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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

30
Ago12

Quiet

Bruno Vieira Amaral

The Quiet Volume apresenta-se como “espetáculo sussurrado para duas pessoas de cada vez” e propõe-se abrir “porosidades entre a esfera de um e outro leitor.” Mesmo que o leitor ao nosso lado se chame Rogério Casanova, somos tomados por algum pudor em usar a leitura como pretexto para abrir porosidades entre a esfera de cada um. O conceito denomina-se “autoteatro” ou, como lhe chamamos lá em casa, A Grande Tenda de Onan. Insucesso é coisa que não existe aqui. Como público e actores coincidem, todas as sessões estão esgotadas. Mediante uma simbólica contribuição de cinco euros, o espectador tem o privilégio de “fazer o espectáculo” durante uma hora. Acaba-se assim com o velho hábito burguês de apreciar bovinamente uma peça. A tarefa pode parecer simples mas não é levada a cabo sem cerimónia. Somos recebidos por duas jovens senhoras. A primeira, com o ar levemente suicida e promíscuo das admiradoras de Sylvia Plath, explica-nos condescendentemente que há regras cujo não cumprimento impedirá que desfrutemos da experiência na plenitude. A segunda, manifestamente infeliz por não se encontrar em Veneza ou Bayreuth, passa-nos com certo desinteresse os auscultadores e o que julgo ser um ipod e pede-nos para não o desligarmos acidentalmente. (Tenho alguma dificuldade em concentrar-me no objectivo de não desligar acidentalmente qualquer aparelho). Em jeito de despedida, diz-nos que devemos mudar de página quando virmos este símbolo [uma mão a apontar para a direita] porque se não o fizermos acontece-nos o mesmo que ao pobre rapaz que sofreu a terrível consequência de passar todo o espectáculo na mesma página, indiferente às orientações esforçadas do pessoal. (Felizmente, assim que a peça terminou, tiveram a amabilidade de o encaminhar para a saída.) Sentamo-nos lado a lado e é então que a experiência tem o seu início oficial. A voz que me sussurra ao ouvido é masculina e insinuante. Temo que, de um momento para o outro, me pergunte o que tenho vestido. Resulta que só quer que eu me concentre nos sons, nas “vozes trazidas pelo vento”, que a esta hora, no interior da Biblioteca Nacional, sopra de fraco a moderado do quadrante oeste. Depois de uma breve digressão pelo tema das mãos dos outros utilizadores do espaço, ordena-me que leia um caderno que está em cima da mesa. Logo a seguir, obriga-me a pensar na última palavra que li, a qual, garante-me, ficará cada vez mais debotada e fraca na minha memória, sinal de que precisa da insulina. A palavra é “porta” e, por breves e telepáticos segundos, imagino que a voz será capaz de a adivinhar. Para minha desilusão, as capacidades sobrenaturais da voz não se destacam, ao contrário dos seus evidentes dotes soporíferos. Em vez de me ajudar a concentrar, o seu estrépito incessante atira-me para um profundo estado de confusão mental, do qual saio apenas para registar alguns vocábulos: (“nuvens”, “gavetas”, “Doris Lessing”, “Chinua Achebe” e um tal de “Rui Barbo”). O que prometia ser a descoberta da “intrigante magia no centro da experiência de leitura” – um artefacto procurado há séculos pelos arqueólogos – revela-se uma penosa excursão aos arrabaldes do tédio. Passo de um livro de José Saramago para um de Agota Kristof e, finalmente, para um de Kazuo Ishiguro. Das traseiras da minha mente, chegam-me agora vozes diferentes, semelhantes às dos vilões dos desenhos animados. A sessão termina, devolvo obedientemente os acessórios e não consigo evitar o sentimento de culpa por não ter estado à altura cosmopolita de um evento que já passou por cidades como Berlim, Buenos Aires e Londres. Saio da Biblioteca e a voz que agora oiço sugere-me que compre dois bilhetes para o próximo LaFéria.

21
Ago12

Perder

Bruno Vieira Amaral

Os puristas de sofá preparam-se para mais uma jornada de invocação dos nobres ideais do barão de Coubertin. Enquanto mais de dez mil atletas de todo o mundo cumprem o sonho de uma vida construído com o sacrifício de milhares de horas de treino, os profissionais da nostalgia e do “antigamente é que era bonito” maldizem a máquina de fazer dinheiro em que se tornaram os Jogos Olímpicos. No entanto, para os atletas, a consagração olímpica continua a ser o cume da carreira. Uma lesão ou uma queda que ditem a perda de uma medalha provocam lágrimas e desespero que não se podem justificar com os contratos que se perdem ou com os milhares de euros que não vão ganhar. No momento de competir, o dinheiro, o negócio, os patrocinadores, todos esses fantasmas que ameaçam a pureza da competição, desaparecem da cabeça dos atletas. Só há um objetivo: dar tudo. Mas nem sempre a cabeça dos atletas fica vazia ao ponto da concentração máxima. Por vezes, a cabeça atrapalha e anos de treino, de sacrifícios e de desejos evaporam-se num segundo, numa postura errada do corpo, numa barreira que não se consegue ultrapassar, num ensaio nulo, numa falsa partida. No momento da verdade, que separa os bons atletas dos imortais, alguns sucumbem à pressão e à ansiedade. Duvidamos que os seus cérebros, nesses segundos decisivos, estejam a pensar nos ideais desvirtuados de Coubertin. Naquele momento são eles a lutar contra os adversários por um lugar na história. E, frequentemente, quando os adversários já estão derrotados, o último e mais difícil obstáculo vem de dentro.

 

Seul, 1988. Domingos Castro participa na final dos 5000 metros e há boas possibilidades de conseguir uma medalha, talvez a de ouro. A corrida inicia-se e, por volta do primeiro quilómetro, o queniano John Ngugi isola-se. Com três quilómetros percorridos, Castro vai atrás dele, passa o resto da prova a 30 metros do adversário, mas tem uma vantagem confortável para os outros atletas. À entrada da última volta, a medalha de ouro é uma miragem, mas a medalha de prata é quase uma certeza. Até aos derradeiros cem metros. Vindos de trás, com pontas finais poderosíssimas, Dieter Baumann e Hansjörg Kunze, deixam Domingos Castro no mais frustrante dos lugares olímpicos, o quarto. Em vez de focarem o vencedor ou os outros dois medalhados, as câmaras centram-se em Castro a andar de um lado para o outro, incrédulo e em lágrimas. Acabara de perder uma oportunidade única de conseguir uma medalha em Jogos Olímpicos. Ainda participou em Barcelona 92, tendo terminado a prova em 11º lugar. Acabou a carreira com uma medalha de prata nos campeonatos do mundo de 1987. Faltou-lhe aquela que perdeu nos últimos cem metros na corrida de Seul. Imagino que, de vez em quando, o corredor ainda refaça mentalmente o percurso e se empenhe num esforço retroactivo para não ser ultrapassado, para não perder a sua medalha. Apesar disso, o caso de Castro não foi de um bloqueio. Para todos os efeitos, realizou uma prova notável e um dos seus melhores tempos na distância. Os outros foram simplesmente melhores. Nem sempre é isso que acontece. Quatro anos antes da ocasião perdida por Domingos Castro, Fernando Mamede chegou aos Jogos Olímpicos de Los Angeles como o melhor atleta do ano nos 10 mil metros. Mais: chegou como recordista mundial. Mamede era um atleta de eleição. Talvez o melhor da sua geração em talento inato. Moniz Pereira disse recentemente numa entrevista ao Público: “foi um atleta único, nunca vi ninguém assim.” Mas, no momento da verdade, o atleta de Beja bloqueava. Sentia o peso da responsabilidade, o “medo cénico”, e todas as suas incríveis qualidades não chegavam para derrotar a sua fragilidade mental. Naquele que seria o momento mais glorioso da sua carreira, fracassou com estrondo. Desistiu a meio da final. Não conseguiu libertar-se. Ficou amarrado. A cabeça pesava de mais. Pensava de mais. Segundo Moniz Pereira, Mamede tinha um grave problema de ordem psicológica. “Durante mais de dois anos ganhou os meetings todos em que participou, mas chegavas às grandes provas, Mundias e Jogos Olímpicos, falhava. Começava a queixar-se com dores e a dizer que não era capaz...Estava mais bem preparado que o Lopes, mas o dia chegava e fraquejava. Ao fim da primeira volta já era último. No final, perguntaram-me se ele tinha acabado como atleta e eu disse para esperarem pelo próximo meeting da Suiça. Chegou lá e ganhou. Era cabeça.”

 

Em alta competição, pensar de mais é, muitas vezes, o caminho mais rápido para o bloqueio. No seu artigo A Arte do Fracasso, Malcolm Gladwell dá o famoso exemplo do “estoiro” de Jana Novotna na final do torneio de Wimbledon contra Steffi Graff, em 1993. A tenista checa tinha feito um torneio notável até aí, tendo deixado pelo caminho Gabriela Sabatini e Martina Navratilova. Na final, perdeu um primeiro set no tie-break e ganhou o segundo set por demolidores 6-1. No terceiro set liderava por 4-1. Estava a um passo da glória. Podem confirmar no youtube a qualidade de algumas jogadas de Novotna (http://www.youtube.com/watch?v=BTwN_kQc0Pc). Comparem-nas com o ténis praticado a partir desse momento. Não parece a mesma jogadora. Duplas faltas, bolas contra a rede, respostas disparatadas. Graff manteve o equilíbrio, ganhou os cinco jogos seguintes, o set e o torneio. Quando recebeu o prémio de consolação, Novotna não aguentou e chorou no ombro da Duquesa de Kent. Vemos as imagens e partilhamos a frustração, a tristeza e a impotência de Novotna, sem ninguém para culpar a não ser a sua cabeça, a incapacidade de resistir à pressão de estar tão perto de ganhar o mais importante troféu do seu desporto. Foi como se naquele momento de viragem a tenista se tivesse ausentado de si própria, tivesse começado a olhar de fora o seu extraordinário desempenho, a racionalizar os movimentos, e esse pensamento tivesse quebrado o feitiço da união natural entre vontade e acção. Gladwell, que neste artigo distingue o bloqueio do entrar em pânico como duas formas diferentes de fracassar, resume assim o colapso de Novotna: “Quando Jana Novotna fracassou em Wimbledon, esse fracasso deveu-se ao facto de ela ter começado a pensar novamente nas jogadas. Perdeu a fluidez, o toque. Fez duplas faltas nos serviços e falhou bolas altas, as bolas que exigem maior sensibilidade em termos de força e tempo. Ela parecia uma pessoa diferente – a jogar com a deliberação lenta e cautelosa de uma principiante –, porque, num certo sentido, ela voltara à fase de principiante: estava a contar com um sistema de aprendizagem que não usava nos serviços nem nas defesas desde que aprendera ténis na infância.” Este processo é tão simples e rápido quanto aflitivo para quem o vive. É como acordar de um estado de transe competitivo. De repente, há um bloqueio dos movimentos naturais, da memória muscular e o atleta regride para o patamar da “aprendizagem explícita”, um termo científico utilizado por Gladwell no seu artigo e que é equivalente a um leitor adulto ler este texto dividindo as palavras em sílabas. Naqueles momentos, mentalmente, os atletas regressam aos bancos da primária. Foi o que aconteceu a Lolo Jones na final dos 100 metros barreiras em Pequim. A atleta norte-americana não bloqueou no sentido de ter feito uma prova desastrosa. Mas numa prova tão rápida e tão técnica como esta, o mínimo deslize significa a derrota porque não há tempo para corrigir o erro. Jones partiu pior que a australiana, mas a meio da prova já liderava. Quando faltavam duas barreiras, a medalha de ouro parecia ter encontrado a destinatária. Porém, Jones tropeçou na nona e penúltima barreira, desequilibrou-se ligeiramente e isso foi o suficiente para ser ultrapassada por seis atletas. Em entrevista à revista Time, a velocista norte-americana disse que em determinado momento começou a ver as barreiras a sucederem-se a uma grande velocidade e lembra-se de ter pensado que não se podia descuidar na técnica. Foi então que bateu na barreira: “Sinceramente, eu devia ter relaxado um bocadinho e ter-me limitado a correr.” O artigo da Time refere, com base em estudos sobre este tipo de bloqueios, que nestas ocasiões, devido à preocupação, o córtex pré-frontal é inundado por pensamentos quando deveria ser o córtex motor, que controla o planeamento e a execução dos movimentos, a ditar as regras. Em vez de se deixar ir, de flutuar, o atleta começa a pensar, o cérebro entope, indeciso entre a reflexão e a acção, e os músculos, como soldados confusos com ordens contraditórias, hesitam. Basta um segundo e a batalha está perdida. (Jones acabou no maldito 4º lugar dos 100 metros barreiras em Londres).

 

Vejamos a situação oposta, o momento em que um atleta se transcende, chegando muito mais longe do que era expectável. Há um caso recente. Algumas semanas atrás, o tenista espanhol Rafael Nadal enfrentou o checo Lukas Rosol em Wimbledon. Nadal tem onze títulos do Grand Slam, este ano já venceu o torneio de Roland Garros e apesar de a relva não ser o seu território preferido já triunfou em Wimbledon por duas vezes. Nada, a não ser a ocorrência de uma lesão ou um acidente cósmico, faria prever a derrota do espanhol contra o nº 100 do mundo. Mas foi isso que aconteceu. Razões? Depois da derrota, Rafael Nadal, o campeoníssimo Rafael Nadal, pouco habituado a perder nestas circunstâncias, procurou justificações e só conseguiu dizer que o adversário tinha “respondido sem pensar”. Com bolas disparadas a mais de 100 quilómetros por hora, o tempo para se pensar não é muito. Responder sem pensar parece uma boa estratégia e, para infelicidade de Nadal, resultou. O que o tenista maiorquino disse é menos interessante do que o que se percebe das suas palavras. Para Nadal, o ideal seria que Rosol tivesse pensado mais, tivesse tido mais consciência do palco, do adversário e das suas próprias capacidades (claramente inferiores às de Nadal). Mas Rosol optou por se esquecer de tudo isso e por responder sem pensar. Resultado: derrotou um dos melhores jogadores de sempre. Mas talvez não tenha sido uma opção, talvez a libertação de Rosol dos pesos do pensamento tenha sido involuntária, talvez tenha simplesmente acontecido. Temos a ideia que para um jogador ganhar a um adversário que lhe é superior tem de o conhecer muito bem, tem de definir uma estratégia que explore os pontos fracos de quem está do outro lado e tem de elevar os níveis de concentração a um patamar budista para resistir à batalha. O que o resultado de Rosol prova é que, por vezes, basta deixar-se ir. Um tenista profissional, mesmo um que esteja no 100º lugar do ranking, como era o caso de Rosol, é um desportista de elevado rendimento, muito bem preparado técnica, física e mentalmente. Quanto mais pensar na distância que o separa do topo da hierarquia maior lhe parecerá essa distância. Quanto mais pensar no adversário mais pensará sobre as suas próprias limitações. Quanto mais pensar na vitória, maiores serão as probabilidades de sair derrotado. A solução é: não pensar. Jogar. Regressar a um estado uterino, irrefletido, de açção pura. Há dois problemas: o não pensar não garante a vitória (em 10 jogos, Nadal provavelmente derrotaria Rosol em 9, por muito que este não pensasse) e não pensar é muito mais difícil do que parece, porque depende de um esforço voluntário rumo a um estado que é quase de transe. Neste sentido, o não pensar é uma espécie de transe autoinduzido, sem auxílio de outra coisa que não seja a força de vontade. Como se vê, é um equilíbrio quase impossível entre a inconsciência e a vontade, entre o esforço para chegar a um estado e esse estado que é essencialmente “sem esforço”. Rosol transcendeu-se. Não apenas no sentido de ter ido além das suas capacidades, mas no sentido religioso de transcendência. Como se os pensamentos tivessem migrados para os músculos, ossos e tendões. O truque é não querer ser mais esperto do que o corpo no território deste. O pensamento é muito útil num jogo de xadrez ou na resolução de uma equação matemática. Numa prova de alta competição pode ser desastroso.

 

Será que o segredo é ser estúpido? Não. O segredo é ser inteligente e deixar que a parte de nós mais bem preparada para lidar com aquele desafio assuma o comando. Se eu precisar de alguém para pilotar um avião vou recorrer a um piloto de longo curso com muita experiência e não ao rapaz que se licenciou em Matemática Aplicada com média de 20. Às vezes, ser mais inteligente pode passar por se pensar menos, não mais. Num ensaio sobre o livro de memórias de Tracy Austin, David Foster Wallace surpreendia-se com a pouca sofisticação dos comentários da tenista sobre o seu próprio desempenho desportivo. Esta constatação é, de facto, muito pouco surpreendente. Se há bons romancistas e poetas incapazes de produzir um discurso interessante sobre os seus ofícios por que é que esperamos que alguém que não trabalha com palavras o fizesse? A desilusão de Foster Wallace com a superficialidade dos desportistas leva-o a concluir que essa superficialidade não é apenas o preço a pagar pela excelência desportiva, mas a sua condição necessária: no desporto, só quem não pensa no que faz poderá fazê-lo perto da perfeição. Isto é, obviamente, um erro. Se perguntarem a Diego Armando Maradona em que é que ele estava a pensar enquanto fintava metade da equipa inglesa para marcar o que é considerado um dos melhores golos de sempre, a resposta será sempre frustrante quando comparada com a beleza dos movimentos em si. A dificuldade em descrever por palavras um desempenho desportivo de excelência não afeta apenas os próprios desportistas. Poucas pessoas serão capazes de executar essa tarefa ao nível do que o próprio Foster Wallace fez com o ténis de Roger Federer. Pedir que um desportista de topo seja eloquente quando fala do seu desempenho, que seja tão leve e gracioso nas palavras como é em campo, é exigir a coincidência de dois tipos de génio tão diferentes na mesma pessoa que o mais próximo que consigo imaginar seria o de esperar que Einstein tivesse sido campeão olímpico nos saltos para a água. Não é estranho que os desportistas tenham dificuldades em traduzir para palavras os seus movimentos em competição. Essa não é uma dificuldade exclusiva dos desportistas nem é uma condição para um desempenho de excelência. O que parece ser uma condição para um desempenho de excelência é que no momento da competição o desportista não tente pensar como um escritor sentado à secretária à procura da melhor maneira para descrever o que está a fazer. É na capacidade de entrar em transe, in the zone, no momento de maior pressão, em que a memória fica desligada, em que o atleta não está de facto a pensar em nada, que os grandes atletas se distinguem. O facto de escreverem maus livros de memórias não explica o seu extraordinário sucesso desportivo. Diz-nos apenas que deviam ter ficado pelo desporto porque o génio de escrever eloquentemente sobre a excelência desportiva é quase tão escasso como o próprio génio desportivo.

01
Ago12

Cem anos de perversão

Bruno Vieira Amaral

Publicado na Ler

 

A 21 de dezembro de 1980 o escritor brasileiro Nelson Rodrigues revelava a verdadeira face. As máscaras do homem contraditório, revolucionário e reacionário, amado e vaiado, polémico e sentimental, obcecado pelo amor e pela morte, louco por Dostoievski e pelo Fluminense, caíram todas nesse dia. Ficava o rosto hirto e solene da morte, o verdadeiro rosto do homem: “A maior dignidade da morte é física. Nunca o homem é tão belo como quando está morto. Porque tem então assegurada a eternidade, é na morte que o homem tem o seu rosto verdadeiro. Na vida, usamos máscaras sucessivas e contraditórias. Só a morte revela a nossa verdadeira face.” (Folha de São Paulo, 29/01/1980). Nesta frase, beleza e morte entrelaçam-se, como em tantas das suas personagens. (A Ivone de um dos contos de A Vida Como Ela É... “comovida”, “como se a idéia da morte a embelezasse.”) Os opostos atraem-se e, através da fricção, melhoram-se. No velório de Nelson Rodrigues devem ter ardido velas e não os círios elétricos que abominava como degradações da beleza ritual da morte. Numa das suas crónicas, sobre a morte do escritor Guimarães Rosa, escreveu assim: “Quanto a mim, fui ao velório na Academia. Entro e paro ante a indignidade dos círios elétricos.” Na obra de Nelson Rodrigues, a morte carrega as dignissímas vestes românticas e novecentistas. Os cadáveres têm uma beleza estranha e eterna e a beleza, sempre mórbida, já traz indícios da morte. Toda a beleza é mórbida ou toda a morte é bela poderiam ser frases suas, ele que gostava tanto de frases totais, polidas, sem arestas, sem hesitações. A obsessão pela morte era anterior às tragédias familiares quase impossíveis, de romance de cordel, que marcaram o escritor. Era uma curiosidade genética, desde a infância: “Desde garoto sou fascinado pela morte. Em vez de ter medo, ia peruar enterro. Não tinha medo nenhum, e volta e meia me infiltrava nos velórios. Achava uma coisa fantástica a chama das velas. Hoje os nossos velórios perderam isso, é tudo luz elétrica. Uma coisa incrível, uma falta de respeito. Antigamente havia os gemidos e os gritos na hora do enterro. O enterro era apaixonante. Entrava todo mundo assim, de cara de pau. Hoje a capelinha desmoraliza a dor. Antigamente, a hora de sair o enterro era uma coisa  tenebrosa.” (O Estado de São Paulo, 10/09/1978). Uma das primeiras cenas de Asfalto Selvagem, a sua obra-prima romanesca, é no funeral de um personagem. O Dr. Odorico Quintela faz um elogio fúnebre ao falecido, mas o seu desejo alucinado é o de elogiar publicamente os atributos da filha adolescente do morto: “O que interessa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por esses dois seios pequeninos!”.

 

Em Nelson Rodrigues, os assuntos verdadeiramente sérios, as suas obsessões, misturam-se numa lógica que só aparentemente é contraditória: é a lógica do excesso, do gesto operático, sublime e patético, quer seja na morte, no amor ou no sexo. É a lógica romântica e desesperada do suicídio (veja-se a quantidade de suicidas nas ficções de Nelson Rodrigues), como a de Eusebiozinho, outro protagonista de um conto, que, nas vésperas do seu casamento, se enforca com o vestido da noiva e deixa um bilhete onde pede para ser enterrado assim (“A coisa mais bonita do mundo é uma noiva!”), ou da pura obsessão com a morte, o desejo de morte que é uma forma passiva de suicídio, que atormenta e fascina Conceição: “As fitas que acabavam mal, em morte, agonia e luto, causavam nela um duplo sentimento de fascínio e repulsa.” Queria ser uma “morta bonita”, sonhava “morrer no altar com grinalda e véu” e só a ideia de ser enterrada a aterrorizava, associada ao léxico sombrio e pesado dos cemitérios: “terra fria”, “sete palmos de terra”, “jazigo perpétuo”. É um imaginário ultra-romântico que sublima, por contraste, o lado hediondo do homem: “É preciso ir ao fundo do ser humano. Ele tem uma face linda e outra hedionda, acho mais importante a hediondez. O ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez. Eu me proponho a reconhecer a hediondez”, afirmou o escritor numa entrevista. Só um moralista poderia falar assim. É por isso que Nelson Rodrigues detestava os artigos do pensador católico Gustavo Corção: “Oh, esse homem, esse católico apenas irritado e sem paixão! Oh, essa virtude sem amor!”. O dramaturgo era o oposto. Como acreditava que “o ser humano só se salva se reconhecer a própria hediondez”, mostrava-a explícita e apaixonadamente. Ao confrontar o leitor e o espetador das suas peças com a miséria escondida da humanidade, a obra de Nelson Rodrigues é moralista e catártica. Ao oferecer-se à crítica e à censura, expia os pecados alheios, lava os crimes silenciosos que todos cometemos, mesmo que em pensamento: “Assim é o povo: - tem fome de sangue e excremento”, lê-se em Asfalto Selvagem. O escritor procurava o sangue e o excremento onde a sua existência era mais inesperada e chocante: no interior da família. Catar lixo nas lixeiras não era o negócio de Nelson. Esse realismo de valeta aborrecia-o. O instinto dramático do escritor aguçava-se quando farejava a virtude, em busca do que se escondia sob a aparência da retidão: “Certas virtudes fedem”, “O desejo do puro é hediondo” ou “A virtude é triste, azeda e neurasténica” são algumas das frases dos seus livros que demonstram essa desconfiança em relação à virtude inexpugnável.

 

E o terreno ideal para este garimpeiro do sórdido era o sangue envenenado da família. É uma grande ironia que o demónio reacionário tenha sido acusado pela direita de servir os interesses da esquerda porque as suas peças demoliam o conceito tradicional de família. O crítico Sábato Magaldi, na introdução ao segundo volume do Teatro Completo de Nelson Rodrigues, faz-lhe justiça: “A História e a Civilização traem inapelavelmente a inteireza dos impulsos autênticos, disfarçados, transferidos ou sublimados em outros valores. Mas são esses valores que propiciam a continuidade da vida. Se correto esse raciocínio, Álbum de Família deixaria de ser a tragédia que assustou os bem-pensantes, para testemunhar o moralismo congênito do dramaturgo.” Em Asfalto Selvagem, o narrador diz que “cada família tem suas trevas interiores, que é preciso não provocar”. Ora, o programa de Nelson Rodrigues era provocar estas trevas interiores resguardadas pelo biombo da respeitabilidade. Não queria destruir o biombo, queria desviá-lo para que pudéssemos contemplar, incomodados, a podridão. Se o que o atraía para o sexo era o seu “seu alto valor trágico, e importantíssimo para o teatro” só podia centrar-se no espaço familiar, arena miniatural em que ganham corpo todas as tensões, repressões, neuroses e desejos, o princípio e o fim do universo rodriguiano. O Edmundo de Álbum de Família diz: “Mãe, às vezes eu sinto como se o mundo estivesse vazio, e ninguém mais existisse, a não ser nós, quer dizer você, papai, eu e meus irmãos. Como se a nossa família fosse a única e primeira.” É este o conceito bíblico e trágico da família na ficção e no teatro de Nelson Rodrigues. É aí que o sexo é mais doentio, mais mórbido, que o seu valor trágico é mais elevado porque as personagens são “devoradas pelos seus escrúpulos.” O seu reino não é o do deboche, é o da violenta repressão do desejo e, depois, da violenta materialização do desejo. Em Nelson Rodrigues o sexo não é uma atividade lúdica, é uma maldição, uma doença hereditária que destrói o tecido das relações. Eis a importância espiritual do sexo nas palavras do escritor: “É o sexo que faz de cada criatura um ser marcado. E profundamente infeliz. Toda pessoa que perdeu a inocência, que um dia praticou o ato sexual é, a meu ver, um ser perdido, devorado pela voragem do desejo insaciável.” E quanto mais se reprime, com mais força ele regressa. É uma boa síntese da história de Engraçadinha, a protagonista de Asfalto Selvagem. O romance foi publicado em capítulos diários no jornal do Rio de Janeiro, Última Hora, entre agosto de 1959 e fevereiro de 1960. Tem todos os elementos centrais ao universo rodriguiano: amor, sexo, morte, incesto, culpa, repressão. O estilo folhetinesco não retira ao livro o seu poder reflexivo, que está nas ações das personagens mas também na voz do narrador. Mas não há no romance nada mais grandioso do que essa Engraçadinha, selvagem na adolescência, reprimida e fervorosa protestante depois dos trinta, uma devota evangélica obedientemente casada com um marido manso que nunca a viu nua. Mas a semente do desejo é assim: quanto mais fundo é enterrada, com mais força brotará. E nós sabemos que a vida daquela mulher é um teatro em que ela é a atriz principal (a hipócrita). Aguinaldo Silva comparou-a à Capitu, de Machado de Assis, “entre as grandes personagens da literatura” brasileira. No entanto, perante a criação de Nelson Rodrigues, Capitu parece uma estátua. Capitu não é uma personagem trágica. É um detonador da tragédia. Engraçadinha é um explosivo e a sua razão de ser é a explosão. Enquanto Madame Bovary, outra adúltera, procura realizar uma ilusão literária em que o sexo e o dinheiro são elementos equivalentes para essa realização, o móbil de Engraçadinha é o desejo. O seu fim é a explosão, a deflagração dos desejos. Engraçadinha é profundamente trágica, uma corporização do pessimismo antropológico do seu criador: por muito que nos esforcemos por domar os nossos instintos mais básicos, com o chicote da religião ou do casamento, eles irrompem com a força do fatum, perante a qual somos impotentes. Nelson Rodrigues era um especialista das zonas de tensão, dos conflitos contraditórios no interior do ser humano. Dramaticamente, a devassidão é plana. O que é trágico é a violência que se esconde na pusilanimidade, o desejo torturado que há na pureza, o potencial transgressor na mulher séria. A hipocrisia, o drama que se esconde nos intervalos da normalidade, a contradição entre a banalidade da vida familiar e o excesso disruptivo das paixões primitivas, são o combustível rodriguiano. Sob um manto de respeitabilidade, ardem chamas inconfessáveis.

 

A representação mais conseguida desses conflitos foi realizada nas peças teatrais, no seu “teatro desagradável”: “A partir de Álbum de Família [...] enveredei por um caminho que pode-me levar a qualquer destino, menos ao êxito. [...] são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia.” O “satanismo” exagerado de Nelson Rodrigues, sintoma de uma elevada consciência dos imperativos artísticos, provocava reações extremadas e viscerais. Embora não escrevesse para escandalizar, para “épater le bourgeois”, apreciava o escândalo e via nele um sinal de reconhecimento. “O mau-gosto deve ser recuperado”, dizia, e a sua obra roça, por vezes, o ridículo, a implausibilidade. Não escrevia para “grã-finas” e até se sentia honrado por, no final da exibição de uma das suas peças, ter visto senhoras respeitáveis a pular por cima das cadeiras, uivando como apaches, insultando-o e chamando-o de tarado. Defendia-se dizendo que as suas peças não tinham palavrões, mas eram tão cruas e brutais que, na cabeça dos espetadores, ficava a ideia que sim, que havia muitos palavrões. A vaia era a sua consagração. Era assim que sabia que tinha tocado os espetadores. Quem não gosta, levanta-se e sai da sala a meio da peça, mas quem fica até ao fim para insultar é porque foi tocado por aquilo que viu. Anos antes das vaias, o público recebera em êxtase a sua peça Vestido de Noiva. Na plateia gritava-se “Pirandello! Pirandello!” Rodrigues temia mais os elogios. Preferia o ódio, a reação visceral e indignada ao aplauso automático e burro: “Toda a unanimidade é burra”, tornou-se uma das suas frases mais citadas. Esta obediência às exigências da arte (que não se preocupa com o êxito e com os louvores), e a sede quase infantil de antagonismo, arranjaram-lhe críticos em todos os setores da sociedade e tornaram-no um alvo preferencial da censura. Ele, que ainda hoje é um mito para a direita culta, mordaz e desabrida, foi vítima da direita inculta, brutal e beata. Álbum de Família, escrita em 1945, só foi encenada em 1967, por causa da completa proibição da censura.

 

O poder revelador do teatro de Nelson Rodrigues era enorme. Sábato Magaldi fala sobre rasgar “o véu da consciência”, “as verdades profundas do indivíduo” e o “desnudamento do universo interior”, ações de revelação que só poderiam ser servidas por uma linguagem crua, igualmente reveladora. Se o “teatro não tem que ser bombom com licor”, a linguagem não pode ser “a pirâmide de confeitaria”, a melodia de Guimarães Rosa. Nelson não queria fazer literatices: “Se eu tivesse que dar um conselho, diria aos mais jovens: não façam literatice. O brasileiro é fascinado pelo chocalho da palavra. Aos 13 anos escrevi: “O crepúsculo era uma apoteose de sangue”. Hoje é difícil eu cair no pecado da literatice.” Na sua prosa sente-se a febre da redação, o estilo tenso do repórter, obrigado a constantes tiros certeiros no meio das rajadas que se via obrigado a produzir: o “ódio impotente”, a “fidelidade mórbida”, a “fúria obtusa” e o “choro ignóbil”. Algumas formulações são dignas de épocas em que a sentenciosidade era a segunda natureza do romancista: “Tomou-se dessa agressividade que há no fundo de qualquer tímido”, “Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça, mas o povo o tem”, “o amor normal não tem imaginação, nem audácia, nem as grandes abjeções inefáveis. É um sentimento que vive de pequeninos escrúpulos, de vergonhas medíocres, de limites covardes”. Nelson Rodrigues aliava a capacidade do cronista de observar comportamentos ao talento literário para os registar de forma quase arquetípica. O Dr. Arnaldo, pai de Engraçadinha, sai diretamente do romance para o Olimpo, em representação do político ineficaz e popular. Eis o génio romanesco, queirosiano, de Rodrigues: “Até o momento de estourar os miolos o dr. Arnaldo era o político mais popular do Estado. [...] Dizia-se, com certo humor respeitoso, que era popular até entre os vira-latas que, na rua, vinham lamber-lhe as botinas. É certo que não lhe conheciam atos, projetos ou medidas de bem público que justificassem tal projeção. [...] Mas o dr. Arnaldo – é preciso que se note – tinha, se assim posso dizer, o gênio do cumprimento. Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimentava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhecidos, e, digo mesmo: - saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos.” A sua linguagem, como toda a sua obra, é “vital”, nunca é apenas “interessante.” O próprio Nelson fazia esta distinção e queria evitar que a linguagem obscurecesse a limpidez da criação. Dizia sobre o dramaturgo francês Jean Giraudoux que “a melodia de sua prosa é um luminoso disfarce da sua impotência criadora.” Como em tudo na sua obra, a linguagem de Nelson Rodrigues é um assunto sério, tem um valor ético que supera as qualidades ornamentais, musicais, da palavra. A clareza da linguagem é a clareza do pensamento, mesmo quando a linguagem descreve a ambiguidade, mesmo quando o pensamento se debruça sobre as contradições.

 

Se era um repórter das contradições dos seus personagens, Nelson Rodrigues não ignorava decerto as suas próprias contradições. “A minha ficção é uma coisa. E eu posso ser outra”, dizia. As suas contradições são as de Raskolnikoff. Dizia-se um Raskolnikoff sem instintos homicidas e alegrava-se por Dostoievski ter posto o seu personagem mais célebre a ajoelhar-se perante Sónia, numa cena patética e sentimental. Segundo o cronista Pedro Lomba a “cabeça de Nelson Rodrigues fervilhava de contradição, consigo mesmo e com o mundo. Porque a verdade é que somos capazes de tudo. Do amor, da morte, da pureza, da bestialidade.” Era o anjo pornográfico, título da biografia definitiva de Ruy Castro: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. [Curiosamente, é através do buraco da fechadura que Zózimo, o marido pusilânime de Engraçadinha, vê pela primeira vez a nudez frontal da mulher]. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.” A vida e a profissão de repórter policial, com que se iniciou no jornalismo, deram-lhe muita matéria para espreitar e muitas oportunidades (trágicas) para se contradizer. A obsessão com o suicídio teve origem em histórias ouvidas na infância e que contaminaram a sua imaginação e sensibilidade. Mas também a vida familiar, com a sucessão de tragédias e reveses, alimentou o ficcionista das contradições humanas e o homem contraditório. A 26 de dezembro de 1929, Sylvia Seraphim, uma senhora da alta sociedade cuja separação do marido merecera honras de primeira página no jornal Crítica, propriedade de Mário Rodrigues, pai de Nelson, dirigiu-se à redação. O escândalo abalara a sociedade carioca e Sylvia queria vingança. Mário não estava no jornal. O tiro que lhe estava destinado acabou por matar um dos filhos, Roberto Rodrigues, artista plástico e ídolo da família. Pouco mais de dois meses depois, Mário morreu, vítima de uma trombose. Esta sequência de eventos deixou uma marca profunda na sensibilidade de Nelson e pode-se dizer, com o devido exagero rodriguiano, que o sangue de Roberto tinge toda a sua obra. Outro episódio decisivo ocorreu muitos anos depois, na década de 1970. O filho de Nelson Rodrigues, Nelsinho, era membro de uma organização revolucionária de guerrilha urbana, o MR-8. Viveu dois anos na clandestinidade antes de ser preso em 1972. O pai, o eterno anti-comunista, que dizia que “a experiência comunista é o que há de pior nos últimos trinta milhões de anos”, viu-se entre a espada das suas ideias e a parede do amor ao filho. Ele, que sempre negara a utilização de métodos de tortura pelo regime militar, sofreu a dor terrível de ouvir da boca do próprio filho que os presos políticos eram submetidos a violentas sessões de tortura. Em 1979, um ano antes de morrer, em entrevista ao jornal Última Hora, Nelson Rodrigues dirigia-se diretamente ao presidente do Brasil, João Baptista Figueiredo: “Solte esses rapazes, Figueiredo. Meia dúzia de obras gigantescas não colocam um presidente na História. Você é o único brasileiro que tem essa oportunidade na mão. Solte esses moços, Figueiredo. Por favor, Figueiredo, solte meu filho.” Como escreveu o seu biógrafo, a vida de Nelson Rodrigues, com tantos acasos retorcidos, chega a ser mais impressionante do que qualquer invenção literária do escritor.

 

Saímos de Nelson Rodrigues, da sua obra e da sua biografia, com a sensação incómoda de termos testemunhado a miséria das nossas abjeções, os terrores primitivos da nossa condição, a vil tristeza de um animal que deseja. Saímos, por isso, purificados, com a cicatriz de um golpe que nos fere profundamente e, ao mesmo tempo, nos deixa lúcidos para além de qualquer possibilidade de ilusão ou utopia. Sentimos que não é possível escavar mais fundo, que já chegámos à nudez absoluta do humano, na sua miséria, abjeção e glória. Nos livros de Nelson reencontramos, sem rodeios ou literatices, o que um crítico chamou de “certa selvagem beleza da vida”, sabendo que é nessa fonte de pureza primordial que bebemos os nossos amores e os nossos pecados.

 

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