por um drogado. No meio deste êxodo sem direcção multiplicam-se as associações bíblicas: “Parecia o momento anterior à chegada do nosso Salvador” (p. 45); “A sua mão esquerda não sabia o que a sua mão direita fazia” (p. 46); “A Criação deve ter sido semelhante” (p. 54); “O céu está azul e os mortos vão regressar” (p. 63); “os anjos desciam de um Verão brilhante e azul, os seus enormes rostos iluminados pela luz e plenos de misericórdia.” (p. 66); “O peito dele era como o peito de Cristo. Provavelmente era Cristo em pessoa.” (p. 77).

 

No seu pior, as onze histórias, todas narradas pelo protagonista que conhecemos apenas como Cabeça de Merda, estão marcadas pelo lirismo duvidoso e auto-indulgente que normalmente resulta do cruzamento entre consumo de drogas e produção poética. Denis Johnson dá-nos corações cobardes, mulheres que querem comer o coração do homem, lágrimas de um cão, belezas e almas à espera de nascerem, casas e pessoas refulgentes e visões entre Ziggy Stardust e Lucy in the Sky with Diamonds. Fragmentos que apenas servem para embelezar a derrota. E é quando Johnson nos mostra a derrota sem rodeios que o livro é mais autêntico e a sua arte mais pungente.

15
Nov10

Pecados e Seduções

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i

 

Em Abril de 1968, a revista Time falava de uma “sociedade adúltera”. Na capa, uma imagem de John Updike (1932-2009). O pretexto, a publicação do romance Couples, um tratado sobre adultério nos subúrbios. Em Pecados e Seduções, de 2004, Updike regressou ao local do crime - um local de onde nunca saiu completamente – para o tingir de cores fúnebres e do inevitável conservadorismo da velhice. Owen Mackenzie tem setenta anos e vive com a segunda mulher, Julia, cinco anos mais nova. Recorda a infância, o primeiro casamento e as consecutivas traições que o marcaram. O homem envelhecido observa o adúltero compulsivo. Este vivia numa época em que a noção de pecado estava desfeita. O adultério já não era a ignomínia da América puritana de A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, era a argamassa de transgressão tolerada que sustentava todo o edifício da comunidade. A dada altura, impera a ideia que os subúrbios não são a colmeia que acolhe milhares de abelhas insensíveis à infelicidade, mas um sistema montado com o fim de promover o adultério com o mínimo de culpa, a forma de beneficiar da respeitabilidade social e, ao mesmo tempo, não perder as vantagens da revolução sexual. O que os relvados e as cercas brancas eram para o urbanismo, o adultério era para a paisagem sentimental dos subúrbios: a marca definidora de um estilo de vida. Com a aproximação da morte, Owen redescobre os valores sólidos da América (família, comunidade, religião). O medo torna-o conservador: “Mas o progresso é triste, a mudança é triste, a selecção natural é muito triste.” (p. 292).

 

Pecados e Seduções não podia ser mais androcêntrico. Embora narrado na terceira pessoa, o ponto de vista é o de Owen ou, para ser exacto, da sua glande. As suas conquistas distinguem-se umas das outras pela orografia ginecológica e pelos apetites sexuais, como se Faye, Alissa, Stacey, Antoinette, fossem uma única mulher, a outra, desprovida de substância. Se as mulheres são satélites, os filhos são partículas de pó suspensas no ar, quase invisíveis. Só o homem, o Rei-Falo, interessa. Mas o vigor da juventude vai-se extinguindo e com ele a auto-suficiência, o egoísmo. Os subúrbios, outrora biombos que ocultavam a inquietação sexual, transformam-se em antecâmaras da morte, asilos de serenidade.

 

Melhor do que qualquer outro escritor da sua geração, Updike dissecou o ciclo de vida da classe média do pós-guerra: do adultério como distracção do vazio à reconciliação espiritual, que é como quem diz, o caminho que vai do sexo à morte.

10
Nov10

A Dama de Espadas

Bruno Vieira Amaral

Publicado no i

 

“Assim vi Eva Teresa passar de criança a mulher. Sem quase me aperceber, o sentimento meio paternal que lhe dedicava passou a atracção adulta. Contemplava as fotografias lembrando o espírito travesso da garota agora a cintilar no seu corpo novo.” P. 52

 

 

Nem todos os romances aspiram à eternidade. Alguns ficam felizes se aguentarem um par de horas. São os que, no meio de um despretensiosismo simpático, querem apenas entreter. Quando o leitor chega ao final quase que pode ouvir o romancista a agradecer-lhe o tempo que lhe dedicou. É por isso que “crónica” é a palavra mais importante na capa do novo romance do jornalista Mário Zambujal. A escrita tem a leveza malandra da crónica (“Se bem que peito de mulher nada tenha de indecente. A indecência mora nos sujeitos com vocação para sutiãs” ou “a tua cachaça é como o sexo: a melhor é a segunda.”). Tem um elevado teor de boémia, de whisky bebido em ambientes de fumo: redacções de jornais, tascas, bordéis. Mas a crónica, mais do que crónica, é anacrónica. Fala de uma Lisboa desaparecida que, desajeitadamente, Zambujal exuma e traslada para os nossos dias. Se o autor tivesse situado a acção do romance nos anos 60 teria feito um enorme favor à verosimilhança. O namoro inicial é à antiga, a perda da virgindade do protagonista é à antiga, o jornal onde trabalha é à antiga e, de repente, as personagens falam ao telemóvel e já é proibido fumar em recintos fechados. O tom divertido e de um sentimentalismo marialva também não chega para sustentar um romance sólido. Daí que Dama de Espadas seja quase só acção. Zambujal não perde tempo a envolver o leitor, a criar um ambiente. Exemplo: o primeiro encontro a sós de Filipe e de Eva Teresa, o momento dramático fulcral em que as personagens revelam os seus sentimentos, é despachado numa página. O romancista parece ameaçado pelo prazo de entrega e leva as personagens atrás, sempre com pressa de chegar a algum lado que, neste caso, deve ser o fim do romance. O leitor corre atrás da acção que vai sempre uns metros à frente, como um amante em fuga a fechar os botões das calças. O mistério resolve-se em duas penadas, o que é pena porque o enredo, o esqueleto narrativo, é bom e merecia mais tempo do que o que Zambujal lhe dispensou. É o mesmo que ser dono de um terreno em localização privilegiada e construir aí uma barraca. Chega-se ao fim, depois do putativo clímax, e é como na piada (à antiga) “vai ser tão bom, não foi?”

02
Nov10

Ler / Novembro

Bruno Vieira Amaral

Escritos Pornográficos, Boris Vian

 

"A rebeldia e o humor do multifacetado Vian manifestam-se nesse e noutros poemas em que sugere uma utilização não-culinária do pepino, celebra as herdeiras de Safo como objectos do desejo masculino, expõe as palpitações lúbricas que se ocultam debaixo das batinas eclesiásticas e estuda a anatomia feminina como ameaça à integridade do membro viril."

 

História Política do Diabo, Daniel Defoe

 

"Os maus livros de História partilham uma virtude: dizem-nos sempre mais sobre quem os escreveu e a época em que foram escritos do que sobre o eventual objecto de estudo. História Política do Diabo, sendo um mau livro de história, diz-nos muito sobre a mentalidade e os debates de uma época em que o Iluminismo começava a impor a sua luz às trevas do fanatismo e da superstição. Para Defoe, no entanto, quer as superstições, quer o racionalismo, serviam os propósitos diabólicos. As primeiras transmitindo uma imagem errada do Diabo, o segundo negando a sua existência."

 

Vício Intrínseco, Thomas Pynchon

 

"A América deste livro é a América da paranóia e das conspirações, de Salem e do Macartismo ao surgimento das figuras negras que marcam o fim simbólico do Verão do amor e da idade da inocência hippie: Charles Manson e Richard Nixon, duas ausências omnipresentes na atmosfera do romance. Misturados todos os ingredientes pelo virtuosismo pop de Pynchon, Vício Intrínseco resulta num requiem psicadélico e paranóico para o “pequeno parêntesis de luz” (p. 279) que foram os anos sessenta."

 

Papéis Inesperados, Julio Cortázar

 

"Mesmo afastando-se de um “comunismo esclerosado e dogmático”, Cortázar padecia da célebre hemiplegia moral patente na comparação demagógica entre a intervenção americana no Vietname e a soviética na Checoslováquia: “Eu pergunto-lhe […] se algum dos repórteres da Life viu crianças queimadas com napalm nas ruas de Praga.” Elucidativo. Comparem-se os textos sobre uma visita ao México (Um Cronópio no México) e uma viagem a Cuba (Novo Itinerário Cubano). Enquanto neste último se nota um deslumbramento ingénuo que retira à prosa algum do seu brilho cínico, de observação desinteressada, do humor absurdo, o texto sobre o México é literariamente muito mais conseguido (aos que, antes de nós, fizeram esta observação Cortázar mandou-os para a “puta que os pariu”). Quando o escritor transporta para a escrita a bagagem ideológica tem de deixar algum do talento na alfândega."

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