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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

27
Mar12

Contra a literatura

Bruno Vieira Amaral

Por um desses acasos em que vida é pródiga, encontrei um livro de contos escrito por esse jovem valor que é João Pereira Coutinho exactamente quando estava à procura de um livro de contos escrito por João Pereira Coutinho. Consta que o terá escrito na juventude, época propícia a disparates e a experimentações. Eu trepei a um terceiro andar envergando umas sumárias cuecas para espiar uma vizinha, João Pereira Coutinho, pessoa mais bem formada do que eu e com intenções mais elevadas, escreveu um livro. O livro, para grande fortuna do autor, vendeu miseravelmente, muito embora, e por razões que o liberalismo desconhecerá, um dos exemplares tenha sido adquirido por uma biblioteca pública. Foi aqui que o encontrei, magro e ignoto, entre um Mário de Carvalho e um mais robusto Ferreira de Castro (Coutinho, esse, estava mal arrumado). Para não sermos acusados de injustiça, devemos salientar que ao livro foi outorgado um prémio, o que, na altura, terá enchido o neófito de esperanças absurdas, de antevisões de glórias futuras, enfim, de delírios juvenis e que, por o serem, devem ser perdoados com bonomia. Também é de sublinhar que João Pereira Coutinho possui méritos literários inegáveis, é dono de uma verve que, aproximando-o de uma caricatura de liberal blasé a abarrotar de wit e a arrotar boutades sempre que abre a boca, vai muito bem em televisão (é vê-lo num plasma para perceber o que digo), escreve em português e em brasileiro, consoante o público comprador, versatilidade que me tem feito imaginar uma crónica de Coutinho escrita para um jornal angolano, com os muadiés, as makas, os kambas, os kotas e a alegria das gentes do BO. Quero eu dizer, com esta prosa que se alonga, que com o merecido prestígio que granjeou, mal seria se João Pereira Coutinho dormisse a pensar nas suas prosas precoces, ainda para mais reconhecidas e abençoadas com um prémio literário. Não, não há motivos para vergonhas. O livro é pavoroso, lá isso é, mas há quem tenha escrito livros ainda mais pavorosos e continue a apresentar programas vespertinos de televisão. Mas alguma coisa terá corrido mal para que Coutinho tenha desertado da literatura para os jornais. Cá para mim, é uma questão de incompatibilidade. Um homem não pode ser cáustico nos jornais, bater com violência em Mia Couto e escrever contos delicados sobre cães e que começam com frases certinhas mas de uma banal placidez. O cronista ácido e o escritor melífluo não podiam viver juntos. Então, João Pereira Coutinho matou, e bem, aquele que lhe oferecia menores possibilidades de estrelato. Tivesse insistido na carreira de contista e não lhe conheceríamos nem a fisionomia, nem o talento.

24
Mar12

Depois

Bruno Vieira Amaral

Era muito segunda-feira, abençoada por um inofensivo céu azul pastoral, de aguarela ingénua, e eu estava sentado na sala de espera do tribunal, sob o olhar de falsa distracção de um segurança velho, a aguardar a minha vez perante um funcionário que acabou por nos receber sem a majestade imaginada, com aquele aborrecimento vago, semanal, dos homens que dominam a arte de desperdiçar a vida. Foder. Foder. Foder. Naquela altura, poucos meses depois da separação, eu só pensava em foder, em embrenhar-me numa tempestuosa sucessão de corpos, no poder narcótico da novidade, novas e formidáveis conas, novos cus, novas mamas, novos mundos. Mamas grandes, lunares, opulentas, mamas breves, eriçadas, púberes, rabos empinados e duros, grandes e flácidos, as subtis variações minerais do sabor de cada cona, esta mais acre e espessa, mais doce, sumarenta, aquela, o movimento das coxas, a penetração contínua, exaustiva, dois, três, quatro dedos a explorar o veludo húmido para recuperar o tesão depois de duas fodas, num exercício de espeleologia desesperada na esperança que o prazer delas me fizesse recuperar o desejo, tudo isto rumo à abstracção, como se estivesse num quadro de Chirico, a uma esquina da minha vida, e aquele movimento ritmado, insistente, ocultasse algo terrível, o vazio, o vazio pornográfico e sem alma, a desumanidade. As pregas tensas de um cu virgem, as pregas lassas de um cu devastado; os lábios tímidos de uma cona impudica, os lábios largos, de antúrio, de uma cona de acesso lento ao prazer, mas de êxtases prolongados, tectónicos, os bicos negros de algumas mamas, os rosados, quase só auréola, de outras, o prazer gemido de umas, o prazer gritado de outras, a voracidade de certas bocas de lábios finos em contraste com os chupões meigos, castos, de lábios cheios que só no final, no segundo que antecede o gozo, se tornavam ávidos para receber toda a esporra; as fodas à canzana, dois animais de morte e desespero; os cus fodidos na posição de missionário, os rostos frente a frente, numa conspurcação premeditada do amor esponsal; e o zénite, num momento de fulgor dourado em que uma delas, ruborizada, a arfar de prazer e confusão, lançou sobre mim jactos envergonhados de urina. Era eu sozinho a fazer barulho para não ser encurralado pelo silêncio insidioso que precede e anuncia a solidão, a brutal solidão da foda. Até que chegou o momento do vazio e da vergonha, quando senti que aquela avalanche de corpos, de orgasmos, de ejaculações peremptórias na boca, nas mamas, no cu, não me oferecia mais do que o amparo incerto das texturas. Quando é que o descobri? Certa vez, passei a noite, acidentalmente, com uma rapariga. Fodemos e ela, por acaso, com sono, ficou a dormir na minha cama. Aconchegámo-nos e esse teatro da intimidade, esse arremedo patético de ternura, foi o ponto mais baixo da minha existência de sátiro. Vergonha. A situação repetiu-se meses mais tarde com outra mulher e foi então que aquele longo processo de desidratação espiritual culminou numa arrebatadora sensação de plenitude, de rapto sensorial, que era tanto a depuração dos sentidos pelo massacre físico, como acontece nos jejuns místicos e nas flagelações cristãs, como um despojamento total, o ponto em que, não tendo mais a perder, somos reanimados por um fôlego que julgávamos já não ter, que vem ao mesmo tempo de dentro e de fora, nosso e estranho, um princípio de inanição, o glorioso protesto do espírito contra a morte. Depois de saciada a fome carnal, os corpos, em toda a maravilhosa diversidade e abundância de cheiros e imperfeições, assemelhavam-se não a representações figurativas de mulheres mas às telas geométricas de Mondrian, aos padrões abstractos das construções islâmicas, às pedras do deserto de onde brotou Jeová, o Todo-Poderoso. O mais curioso é que ao recordar as mulheres daquele período sinto por elas uma infindável e abrangente ternura: chamo-lhe a nostalgia da foda. Não se dirige a nenhuma em particular, individualmente elas não me perturbam, nem sequer existem, refaço a custo os prazeres que senti. Só pensando nelas em conjunto é que sinto essa gratidão que, na sua essência, é uma forma bem triste de autocomiseração, um truque patético para polir as recordações, para as tornar menos vergonhosas, para que possa viver em paz com elas. O percurso religioso do esgotamento das sensações até ao ascetismo nada tem de original, mas é bem real a verdade que se atinge pelo contraste abrupto entre a foda desenfreada e o espírito em repouso, entre o cansaço físico e a luz redentora que brilha no fundo dessa fadiga. Fodemos e sentimos culpa por fodermos sem os cetins do amor. Foi assim que nos ensinaram e não é fácil foder sem culpa. Chegará o tempo em que o corpo há de pedir mais. Saímos da presença do funcionário da conservatória. Deixei-o a olhar pela janela, imbecil e judicial.

 

p.s.: Soube, mais tarde, em circunstâncias constrangedoras, que nesta altura ela já estava com o Alfredo, um daqueles tipos simpáticos, invertebrados e social-democratas que as mulheres têm a tendência para escolher como segundos maridos.

07
Mar12

Sede

Bruno Vieira Amaral

Os amores de infância duram para sempre, como múmias. Dão-se bem com corações áridos, como múmias. São mausoléus erigidos à própria ideia de amor. Sobrevivem. Sobremorrem. Persistem. Cuidamos deles como da campa de um ente querido, sabendo que debaixo da terra só há ossos e mais terra. Honramos o nosso sentimentalismo putrefacto, sórdido. Duram para sempre, esses primeiros amores. Resistem como parasitas. A sua força é tão maior quanto menos real for o seu objecto. Uma recordação, uma menina a acenar numa estação e à medida que o comboio se afasta, o vulto branco da menina agiganta-se. Quando ela desaparece, o amor instala-se. Um amor coberto de memória e, por cima, outra camada de amor, que pode ser a lembrança de outro amor mais recente que serve para envernizar aqueloutro, velho e oxidado, o que não morre, relíquia de si próprio. Amamos o quê? A infância. As nossas pernas de criança, o nosso sorriso de criança, a nossa fome, a nossa sede de criança. Quando interrompíamos os jogos de futebol e íamos beber água de um garrafão que alguém trouxera de casa. Uns bebiam sôfregos, os lábios na boca do garrafão, um quase beijo de sede e água, outros bebiam prudentes, no fim cuspiam a água, cada um matava a sede à sua maneira, como os homens de Gideão, e no fim éramos trezentos, cada um escrevendo o seu destino pela morte que dava à sede, a sede mais real que existe: “Quem beber daquela água não terá mais amargura”, “quem beber da água que eu lhe der, nunca mais terá sede”. A água final para a sede toda. Essa sede de criança que é toda amor, os corpos suados no suplício do Verão, os jogos de futebol retomados, os nossos músculos, os nossos corpos a explodir. Os amores de infância são estilhaços dessa explosão, cicatrizes da guerra que é respirar, cair, sangrar, a guerra que é ter mais um dia, com a consciência das crianças que é ainda tão fina e frágil, tão próxima do nada de onde emergiu que é quase uma espécie de recém-morte. A nossa sede nessas tardes de futebol, desaparecia o sol e nós continuávamos, persistíamos, como se o corpo nos dissesse “continua”, como se os ossos e os músculos, tudo o que há-de ser lama debaixo da terra, mergulhassem na lama do cansaço e nunca mais quisessem sair, como se o tempo fosse ilimitado, extensível, fulgurante. E era. Do altruísmo inédito, virgem, do primeiro amigo – do momento em que após o choque, a fractura da consciência com o mundo, surge um amigo, o primeiro amigo (a minha mãe dizia-me “é um menino da tua idade”), o primeiro outro, e a fenda que antes se abriu entre nós e o mundo agora se fecha subitamente com a presença física, inequívoca de um amigo, outro que não sou eu mas que sou eu, que vê as coisas à mesma altura, o aquário que havia naquela sala que não era a minha sala, a luz azulada do aquário, o amigo a explicar-me os peixes e o aquário, porque não era eu, era ele, e ele sabia mais – ao impulso egoísta da conquista e do poder, de tomar o outro que nunca seremos nós, a mulher, que nunca somos nós, que ou é nossa desde sempre ou que nunca será nossa, por isso os fracos, as eternas crianças no amor, dizem “se não és minha, não vais ser de ninguém”, porque ser e ter, tenho-te logo és, é a mesma coisa, nesse intervalo da amizade ao primeiro amor nós morremos para os outros e nunca mais poderemos dizer sem mentir “porque era ele, porque era eu.”

01
Mar12

Últimos pedidos

Bruno Vieira Amaral

Fui vê-lo ao hospital dias antes de ele morrer. Tinha a barba por fazer. Pediu-me que lhe levasse a gilette e lhe fizesse a barba. Enquanto me pedia isto, os olhos de animal assustado cravados na parede creme, cagou-se todo: “ai, filho, chama aí alguém.” Vieram as enfermeiras, “tenha calma, senhor João”, mudaram-lhe as fraldas e a roupa da cama e uns minutos depois, já sossegado, pediu-me novamente que lhe levasse a gilette. No dia seguinte, não fui ao hospital. O meu avô morreu nessa noite. Uma das enfermeiras fizera-lhe a barba de manhã.

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