Turnos de doze horas, vê bem, doze horas a anotar matrículas, folhas atrás de folhas, o supervisor a avisar-me, não te distraias, hora de entrada e hora de saída, não pode haver matrícula com entrada e sem saída, só os da administração, com saída e sem entrada, todas as matrículas, não te esqueças, não me falhes, é um cliente importante, e o relatório, preenche o relatório todos os dias no fim do turno, não houve qualquer incidência digna de registo, letras e números, o dia na sua inteireza lá fora, uma nesga de mundo, uma pequena parcela, o sol a abrir, depois a sombra ao fim da tarde, depois a noite, os faróis dos carros, o meu dia inteiro ali, letras e números, uns atrás dos outros, sem interrupções, até ser uma massa abstracta de símbolos, uma pintura, um poema, uma equação matemática, dia 12 de Outubro de 1999, dois furos na folha, a folha para o dossier, o cliente vem confirmar, não vem todos os dias, é quando se lembra, talvez um dia regresse lá, pego nas folhas e apresento-as como a minha primeira obra poética, ou faço uma exposição, eu sou um artista, até que me atrapalhei, já te contei que um dos meus colegas se chamava Messias e o outro Salvador? Não me valeram de nada, foi nesse dia, no dia em que me atrapalhei e não anotei uma única matrícula, que perdi a fé, o Messias e o Salvador, impotentes, embasbacados, foi nesse dia que a depressão chegou, as pessoas dizem que vão ficando assim, mas eu digo-te, em verdade te digo, 12 de Outubro de 1999, foi nesse dia que a depressão chegou, foi no momento em que abri uma garrafa de água, precisamente, nesse momento, será que havia um espírito na garrafa, porque foi no momento em que rodei a tampa, no segundo em que ouvi o estalido do plástico, dois, três, quase simultâneos, nesse momento, acredita, a depressão caiu-me, nada de uma insinuação lenta, de predador a farejar a presa, aquela tosse seca que afinal é o primeiro sintoma de um cancro, a depressão caiu-me como uma epifania às avessas, uma súbita revelação que não revela nada, tinge tudo da mais funda escuridão, um negrume que te entra pelas narinas, acreditas que eu me lembro do momento em que inspirei a depressão pela primeira vez, como um gás tóxico que te enche o peito de um peso que é todo morte, o filho-da-puta de um peso, um peso triste, um peso pode ter essa qualidade, sabias, porque há pesos alegres, acreditas, o peso de se ser alguém, de ter alguém, o peso de termos feito alguma coisa, o peso de termos feito uma pedra, e há o peso vazio e triste de se encher folhas e folhas com matrículas, de passar doze horas a anotar matrículas, nenhuma incidência digna de registo, naquele dia escrevi no relatório: o mar bateu-me nas rochas e eram os meus ossos, acreditas, o mar bateu-me nas rochas e eram os meus ossos, assinei, Bruno Vieira.