As aves somos nós
Escrito no intervalo entre os dois romances que o consagraram, A Zona de Desconforto, de Jonathan Franzen, é uma espécie de reportagem autobiográfica retrospetiva. Não são memórias porque lhes falta aquele escavar doloroso e jubiloso de quem se confronta com a sua própria vida. Não é uma dramatização porque tudo parece fluir sem dificuldade, sem ravinas ou obstáculos emocionais. Os seis capítulos são seis regatos amenos de informação, em que o “grande romancista americano” analisa a sua vida com moderada satisfação, sem detetar traumas, erros irreparáveis ou decisões marcantes. É um homem confortável na sua pele, com as angústias mesquinhas próprias da sua geração e classe social, com as obrigatórias preocupações políticas liberais que, mais do que convicções ideológicas, parecem ser o reflexo pavloviano de um homem a lidar com a consciência dos seus privilégios e a futilidade dos seus interesses. Nada de memorável. E mesmo quando Franzen revela características mais desagradáveis é aquele género de características incapaz de suscitar verdadeira repulsa: manias de adolescente, autoindulgência na idade adulta, uma certa indiferença perante os outros. Nada de trágico. Franzen, aos quarenta e cinco anos, contenta-se em ser o “adulto que desejava ser quando tinha dezassete”, ainda que esse adolescente apareça com alguma regularidade quando o escritor almoça “meia caixa de Oreos”, olha “embasbacado para os decotes nos anúncios de cerveja” ou classifica de “piroso qualquer grupo a que não possa pertencer.” Tudo legítimo, cristalino e perfeitamente aborrecido.
Contudo, isto não é o pior. Ser um chato monumental ou um egocêntrico insuportável seriam defeitos facilmente perdoáveis se a escrita justificasse a viagem. (Atacar a personalidade de Franzen pelo que ele mostra neste livro seria tão ridículo como criticar um autorretrato de Van Gogh argumentando que o pintor, afinal, era feio.) Mas uma vida desinteressante para a generalidade dos leitores não tem de ser necessariamente narrada de uma forma desinteressante. É esse o grande pecado de A Zona de Desconforto: uma escrita inofensiva, que não corre riscos, acomodada na zona de conforto das banalidades que relata. As experiências triviais do adolescente (“Esperava começar a beber e a fazer sexo nesse verão”, “Estranhamente desavergonhadas eram, em contrapartida, as horas que passava a ver revistas indecentes” ou o clássico “As aulas de alemão do liceu eram uma grande seca”) tornam-se ainda mais supérfluas e só muito raramente Franzen põe a escrita ao serviço de uma ideia valha a pena não só ser defendida como também escrita. O exemplo mais óbvio é a parte do capítulo 2, “Dois Póneis”, dedicada a uma análise ao universo de Charles M. Schulz. Aqui, Franzen consegue ser inteligentemente comovente e convocar a atenção do leitor para o inesperado, criando aquela sensação que define os grandes escritores: a sensação de se estar perante um pensamento simultaneamente original e irrefutável. Sente-se que Franzen, quando o assunto é Charlie Brown, tem uma opinião, uma ideia forte pela qual está disposto a correr alguns riscos (compare-se com o elogio “espertinho” às histórias das revistas pornográficas).
No resto do livro, mesmo quando a escrita aparenta respirar, na verdade está morta. Uma escrita zombie, que em vez de arrastar os pés e reclamar cérebros, dança com a leveza de um Fred Astaire, saltando por cima da mobília das recordações e, por vezes, congelando os cérebros no conforto amniótico da informação. O último capítulo, “O meu problema com as aves”, é demonstrativo da crença algo ingénua de que uma descrição intensiva equivale a uma descrição profunda, que o acumular de informação acabará por se aproximar, como que por magia, de uma verdade qualquer. Para não fugirmos da metáfora, digamos que é a crença que saltar de um lado para o outro há de sempre acabar por ser considerada uma coreografia. Nestas últimas páginas, Franzen salta da informação minuciosa sobre o seu passatempo de observação de aves (a informação é tão minuciosa que o tradutor português teve de recorrer ao auxílio da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves) para cenários tão distintos como a morte da mãe, a derrocada do seu casamento ou uma conferência de Al Gore. Neste movimento pendular entre chapins-da-lapónia e uma escritora californiana, entre as paisagens do Texas e um quarto de hospital, o planeta funde-se com o “planeta conjugal” e o futuro das aves funde-se com o futuro de Jonathan Franzen. Para além de uma sugestão de harmonia com a natureza – conceito que também inclui os conservadores texanos anteriormente vítimas dos preconceitos de Franzen – e de um artifício literário utilizado com uma boa dose de megalomania, pouco sobra. A Zona de Desconforto permanece numa zona confortavelmente afastada dos extremos, o que nos leva a pensar que a tepidez do livro terá uma origem geográfica. Franzen diz-nos no início que cresceu no centro dos EUA, no “fulcro cartográfico do país” e “em plena época de ouro da classe média americana.” É um livro centrista, do centrão. Nem carne, nem peixe: é mais aves.