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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

17
Abr12

Transformação

Bruno Vieira Amaral

Dizer que o romance é apenas um acto estético é empobrecê-lo. Equivale a retirá-lo do mundo e a fechá-lo na arte, ainda que a arte faça parte do mundo. O romance é um acto moral, o que não se deve confundir com o ser veículo de uma determinada moral e pensar que pode ter alguma utilidade para as nossas vidas. O romance pode ser imoral ou até amoral, mas nunca é apenas estético. O herói romanesco é herdeiro do herói trágico. Desafia as convenções da sociedade e sofre as consequências, personifica o nosso destino colectivo, luta contra o que o amarra, sabendo nós que está condenado a perder. Dom Quixote, Ema Bovary, Raskolnikoff, Meursault são, cada um à sua maneira, trágicos, mas o heroísmo não é clássico: loucos, adúlteros, homicidas, insensíveis. Não são modelos de virtudes, logo, não são moralizadores. No entanto, não exigem a condenação. A qualidade da criação estética coloca-os num patamar diferente de avaliação moral. Não os podemos julgar como julgamos um vizinho, um colega de trabalho, um familiar. Conhecemos-lhes o desespero de uma forma tão íntima e tão profunda que podemos proclamar, como Flaubert: Madame Bovary sou eu, Meursault sou eu, Raskolnikoff sou eu. Não podemos dizer isto das pessoas que vivem connosco, que dormem connosco, que nos morrem, que nos matam, que nos traem. A dimensão moral do romance não nos prepara para a vida, não nos ensina, não nos instrui, porque a vida não se nos oferece assim, completa e acabada, perfeita e sem arestas. Compreendemos e, por isso, perdoamos. Perdoamos tudo aquilo que não estamos dispostos a perdoar nas nossas vidas. Tout comprendre c’est tout pardonner. Só os maus romances aspiram a tornar o leitor uma pessoa melhor. A dimensão moral de um bom romance apenas nos pode tornar melhores leitores, o que equivale a dizer que a moral de um romance é indissociável da estética. Um Meursault real é um monstro. O Meursault de Camus é um nosso semelhante. Uma Bovary real é uma puta frívola. A Bovary de Flaubert é nossa irmã de sangue e de palavras.

 

Se a tragédia grega na sua mais perfeita manifestação, a Antígona, opõe duas morais, dois deveres entre os quais o indivíduo tem de optar, o romance retira um dos deveres e substitui-o pelo indivíduo, pelos seus impulsos aleatórios, pela sua sensualidade, pelo acaso que o empurra para os actos. A luta do herói romanesco não é entre dois deveres, mas entre a norma e a subjectividade das circunstâncias do indivíduo. O mundo não é como é, mas como Dom Quixote o vê. E, no entanto, o mundo existe. Raskolnikoff quer estar para além do bem e do mal e, no entanto, eles existem em forma de consciência. Meursault é condenado porque o mundo existe, porque o mundo não compreende o apelo homicida de uma faca a brilhar ao sol. Só o leitor o pode absolver. A solidão do dever trágico, a solidão do homem perante as forças do destino, é traduzida para o romance na solidão do indivíduo: o destino, tal como o inferno, são os outros.

 

“E os olhos encheram-se-me de lágrimas, num pranto que era de vergonha, de cobardia, de penas e pecados, do remorso que dá o que não tem indulto, da solidão que nos sufoca quando descemos ao fundo de nós próprios”, diz o narrador de A Amante Holandesa, enorme herói romanesco. E os outros? “Não havia ali gente, eram uma alcateia que o vinho, as frustrações e as raivas afogadas tinham retornado ao estado de bestas.” A solidão, os outros. A irredimível solidão dos pecados próprios, a condenação implacável dos outros, um coro que não adverte, castiga; um coro que não canta, vocifera; um coro que empurra o indivíduo para o fundo dele próprio. Ao fazer do narrador um pecador (a sugestão de pedofilia), Rentes de Carvalho corre um risco literário e moral que, à semelhança dos pecados, não pode ser reduzido a uma dimensão estética. “[…] o meu único crime – se se lhe pode chamar crime – é o gosto que dá o admirar um corpo jovem e bonito. Não quero mais nada, nunca fiz mal a ninguém, o meu prazer é unicamente estético.” Estas palavras não são dirigidas aos inspectores das Judiciária que o interrogam, mas ao leitor do outro lado da ficção. É ele que poderá aferir da bondade das alegações, é ele que poderá decidir se a própria ideia de prazer não contém em si a ideia de (i)moralidade, é ele que poderá aliviar a solidão daquele homem, é ele que tanto o pode condenar (como o fazem as feras da alcateia), como absolver. E essa é uma decisão moral tão mais complexa quanto maior a qualidade estética da obra, duas dimensões inextrincáveis quando estamos perante uma obra maior.

 

Talvez não seja justo para o romance de Rentes de Carvalho compará-lo a obras indiscutíveis do cânone ocidental, o que poderá ser interpretado como um exagero a roçar a blasfémia. Seja. A Amante Holandesa é uma daquelas obras em que o estético e o moral estão num único plano e não é possível distinguir o deleite que o primeiro nos oferece das dúvidas que o outro nos semeia. Um romance bem escrito pode divertir-nos, um romance bem-intencionado pode educar-nos. Um romance como A Amante Holandesa transforma-nos.

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