Contra a literatura
Por um desses acasos em que vida é pródiga, encontrei um livro de contos escrito por esse jovem valor que é João Pereira Coutinho exactamente quando estava à procura de um livro de contos escrito por João Pereira Coutinho. Consta que o terá escrito na juventude, época propícia a disparates e a experimentações. Eu trepei a um terceiro andar envergando umas sumárias cuecas para espiar uma vizinha, João Pereira Coutinho, pessoa mais bem formada do que eu e com intenções mais elevadas, escreveu um livro. O livro, para grande fortuna do autor, vendeu miseravelmente, muito embora, e por razões que o liberalismo desconhecerá, um dos exemplares tenha sido adquirido por uma biblioteca pública. Foi aqui que o encontrei, magro e ignoto, entre um Mário de Carvalho e um mais robusto Ferreira de Castro (Coutinho, esse, estava mal arrumado). Para não sermos acusados de injustiça, devemos salientar que ao livro foi outorgado um prémio, o que, na altura, terá enchido o neófito de esperanças absurdas, de antevisões de glórias futuras, enfim, de delírios juvenis e que, por o serem, devem ser perdoados com bonomia. Também é de sublinhar que João Pereira Coutinho possui méritos literários inegáveis, é dono de uma verve que, aproximando-o de uma caricatura de liberal blasé a abarrotar de wit e a arrotar boutades sempre que abre a boca, vai muito bem em televisão (é vê-lo num plasma para perceber o que digo), escreve em português e em brasileiro, consoante o público comprador, versatilidade que me tem feito imaginar uma crónica de Coutinho escrita para um jornal angolano, com os muadiés, as makas, os kambas, os kotas e a alegria das gentes do BO. Quero eu dizer, com esta prosa que se alonga, que com o merecido prestígio que granjeou, mal seria se João Pereira Coutinho dormisse a pensar nas suas prosas precoces, ainda para mais reconhecidas e abençoadas com um prémio literário. Não, não há motivos para vergonhas. O livro é pavoroso, lá isso é, mas há quem tenha escrito livros ainda mais pavorosos e continue a apresentar programas vespertinos de televisão. Mas alguma coisa terá corrido mal para que Coutinho tenha desertado da literatura para os jornais. Cá para mim, é uma questão de incompatibilidade. Um homem não pode ser cáustico nos jornais, bater com violência em Mia Couto e escrever contos delicados sobre cães e que começam com frases certinhas mas de uma banal placidez. O cronista ácido e o escritor melífluo não podiam viver juntos. Então, João Pereira Coutinho matou, e bem, aquele que lhe oferecia menores possibilidades de estrelato. Tivesse insistido na carreira de contista e não lhe conheceríamos nem a fisionomia, nem o talento.