“It is in the light cast by those sparks that the first photographs emerge with such loveliness, such unapproachability, from the obscurity of our grandparents’ day.”
Walter Benjamin, Brief History of Photography [1931]
Os excerto em itálico são retirados do livro Ensaios sobre Fotografia, de Susan Sontag, traduzido por José Afonso Furtado
Todas as fotografias de infância têm um halo de perda. Quando regresso aos velhos álbuns o momento nunca é de regozijo. Na natureza é muito o que se perde e está tudo nas fotografias que guardo: eu com quatro anos a colher uma flor no baldio ao lado do prédio, o meu avô a abraçar-me, a minha primeira bicicleta, uma excursão à Figueira da Foz com a minha avó e a minha mãe. Ali, em cada uma das fotografias, a sorrir ou com um ar cansado, está o meu cadáver infantil, o que morreu. Quando observo as fotografias da infância da minha mãe ou da juventude dos meus avós o que sinto é diferente. Há a satisfação cronológica de encontrar o que não vivi, de testemunhar o que não pude ver, de viajar para um tempo que a minha memória não pode reconstituir: um mundo que só existe naquelas fotografias. Aquelas fotografias não são, para mim, os destroços do tempo, são o tempo que houve antes de mim. Não há conflito, apenas aceitação, porque não posso levar a minha memória a jogo.
Quando vejo fotografias de tempos que conheci não resta nenhuma alegria porque estou a olhar para a prova de tudo o que se perdeu com o tempo, estou a observar-me a percorrer o caminho em direcção à morte. No campo entre o meu olhar e o objecto trava-se a batalha desesperada da memória contra a matéria. A fotografia, que dá a ilusão de capturar o tempo, de fazer com que as coisas durem, revela-se na sua crueldade intrínseca: dá a ilusão de congelar o tempo mas tudo o que a sua existência faz é lembrar-nos dos seus efeitos. Porque tiramos fotografias, essas feridas que nunca mais cicatrizam? A fotografia é uma actividade nostálgica. A sua matéria não é a realidade, é o tempo. Nas fotografias que guardamos da nossa família, nas nossas fotografias que escolhemos para arquivar, nada é tão carregado de pathos como o tempo que passou, o que ainda não existia no momento em que tirámos a fotografia. O que há de mais vivo e doloroso na fotografia era o que ainda não estava lá; não é o que ela regista, é o que lhe acontece, o tempo. Roupas, objectos, paisagens, pessoas, foi tudo arruinado pelo tempo como um vento implacável. As fotografias são um cilício espiritual, uma alegria miserável. A famosa frase de Dante (não há maior dor do que a lembrança dos tempos felizes na miséria) necessita de uma ligeira correcção: é a recordação dos tempos felizes que instala a miséria no presente. A fotografia de um tempo remoto é sempre uma recordação feliz que produz um presente miserável. A fotografia doméstica põe-nos sempre em confronto com o tempo. O nosso sentido opressivo da transitoriedade de tudo é mais agudo desde que as câmeras permitem «fixar» um momento fugaz.
A fotografia, ao contrário da literatura, que precisa de refazer o tempo através das palavras e da narrativa, é um simulacro da memória, o artefacto encontrado nas escavações. Uma arqueologia íntima fabricada por cada um de nós. Quando nos fotografamos não estamos apenas a querer preservar recordações mas a dizer que a nossa vida é digna de ser fotografada e que, por ser fotografada, é digna de ser recordada, que é memorável. A fotografia doméstica é cofre-forte da felicidade, prova material dessa felicidade. Porém, todas as fotografias são tristes porque contêm um prenúncio de morte. Vejam esta fotografia:
Foi tirada na festa de casamento do meu tio. Eu tinha três anos. Ao meu lado está o meu avô. Nesta data, tinha quase setenta anos. Ao olhar para esta fotografia, quem nada sabe sobre mim pergunta-se onde estará aquele homem. Trinta anos depois é provável que já tenha morrido, pensa. Instala-se imediatamente uma atmosfera de dor. Mas o que a fotografia não conta – porque a fotografia sugere muito mas diz muito pouco, é evocativa mas não é narrativa, é um fragmento de vida mas não a sua explicação – é que esta foi a última fotografia que eu tirei com o meu avô. Uma semana depois estava morto, vítima de um atropelamento. Mas as verdades que podem ser reportadas a um momento isolado, por mais significativas ou decisivas, têm uma relação muito limitada com as exigências da compreensão. Contrariamente ao que sugerem os argumentos humanistas a favor da fotografia, a capacidade da câmera para transformar a realidade em beleza deriva da sua relativa insuficiência como meio para veicular a verdade.
Com esta história, e os efeitos cumulativos da passagem do tempo, a fotografia adquire uma aura tétrica. Depois de conhecermos a história, a fotografia transforma-se e onde só havia tristeza por uma alegria pretérita instala-se uma sombra de morte. A fotografia, enquadrada nesta narrativa, provoca um efeito diferente. Fizemos um zoom narrativo. Mas também se pode fazer um zoom estético. Vejam a mesma fotografia mas mais aproximada:
A escolha de um detalhe, a descontextualização desse detalhe, torna a fotografia mais poderosa, mais abstracta, mais inquietante (a criança está mais próxima, mas de quem é aquela mão?). Quer uma – a contextualização narrativa – quer outra – a descontextualização estética – alteram o valor da fotografia, provocando prazeres e dores diferentes. Esta utilização da fotografia enquanto instrumento que desloca o valor da narrativa, que faz flutuar esse valor, é realizada em toda a plenitude na obra de Sebald. Nos romances de Sebald, em que a ficção e o real são praticamente inextrincáveis, a fotografia simboliza essa amálgama poderosa. James Wood diz que “o uso que Sebald faz das fotografias é solene e elegíaco”, nunca é um artifício pós-moderno para confundir o leitor. E nós identificamo-nos com essa solenidade porque a experimentamos na nossa privacidade. Eis o que Pedro Mexia escreveu numa crónica a propósito da falência da Kodak: “Lembro-me de em miúdo folhear o nosso álbum de família como se fosse um códice bizantino, e mesmo as cenas descontraídas ganhavam uma aura de pequena eternidade, especialmente quando o fotografado tinha entretanto morrido, ou estava irreconhecível, ou quando a nossa atenção se prendia num detalhe significativo, no qual o fotógrafo talvez nem tenha reparado.” É o tempo, e não a fotografia, que conta histórias diferentes.
A fotografia não é apenas a arte da nostalgia, da invenção do passado e de um modo de olhar para esse passado, é uma arte funerária, a homenagem a tudo o que é mortal, temporário. O impulso é o da imobilidade, da conservação, da recolha de momentos mortos. Tal como o colecionador, o fotógrafo é animado por uma paixão que, mesmo quando parece ser uma paixão do presente, está ligada a um sentimento do passado. É um taxidermista do presente. Um necrófago que mata os momentos presentes, transforma-os em passado e alimenta-se deles. O instagram é esse desejo necrófago adaptado à velocidade dos nossos dias. Não se pode esperar que o tempo exerça os seus efeitos. Acelera-se o efeito do tempo. Fast-food para necrófagos, nostalgia à la carte: o fotógrafo está empenhado, a qualquer custo, na tarefa de transformar a realidade em antiguidade, e as próprias fotografias em antiguidades instantâneas. Este gosto pela monumentalização, o efeito de dignidade que a fotografia empresta à banalidade, ao quotidiano, faz das nossas casas mausoléus de coisas vivas. Quando entro em casa da minha avó, o número de fotografias da família é assustador. Em vez de compensarem a ausência física de filhos e netos são a lembrança permanente dessa ausência, como um quarto intocado é a recordação permanente da morte de um filho. Aquela casa é um mausoléu fotográfico em homenagem à morte em vida que é a ausência, a separação, a distância. Naquela casa, entre as plantas cobertas por um véu de pó, a velha máquina de costura enferrujada, os brinquedos que ali foram sendo deixados pelos netos, reina “a atmosfera macabra de certos salões” (Sebald). A casa da minha avó, cheia de tralhas e trastes, rádios velhos e copos lascados, a família dispersa reunida pelo poder das imagens, é um museu doméstico. A adoção da fotografia pelos museus mais não faz do que acelerar um processo que o tempo de qualquer modo acabrá por concretizar: a valorização de todas as obras.
Convém notar que a alteração da fotografia (através da edição, dos retoques ou do envelhecimento) não é uma inovação (ou degradação) própria dos nossos tempos, mas uma das qualidades intrínsecas da fotografia. Num artigo publicado no Guardian, a 19 de julho de 2012, Kate Bevan manifesta-se contra o instagram, dizendo que os filtros das novas aplicações distorcem a história contada pela imagem. É um erro. Os filtros só distorcem uma história no mesmo sentido em que a fotografia distorce a realidade, ou seja, no sentido em que é uma parcela muito limitada e não narrativa da realidade. Quando alteramos uma fotografia através do instagram estamos a contar uma outra história e não a distorcer uma história original e intocável (o que Bevan quer dizer é que aqueles filtros distorcem a realidade, quer a realidade captada, quer a pureza do acto de fotografar, quando sabemos que a fotografia não capta a realidade mas faz realidade e que nunca é pura porque está subordinada a uma intenção e é sempre um discurso sobre a realidade) da mesma forma que ao escolher um ângulo ou pedir a alguém que sorria já estamos a intervir na realidade que se pretende captar. Bevan acerta quando diz que “queremos levar as nossas imagens de volta ao tempo que tirávamos fotografias com as primitivas câmeras de 2megapixel ou quando digitalizávamos as velhas fotografias de família.” Isto é, o instagram é a derradeira prova de que, mais do que o presente, estamos interessados em fotografar o passado porque associamos as fotografias ao que já passou. Com as novas possibilidades tecnológicas ganhámos consciência que somos produtores de passado em vez de agudos cronistas do presente. No campo da fotografia doméstica, a relação com o tempo é muito mais viva do que a relação com a realidade. Simular um regresso ao primitivismo da fotografia é um movimento idêntico ao das pessoas que fogem da cidade para o campo para uma ideia de vida mais pura e original. Que seja a tecnologia a possibilitar esse primitivismo é uma das ironias da modernidade. Queremos que as fotografias sejam mais reais, mais parecidas com as fotografias a que estamos ligados afectivamente, e, para que tal aconteça, falsificamos a imagem, fazemos imagens à imagem e semelhança de outras imagens.
Se as fotografias domésticas são implicitamente uma arte funerária, as fotografias das lápides e das páginas de necrologia são-no de um modo explícito. Podemos desejar que sejam recordações de um ser vivo, mas são símbolos da morte, monumentos tétricos. Veja-se as páginas da necrologia. São lúgubres. Estão carregadas de morte. Tudo o que está na fotografia é transitório menos a própria fotografia, que sobrevive com as suas rugas. Como é apenas um momento, um instante, um pedaço de tempo arrancado do fluxo da vida, podemos aspirar à perfeição, a uma felicidade arquetípica num dia de sol perfeito, sem nuvens, sem erros, sem dor. E assim vemos que a fotografia é a negação do caos da vida, da vibração caótica da existência. É uma composição, uma natureza morta, um arranjo floral, uma falsificação do turbilhão em que vivemos. Uma nota retirada do caldo ruidoso que é a vida. Enquanto a vida é movimento, ruído, falta de jeito, dores, gritos, gargalhadas sonoras, a fotografia é silêncio, quietude, gargalhadas sem corpo, é a dignidade das posturas inamovíveis, a solenidade hierática das páginas da necrologia. A fotografia doméstica é um lembrete da nossa morte futura. Tiramos fotografias porque sabemos que a felicidade e a vida são efémeras e queremos provas dessa felicidade, provas dessa vida. Mas assim que fotografamos esses momentos tornamo-los peças de museu, empurramo-los para o passado, dizemos-lhes que a felicidade é insuportável de ser vivida e que só é tolerável quando sorvida através da memória. Tirar fotografias é defendermo-nos da felicidade insuportável da vida, é reduzir a felicidade a limites aceitáveis, fotografáveis. Como os monumentos funerários, as fotografias são artefactos mágicos que respeitamos tanto como as ossadas dos nossos familiares. Rasgar ou queimar uma fotografia de um familiar seria o mesmo que cuspir-lhe na campa. Mas perduram alguns vestígios da magia, por exemplo, na nossa relutância em rasgar ou deitar fora a fotografia de um ente querido, especialmente se está longe ou morreu. Fazê-lo equivaleria a um gesto desumano de rejeição. Daí que esse ritual de vingança esteja reservado a pessoas que nos fizeram sofrer. Deitamos fora fotografias, rasgamo-las ao meio, para expulsar simbolicamente aqueles que nos magoaram, os que queremos apagar da nossa vida e da nossa memória. Por outro lado, preservamos as fotografias da nossa infância e daqueles que amámos e já morreram – e as crianças que fomos também já morreram – para derrotar o tempo e para impor ao mundo material fragmentos de memórias e de sentimentos. O esforço é inglório, bem sabemos. Quando olhamos para fotografias muito antigas de desconhecidos o que resta é a matéria de um instante fugaz. Os sentimentos e as memórias morrem sempre com quem os carrega e não podem ser comunicados nem sequer através da mudez mágica das fotografias.
P.S.: O homem naquela fotografia é, na verdade, o meu bisavô, e não morreu uma semana depois de ter sido tirada aquela fotografia. Morreu apenas 28 anos depois, com 95, e ainda conheceu o trineto, meu filho. Guardo uma fotografia desse encontro.