Era o casal mais feliz do mundo, do nosso mundo, o mundo que começava nos cafés e nas barraquitas onde se vendia de tudo um pouco, de hortaliça a roupa de criança, e onde o Zé dos Sapatos começou o seu império de calçado, malas de viagem e carteiras em pele, e acabava perto do pinhal, de um lado, que diziam habitado por espíritos malignos, e do cemitério, do outro, semeado de corpos incorruptíveis, mais pela natureza argilosa da terra do que pela santidade dos mortos. Viviam com os quatro filhos numa barraca, das que tinham sido construídas perto das hortas, suficientemente longe do bairro para que não os considerássemos vizinhos, mas demasiado perto para que fossem estranhos. Tinham chegado numa altura em que já não havia casas para ocupar, mas não desanimaram. Meteram mãos à obra e ergueram a barraca à qual faltava tudo menos água da chuva e ratos. Andavam sempre sujos, os cabelos crespos, as roupas manchadas, as caras como que cobertas de fuligem, mas, onde quer que fossem, iam sempre abraçados e sorridentes. Ele, muito alto, os cabelos grisalhos a emoldurarem um rosto clássico, cujas linhas nem os anos, nem a penúria tinham esbatido por completo; ela, miudinha, não parecia mãe de quatro filhos, o olhar vivo, inquebrantável. Alguém lhes chamou o casal feliz, e o adjectivo trazia todo o ressentimento mesquinho que cresce nos bairros como ervas daninhas. Eram felizes contra todas as evidências, contra a pobreza, contra as pessoas que, nas suas costas, se riam daquela felicidade assente em nada, contra todos nós. Pareciam imunes a todas as desgraças. Certa noite, ao regressarem do café, foram apressados pelos gritos do filho mais novo, que ainda não tinha feito um ano. Encontraram-no deitado no caixote da fruta que lhe servia de berço, o cobertor manchado de sangue, a orelha esquerda parcialmente comida pelos ratos. Meses depois, um incêndio que começou na incúria do Abel, um velho cabo-verdiano, ex-embarcadiço, que se gabava de conhecer a América e que passava as noites bêbado e a gritar uns latins que aprendera com um padre na Ilha do Sal, destruiu várias barracas, entre as quais a do casal feliz. Ninguém morreu e menos de um mês depois do incêndio as barracas estavam novamente de pé. Aos dezasseis anos, Amílcar, o filho mais velho, foi ceifado por um comboio. Tiveram de lhe amputar uma perna. O irmão que se lhe seguia desapareceu durante dois anos. Regressou na condição de arrumador de carrinhos de choque, os braços tatuados de cruzes e animais, os olhos iguais aos da mãe, mas cheios de um ódio triste. Partiu uma semana depois e nunca mais foi visto. Quando as máquinas da câmara demoliram as barracas, já nascera o quinto filho do casal feliz, o primeiro a conhecer uma casa de tijolos e cimento, com água canalizada e electricidade. Entretanto, o filho mais velho já se fizera ao mundo, com a perna sã que lhe restava, a outra de plástico, um par de muletas e o olhar triste da prole. A família do casal feliz era agora constituída pela Alice, quase adolescente, pelo filho que tinha sido atacado pelos ratos e pelo benjamim, uma criatura que nasceu com uma doença congénita e à qual, nos três anos que habitou este mundo, nunca se ouviu um choro ou uma palavra. Quando a irmã o levava até ao parque, sentado no carrinho torto e esfiapado que alguém lhes dera, os olhos fixos nas crianças que brincavam no escorrega e nos baloiços, ouvia-se-lhe um murmúrio fraco, uma queixa quase inaudível, um lamento de passarinho moribundo silenciado pelo sono e pelo cansaço de existir. O casal feliz soçobrou a esta última tragédia. Quando caminhavam juntos, cada um ia para o seu lado da tristeza, sem abraços ou mãos dadas. Um dia, a mulher foi-se embora e deixou os dois filhos com o marido. Dizem que foi com outro homem, mas ninguém sabia que homem era esse. A metade do casal feliz que ficou no bairro passava os dias no café. Falei com ele uma vez. Falou-me dos filhos, “o meu Amílcar anda bem, arranjou mulher, têm uma casinha jeitosa, está bem”, e de projectos mirabolantes, a imaginação propulsionada pelo bagaço. Pareceu-me o homem mais triste do mundo. Uns meses mais tarde, a GNR foi buscá-lo a casa. A Alice foi levada para o hospital, a cara inchada e negra, o corpo macerado. Carregava no ventre a semente do próprio pai.