Tiago Veiga: Uma Maratona
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“Um cavalheiro a sério nunca deve contar ao mundo o que faz para se manter em forma.” Não sendo, segundo o próprio, um cavalheiro, Haruki Murakami conta ao mundo o que faz para se manter em forma no seu livro de memórias Auto-Retrato do escritor enquanto corredor de fundo. Menciona as distâncias percorridas, o ritmo, as músicas que ouve enquanto corre, todo um conjunto de informações que induz no leitor um sentimento de cansaço e de frustração. Quando um escritor se aventura no exterior dos seus domínios preferimos o relato de fracassos à exaltação de proezas. O famoso ensaio de David Foster Wallace sobre Roger Federer é mais admirável porque sabemos que Wallace foi jogador de ténis federado. O texto beneficia dos conhecimentos técnicos do escritor mas é a sombra do seu próprio fracasso enquanto tenista que, paradoxalmente, ilumina aquelas palavras (nas palavras do próprio “The Moments are more intense if you’ve played enough tennis to understand the impossibility of what you just saw him [Federer] do.” Ao descrever a arte de Federer em termos que o próprio tenista suiço seria incapaz, Wallace redimiu-se da sua carreira medíocre. Naquele ensaio, Wallace superou Federer. Foi o único grand slam conquistado fora dos courts. Joyce Carol Oates, que escreveu um livro sobre boxe, nunca terá subido a um ringue e só podemos imaginá-la a aplicar um uppercut metafórico. A abordagem teórica, partindo do ponto de vista do espectador, protege-nos da angústia da influência literário-desportiva. No entanto, quando Murakami escreve sobre a sua experiência de mais de vinte anos de prática desportiva, das maratonas que completou, é como se nos esfregasse na cara a sua filosofia de mente sã em corpo são. Nesse momento lamentamos que não tenha sido um cavalheiro. Mais ousado ainda é o livro de António Goucha Soares, A Maratona de Nova Iorque. Neste caso trata-se de alguém que não é um escritor profissional a escrever sobre a experiência de maratonista amador. Os únicos momentos de conforto para o leitor sedentário são as descrições de alguns tormentos por que o autor passou. O resto é a penosa confrontação com a nossa preguiça, falta de disciplina e de espírito de sacrifício. Provavelmente o autor pretendia que este fosse um livro que os talk-shows tipo Oprah definem como “inspiradores”, no sentido de inspirar pessoas comuns a desempenhar tarefas que ultrapassam nitidamente os limites das suas capacidades psico-motoras (como atravessar o canal da mancha a nado ou correr de minissaia no centro de Riad). Mas o livro só consegue inspirar um ódio visceral pela humanidade, sobretudo direccionado para a parte privilegiada que habita no hemisfério norte e que, devido a um complexo sistema de garantias políticas e assistenciais, se pode dar ao luxo de calçar umas sapatilhas ao fim da tarde e correr hora e meia no Parque das Nações. Em jeito de vingança (porque afrontas destas merecem respostas à altura) decidi relatar a minha própria experiência enquanto corredor de fundo e à qual chamarei, para que não restem dúvidas sobre a sua autenticidade, Tiago Veiga: Uma Maratona.
1-3km: Começo a maratona num ritmo tranquilo, adequado às minhas capacidades e que, à primeira vista, não difere muito de andar. Passa por mim uma senhora que empurra um carrinho de bebé a uma velocidade vertiginosa e, poucos metros à frente, sou ultrapassado por um casal de velhinhos. Não me preocupo. Isto é como acaba e aqueles insensatos não têm noção do que os espera. Já vi muitas maratonas na televisão e sei como é difícil aguentar a prova. Mesmo que se tenha o cuidado de ingerir bebidas isotónicas e barras energéticas é quase inevitável mudar de canal ao fim de meia hora. Entretanto, como me sinto bem, aumento o ritmo, o que me provoca uma dor lancinante (ou talvez seja excruciante, embora a escolha do adjectivo seja neste momento uma questão menor) na perna esquerda, obrigando-me a diminuir novamente o ritmo.
3-10 km: A maratona é, acima de tudo, um desafio psicológico e um teste à capacidade de resistência mental, mas podiam ter-me avisado sobre as cãibras. Lembro-me agora que, ao contrário de António Goucha Soares, não besuntei os meus mamilos com vaselina porque desconfiei que a actividade implícita nesta passagem não fosse a corrida: “Com os mamilos pacientemente besuntados com vaselina, vestido com um impermeável e chapéu de corrida, meti-me no carro em direcção à Expo.” (p. 31). Parece que me enganei. Não sei se será essa a causa, mas sinto-me apenas ligeiramente melhor do que Teresa no final de Amor de Perdição.
10-13 km: finalmente, recuperei um pouco. Voltei a respirar e o ritmo cardíaco estabilizou nas 250 pulsações por minuto. Perdi a audição do ouvido direito, o esquerdo está a sintonizar a RDP África e algures no meu cérebro um grupo de funcionários públicos húngaros discute, entre rajadas de metralhadora, os romances de Peter Esterházy. Nada disto me preocuparia se não estivesse a ser perseguido por Homais, Lheureux, o próprio Flaubert e a minha tia Isolina que, sem que eu perceba porquê, brande um exemplar de Pensamentos, de Pascal, e grita que “é necessário particularizar esta proposição geral”, palavras que me deixam à beira das lágrimas ou de uma paragem cardíaca.
13-17 km: primeiro abastecimento. Meia banana. Metade de uma banana já não é uma banana e deveria ser designada por um outro vocábulo, tal como beterraba ou torresmo, o que se traduziria num tremendo transtorno para os sectores do retalho e da restauração – o meu pâncreas acabou de segregar esta assustadora aliteração. Com tudo isto esqueci-me do abastecimento e tento distrair-me com temas, tentações, traumas, tungsténio...
17-20 km: admiro a capacidade de análise de Goucha Soares enquanto corre porque eu nem sei ao certo onde estou e nem sequer sentido faço nespereiras. Demografia: em Oxford, reparou na “crescente asiatização da população estudantil”; arquitectura: “É uma afronta à identidade nacional, por violar o espaço envolvente das zonas históricas, bem como uma denegação do direito dos cidadãos usufruírem plenamente a herança visual da cidade” (passagem inspirada nas diatribes de Miguel Sousa Tavares); sociologia: “O passeio das famílias deixou de ser na Marginal, para irem ao centro comercial”; política: “O Lula prometeu oferecer três refeições a todos os brasileiros (...). Com um programa destes, qualquer pessoa venceria as eleições num país sul-americano” (a não ser que um maquiavélico General também prometesse sobremesa e café). Poderia igualmente expor as minhas ideias sobre estes e muitos outros assuntos, mas a tarefa de respirar consome-me todos os recursos.
20-23 km: necessidades fisiológicas. Como é que não me lembrei disto? Estou à rasca para ler um parágrafo de Céline e nunca mais passamos perto de uma livraria ou de uma biblioteca pública. Será que algum dos concorrentes sabe um parágrafo de cor? Uma frase? Não aguento mais. Que se lixe! Também serve uma frase do romance de Vítor Serpa: “os meus mamilos inchados, a cara desfocada para não se saber quem sou e não ter de viver, para sempre, com a vergonha pública desta violentação.” Que alívio! Embora preferisse um comentário sobre as contratações do Benfica, não há dúvida que, nestas condições, reencontrar a palavra “mamilos” dá-me um ânimo suplementar.
23-29 km: a meia-maratona já ficou para trás e agora só o talento de um Dante ou de um crítico musical do Público pode descrever as minhas sensações. Eu sou qualquer coisa “que já não é electrónica ou jazz, mas sim uma forma espiritual assente num esqueleto” (cf. João Bonifácio, crítica a 93 Million Miles) e é como se todos nós fôssemos “espectros que se movem por entre camadas de origens remotas” (cf. Vítor Belanciano, crítica a Black Up). Onde encontrarei o Virgílio que me pergunte: “Porque vais desfalecido?” para que eu possa responder, citando o imortal Goucha Soares, “[tem] que ver com o exaurir da quantidade de glicogénio armazenado nos músculos das pernas.” Vejo o círculo infernal reservado aos maratonistas, onde para toda a eternidade milhares de quenianos e etíopes sofrem dores de burro atrozes e distensões musculares inaguentáveis.
29-35km: quase todos os maratonistas temem o “muro”, uma espécie de Adamastor que vive nos arredores do quilómetro 35 e que, durante o dia, trabalha numa empresa de congelados. Confirmo que o “muro” não existe. É uma construção poético-alucinada de mentes alteradas pela fadiga extrema e pela utilização de calções curtinhos. O que na verdade existe é uma escadaria de granito onde se acumulam os esqueletos dos maratonistas que não conseguiram passar deste ponto, no cimo da qual um ser com cabeça de homem e corpo de águia (o que lhe confere um aspecto mais patético do que bizarro) conduz um carro com rodas de fogo e, com a sua voz de buzina da Family Frost, promete descontos eternos em cursos de aramaico.
35-37 km: Onde é que eu estava com a cabeça quando resolvi correr a maratona? Demonstrando um nível cultural a que não posso aspirar, Goucha Soares colocou-se esta mesma questão, mas em italiano: “Chi me lo fa fare questa cosa”. Eu oiço múltiplas vozes dentro da minha cabeça mas a única que fala italiano é uma prostituta marroquina que agora se remeteu ao silêncio. Todas as outras, à excepção de uma que lê manuais de electrodomésticos, recitam artigos da Constituição da República Portuguesa. Nenhuma me ajuda a perceber porque me meti nisto. O grego que deu origem a esta tragédia morreu assim que chegou ao destino, o português Francisco Lázaro morreu porque se besuntou com qualquer coisa que não era vaselina, Carlos Lopes teve de vender aspiradores para sobreviver. Ou seja, os antecedentes demonstram que a vida depois da maratona oscila entre a morte e as vendas porta-a-porta. Mais uma vez: porque me meti nisto? Espero que dêem o meu nome a um pavilhão.
38 km: água, quantidades oceânicas de água, um céu de garrafões de água do Luso, água, wasser, water, eau, iágua, iemanjá, hectolitros de água, Alqueva...
38,9 km: arghnumf…tragh…coisas realmente formidáveis do ponto de vista…zqrunks…o imperativo ético…ah, maldito sejas, juiz Holden!...rosa mota rosa motarrosa, rosinha, motinha-rosita-motita, sopa de peixe de leite de mamas com natas de mamas com leite e peixe sem tetas com lama…rosebud…
39,5 km: principio a falar línguas de uma maneira estranha. Em alemão não passo do nível I: Der vater ist grösser als ich ou Hier fährt ein Mann mit einem Fiaker. O espírito de língua inglesa que me assalta é mais erudito e obriga-me a declamar coisas como “Mary moves in soft beauty & conscious delight / To augment with sweet smiles all the joys of the Night”. Também falo ibo e quimbundo mas são sobretudo palavrões e queixas contra a emancipação feminina.
40 km: incrível o efeito de uma bebida isotónica. Sinto o meu corpo flutuar por entre nenúfares, a deslizar por verdes prados onde crescem harmoniosamente limoeiros, cerejeiras e camponesas de peitos fartos e coxas abundantes. Oiço liras, harpas e um trombone. Pastores saltitam: um toca uma doce melodia na flauta, o outro tenta cravar-lhe uma enxada nas costas. Três belas nereides emergem das águas do Trancão, passeiam-se por entre os arbustos e, quando se preparam para seduzir os maratonistas, são atingidas pelos tiros certeiros, porém dóceis, de dois caçadores alentejanos. Crianças afagam cordeiros, ovelhas convivem com lobos, leões participam em reuniões sindicais. Reina uma serenidade celestial.
40,1 km: arghnumf…tragh…blargh...
41 km: dobro a esquina e entro na fase dadaísta da maratona: “Sporting tem hoje primeiro teste / ricos sem património / ser mesmo velho / frugal e ecológico / o Público errou / uma democracia europeia que vença a crise / com ajudas ao abate de navios de pesca / extradição para a Suécia / estrangeiros no país / Adebayor / lixo.” Os jornais diários são fontes inesgotáveis de poesia. Rendo-me!
42,185 km: Mehr Licht! Mehr Licht!
42,195 km: Consumatum est! Ainda consigo ver dois polícias municipais a jogar às cartas sobre a minha camisola suada.