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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

26
Jan12

Fernando T.

Bruno Vieira Amaral

Saí entorpecido da casa da minha mãe. Tínhamos comido um queijo fresco, bacalhau à Brás, que repeti, e bebido vinho de pacote, áspero, ordinário. Fiquei no patamar, de luzes apagadas, a fumar um cigarro e a olhar para as janelas dos prédios em frente. Gosto do prazer clandestino de fumar no escuro. Foi isso que pensei naquele momento. Desci as escadas. Tive a impressão de noutros tempos haver ali mais vida, mais gente a subir e a desce, mais suspiros de cansaço, e que, mesmo de fora, se ouviam os rumores, a pesada respiração animal do interior das casas: vozes televisivas, brinquedos arrastados pelo chão de tacos, barulho de portas a abrir e fechar, o som das facas a cortarem cebolas, o baque mínimo das lâminas nas pedras da bancada, as panelas cheias de água a pousarem sobre o fogão, os fósforos riscados na lixa das caixas, os arames da roupa a gemer nas roldanas perras, o sobressalto dos pássaros nas gaiolas, as unhas de um cão nervoso na porta de madeira, um latido, risos de gente infeliz, o fundo sonoro e monótono de dezenas de frigoríficos, gritos de uma mãe e, ao longe, nas traseiras do prédio, o estrépito das garrafas de vidro a caírem nos tambores do lixo numa explosão de cristal. Tinha sido há muitos anos. A confusão amainou, como uma tempestade que se dissipa. O prédio tornara-se um corpo doente, na fragilidade nua do cimento, no silêncio não de um corpo que repousa, mas de um que se prepara para morrer. Quando cheguei à rua ouvi uma voz: “Ei!” Depois mais nítida: “Ei! Bruno!” Procurei-a na escuridão, os candeeiros tinham as lâmpadas fundidas. Vi uma silhueta. Quem seria? Sem dúvida que me conhecia. “Como é que é?” Estava mesmo à minha frente, mas não o conseguia reconhecer. “Não te lembras de mim?” E então lembrei-me. Não era possível. Era o Fernando. Ali estava ele. Sempre igual. Não mudara nada desde que eu saíra do bairro. Sorrimos, justos. Caminhámos juntos pelos labirintos dos prédios. Descobrimos que, afinal, pouco tínhamos para dizer um ao outro. “Passaram o quê? Nove anos?”, perguntei-lhe. “Sim, nove anos, no dia 26 de Dezembro de 1999”, respondeu-me. Foi então que apontou para a cabine telefónica em frente da antiga junta de freguesia. “Foi ali. Ali mesmo. Lembras-te?” A minha memória falhou. Teria sido mesmo ali? “Ali. No dia 26 de Dezembro de 1999. Foi ali que me mataram.”

06
Jan12

"Isto é verídico"

Bruno Vieira Amaral

“Isto é verídico” e contava uma história exemplar sobre o que alguém acabara de dizer. Em outras ocasiões, dizia “ainda no outro dia” e vinha outro exemplo muito a propósito, muito conveniente, que predispunha os outros a um consenso murmurado, a uma concordância tranquila e emoliente. Aquela cabeça não era habitada por uma única ideia, rasgo ou pensamento. Só exemplos, ilustrações, casos de que ouvira falar e que lhe davam aquela autoridade reservada às pessoas que sabem muitas coisas. Nunca contrariava ninguém. Não se metia em discussões. Quando lhe pediam a opinião contorcia-se na cadeira ou, se por acaso estava em pé, olhava para as unhas um tanto sujas, simulava dificuldade, a ponderação grave que pesa nos grandes espíritos e sentenciava “Isso é mais complicado”, e explicava, com recurso a exemplos, o quão complicadas podiam ser certas questões porque “ainda no outro dia” ouvira alguém afirmar que o gajo da junta só estava lá para ganhar do bom e do belo quando na verdade ninguém sabia quanto é que ele ganhava, etc. Por isso, não gostava de opinar, “quem muito fala, pouco acerta”, e o melhor era deixar o mundo transcorrer no seu plácido avanço, aproveitando para coleccionar exemplos, casos verídicos – ouvidos na rua ou lidos no jornal – que fundamentassem de forma convincente a superior filosofia de não ter opinião sobre nada. Para os outros frequentadores do café, o Zé Luís era um sábio. De facto, era um recipiente decorativo, um jarrão humilde, bojudo e lascado. Um trabalhador camarário com umas noções incipientes de marxismo e de luta de classes aprendidas num livro sobre Marx e Proudhon que encontrara na recolha do lixo, livro que não lhe tinha inoculado qualquer ideia, mas que apenas lhe permitira recolher mais uns exemplos que, mais cedo ou mais tarde, teriam a sua utilidade num debate de café. O emprego na câmara era a sua grande glória e desde que o mesmo não estivesse em risco, tudo o resto lhe parecia supérfluo. Uns anos antes, quando a mulher se foi embora, deixando-o com o filho, houve nele uma ameaça de insurreição, uma sombra de amargura. Já ninguém se recordava desse Zé Luís que chegara a discutir com o Teixeira do café à conta de umas cervejas alegadamente já pagas. Por esses tempos andava arredio e taciturno. Ia com o filho ver a bola aos domingos no velho campo pelado, visitava a mãe que vivia na Moita de onde trazia o Tupperware com a sopa para a semana e, esta sei porque o ouvi, de madrugada ligava para um programa da rádio local a pedir músicas que dedicava, com um acento de desilusão, à Maria Eugénia, “mãe do meu filho.” Ouvia as conversas com um inédito esgar sarcástico, como se finalmente uma opinião definitiva e contrária se desenvolvesse no seu interior e os outros nem sequer fossem dignos de uma troca de argumentos. Esmagava a beata no cinzeiro, atulhado de palavras que queria e não queria expulsar, ia para o balcão onde pedia mais uma cerveja ao Teixeira, cujo rosto comercial, a gorda mediocridade do pescoço, aumentava a sua raiva e a sua solidão. Ter de criar o filho sozinho angustiava-o. Entendia, com nítido bom senso, que o miúdo precisava da mãe, que podia acabar como um desses amputados emocionais capazes das violências mais atrozes. Eu, que muitas vezes vi o miúdo sentado nas mesas do café, camisola do Sporting manchada, garrafa de sumol de ananás na mão, pires com um saquinho de amendoins salgados à frente, tinha a mesma impressão. Não falava e aceitava as festas que o pai ocasionalmente lhe fazia na cabeça, perguntando-lhe se estava tudo bem, se queria outro sumol, se queria brincar lá fora, como um cão manso, infeliz. Os olhos – inflexíveis, demorados nas pessoas - é que lhe denunciavam a crueldade incipiente, uma maldade em plena formação e desenvolvimento, como uma flor maligna. Exagero. Talvez fosse uma simples criança assustada, aturdida com a inexplicável partida da mãe como um cão abandonado na estrada. Lentamente, o habitual Zé Luís regressou. Talvez se tivesse acostumado à ausência de Maria Eugénia, talvez o antigo hábito de pesar, sopesar e contrapesar ideias tivesse regressado, privando-o novamente do fardo de sequer ter uma. A mãe morreu-lhe sem dramas, o filho ia crescendo, o rosto readquiriu a tranquilidade, voltara a participar nas conversas. “Ainda no outro dia”, sim, “ainda no outro dia”, claro, “mas isto é verídico”, factos, “isso é mais complicado”, sem dúvida. Os outros, o Zé Andrade, o Beto, o Silva e o velhote cabo-verdiano, ex-embarcadiço que se gabava de saber uns restos de latim, e cujo nome não recordo, festejaram o regresso do sábio, do homem que punha toda a gente de acordo com a sua inesgotável capacidade de ilustrar, exemplificar ou, como se diria hoje, de pôr tudo em perspetiva – a perspetiva da resignação, de um sono olímpico, eterno. Já adolescente o filho do Zé Luís decidiu ir viver com a mãe, creio que para uma aldeia perto de Torres Vedras. O Zé Luís envelheceu. Meteu baixa. Nunca mais apareceu no café. Os vizinhos ouviam o ruído rouco do rádio, ligado a noite inteira, fados, canções antigas. Certa noite, o movimento azul das luzes de uma ambulância dançava na minha janela. Ouvi passos inusuais nas escadas, conversas entrecortadas. Bateram-me à porta. Era um GNR novo e circunspecto. Perguntou-me se tinha ouvido algo de estranho nos últimos tempos, se tinha visto desconhecidos no prédio. Neguei. Agradeceu e despediu-se. Fui à janela. Lá em baixo, encostada ao jipe, Maria Eugénia chorava abraçada ao filho. No dia seguinte, soube facilmente o que tinha acontecido. Quando a polícia arrombou a porta, o cadáver já tinha uns quatro dias. O Zé Luís, ao que tudo indicava, tinha morrido de um ataque de coração. Sozinho, sem o filho, sem a mulher, sem a mãe, sem uma ideia. Só o rádio continuava ligado, num carpido eléctrico, persistente, moribundo. “Isto é verídico.”

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