Não havia momento em que eu me sentisse mais desamparado do que quando, na escola, me perguntavam o que é que o meu pai fazia. Tinha a vaga ideia de que ele vivia algures em França, mas sobre a coisa sólida e definitiva que a profissão do pai representa para a imaginação infantil eu não sabia nada. A pergunta “O que é que faz o teu pai?” não admite tergiversações, excessos de ficção. Desde os meus oito anos peguei nos cacos da realidade e tentei juntá-los num vaso coerente e credível, que não suscitasse muitas questões ou acusações de falsidade. Futebolista foi, naturalmente, a primeira opção. O meu pai tinha jogado futebol, mas um futebolista era, e ainda é, uma entidade mítica, semi-divina, que atiçava curiosidades e a vontade de saber pormenores. Em que clube jogava, a que posição, e isso obrigava-me a uma mentira elaborada, demasiado técnica, que eu não pretendia. Lembrei-me então de que, entre os vestígios que sobravam da existência do meu pai, havia um cartão de funcionário da Quimigal. A partir daí, era assim que o identificava: “funcionário da Quimigal”, uma actividade suficientemente desinteressante para desmotivar extensos questionários de colegas. Mais tarde, quando a cortina de névoa sobre a vida do meu pai se desfez um pouco, a quem me perguntava eu respondia que era militar, resposta um tanto vaga, com uma aura de mistério e romantismo, que exercia grande fascínio sobre os meus amigos e igualmente sobre mim, ao mesmo tempo narrador e ouvinte da história que conhecia quase tão mal quanto eles. Às vezes, depois da euforia da ficção, de exageros, de me perder na história que inventara, sentia-me triste, imaterial, evanescente, como se o meu pai não fosse real, como se eu não fosse real, como se nenhum de nós existisse. Talvez por tudo isto, eu invejava o Sérgio, rapaz tímido, desajeitado, aluno medíocre, mas cujo pai era maquinista da CP. Ser maquinista da CP era algo real, compreensível, verdadeiro. Não admitia dúvidas, nem questões. Era uma profissão límpida de que ele se orgulhava. Quando dizia que o pai era maquinista da CP, o acanhamento habitual evaporava-se, brilhavam-lhe os olhos, como quem exibe perante colegas pobres um objecto valioso. Nesses momentos, as minhas ficções pareciam-me absurdas, caía num desamparo profundo, sem um galho de realidade ao qual me agarrar. O meu pai nunca seria uma presença real, um pai que não tivesse de ser inventado. Seria sempre uma mentira. O outro, o maquinista da CP, era a verdade, o pai que acontece a um filho todos os dias.