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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

21
Set12

A loja

Bruno Vieira Amaral

Alguns prédios já estavam acabados e havia sinais de vida em algumas casas, bonecos colados nas janelas, cortinados, um estendal portátil, bicicletas nas varandas. Sem crianças, o parque infantil de chão de borracha, com um cavalinho de madeira abstracto, um baloiço imóvel e um escorrega reluzente assemelhava-se a uma ideia de parque infantil, vago como um projecto numa folha de papel. Viam-se carros estacionados longe uns dos outros, caixotes do lixo sem lixo, só caixotes, postes de iluminação impecáveis, tudo provas materiais e irrefutáveis que, nesta cidade, o civismo só é possível desde que não haja pessoas. Os espaços para as lojas nos rés-do-chãos tinham afixadas as placas das imobiliárias, embora um ou outro já estivesse ocupado com o indispensável café, a lavandaria útil e a inexplicável loja de decoração cuja proprietária, senhora dos seus cinquenta anos, tinha vindo até à porta logo que pressentiu movimento humano e ficara com um meio-sorriso entre o cumprimento educado e a desilusão obrigatória quando percebeu que não eram clientes. Pedro era guiado pelo rapaz da imobiliária que mencionava a cada minuto o incrível potencial daquela zona, a classe média/alta que em breve tomaria de assalto as casas, já estava quase tudo vendido, o movimento previsto para os fins-de-semana, os planos que tornariam o espaço ainda mais agradável, as sombras e as esplanadas, jovens casais a transbordar de alegria nupcial, crianças alegres e obedientes encharcadas de futuro, idosos tranquilos sentados nos bancos sem a resignação triste dos jardins antigos mas como quem contempla um passado harmonioso, uma vida completa, e, acima de tudo, gente cansada do anonimato dos grandes centros comerciais, gente ansiosa por voltar a fazer compras à porta de casa, a passar algum tempo à conversa com pessoas conhecidas, e com dinheiro suficiente para gastar em qualquer coisa que lhes fosse apresentada com um sorriso no rosto. Em suma, o sucesso de qualquer negócio, por disparatado que fosse, estava assegurado. Acontece que Pedro não tinha qualquer ideia, por mais disparatada que fosse, para o negócio. Tinha algum dinheiro para investir e esperava que a visita às lojas servisse de inspiração. Ao largo de um dos prédios inacabados passeava um velho, de mãos atrás das costas, espreitando através da rede, um inspector que tivesse chegado tarde de mais. Do outro lado da rede havia uma mesa de improviso com uma tábua assente em duas latas de tinta viradas ao contrário e uns tijolos que tinham servido de fogareiro. Tudo abandonado. Noutros tempos, em que era mais sensível aos sinais e às profecias, Rui teria visto naquela desolação um aviso, mas quem poderá travar um coração optimista? Sem nenhuma ideia do negócio, olhava para as paredes e alegrava-se com a luz a entrar pelas janelas e imaginou como seriam aprazíveis as manhãs de Dezembro em que o sol aparece lembrando-se de outras manhãs de Dezembro há muitos anos, noutra vida. A vida que lhe chegava agora como uma explosão que deflagra no peito. Lembrava-se que sempre detestara festas de aniversário, as dele e as dos outros, naquelas casas pobres e sujas, com mesas de cozinha de fórmica, os talheres desirmanados, a luz fria de uma lâmpada sem abat-jour, os naperons de papel em pratos de plástico, rissóis e croquetes magros, pacotes de batatas fritas despejados em tijelas de esmalte atacadas pelas mãos sujas das crianças, o cheiro de toalhas húmidas na casa de banho, do sabão azul e branco e do Brise marinho que dava vontade de morder e morrer, que o induzia num estado de euforia quase sexual como o odor da gasolina ou da cola, as garrafas de dois litros de sumo de laranja, uma avó esquecida na sala, reclinada num sofá coçado a olhar absorta para a televisão a preto e branco, com uma manta verde sobre os joelhos, as agulhas do crochet pousadas sobre uma camisola de lã que nunca haveria de acabar, destinada à neta que nunca haveria de conhecer, e depois, num movimento brusco de bando de pássaros, todos a irem para o quarto estrear o castelo do He-Man ou lá para fora para experimentarem à vez a BMX novinha em folha, com amortecedores e à frente uma tira de plástico com o nº 23. Olhou para o sítio onde ficaria bem a registadora, um biombo ou talvez uma rapariga que ele contratasse para estar ali na loja, uma rapariga não como essas que se encontram nas lojas dos centros comerciais, com aquele tipo de beleza uniforme, que é em si uma celebração do esquecimento, mas uma rapariga que, ao ser observada, desse a impressão de vir de uma terra que não conhecemos. Naquele momento a luz que entrava pela loja era tão cálida, tão macia, que Pedro sentiu-se com quatro anos a brincar na varanda com um carrinho que ele pintara de verde, ao lado da avó sentada num cadeira velha da mobília da sala, com o assento de napa rasgado, a descascar feijão-verde e a olhar para o caminho por onde viria o marido com uma pasta ao ombro onde levava a marmita e a garrafa de vinho e onde trazia um saco cheio de pinhões que apanhara à hora do almoço. O vendedor já não falava. Andava em círculos tímidos a olhar para o chão. A tagarelice enérgica cessara e o homem era agora quase uma lembrança, um vulto pronto a desfazer-se como se tivesse sido domado pelo ritmo onírico dos pensamentos de Pedro. Havia na loja um recanto mais escuro que não era do agrado de Pedro, onde se acumulavam pedaços de papelão e plástico e talvez peças de uma torneira. Resolveu sair dali e regressar à parte mais luminosa. O que poderia vender naquela loja? Fruta? Jornais? Roupa? Tinha a certeza que o encanto desapareceria logo que o espaço se rendesse à função comercial. A luz morreria. Viu então o velho que passeava a aproximar-se da grande janela da frente, a fazer uma pala com a mão direita, enquanto a esquerda permanecia dobrada para trás, para espreitar para o interior, viu-o dirigir-se para a porta, a transpor o limiar, a tirar a boina e a segurá-la humildemente com ambas as mãos, a pedir desculpa num fio de voz sem orgulho ou prepotência e a perguntar-lhes, como alguém que acabou de perder um objecto mas que há muito não sabe de si: “Os senhores por acaso não viram por aqui o meu filho?” Então Pedro soube o que sabia desde sempre: era um homem de Deus e ali fundaria a sua Igreja.

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