Criar personagens
Texto lido nas apresentações do meu livro, em Lisboa e no Porto:
A criação de uma personagem não é um acto meramente literário. É um acto religioso, filosófico, moral, espiritual. Quando cria uma personagem, o autor não é apenas um escritor, por muito bem que escreva. Mesmo que não goste muito da personagem, mesmo que queira que o leitor partilhe desse desdém, o facto de passar tempo com ela, de lhe dar voz, de se apagar para que a personagem se revele, é um gesto de genuíno altruísmo; não aquela noção de altruísmo corriqueiro, que se confunde com generosidade ou com dar esmola aos pobres, mas o altruísmo que significa o abandono de si e a aceitação integral do outro. A contribuição moral do romancista é a criação de personagens e o que isso representa para o alargamento da nossa concepção de humanidade. Descrever alguém diferente de nós, ser capaz de o fazer, é o mesmo que estender a mão para salvar um desconhecido. Tem, salvaguardadas as devidas distâncias, um valor idêntico. Compreender o outro é, de facto, perdoá-lo mesmo quando as suas acções são inaceitáveis. Quantos de nós, na vida real, dedicam mais do que breves momentos a tentar perceber aquelas pessoas de que não gostam ou, por muito estranho que possa parecer, das pessoas de que gostam? Na maior parte das vezes entregamo-nos aos sentimentos básicos que as pessoas nos despertam, ao ódio que lhes temos, ou amor que por elas nutrimos, e muito raramente lhes aplicamos o mesmo tratamento que um romancista dispensa às suas personagens. É esse o valor filosófico e moral da criação de personagens. A filosofia do absurdo pode ser exposta num ensaio, num tratado, mas Meursault vale todos os tratados e todos os ensaios sobre a filosofia do absurdo. Juliana, que incluí neste livro, é detestável, é certo, mas lá no fundo não gostamos dela? No fundo, não nos compadecemos com aquela vida miserável, com os seus sofrimentos de virgem tardia, com a sua eterna má-sorte de criada? Não torcemos um bocadinho por ela quando chantageia a patroa? Não pensaremos nós que aquela justiça retorcida é, ainda assim, uma forma de justiça? A verdade é que o romancista nos disse tudo sobre ela, falou-nos da sua história, da sua vida difícil, dos seus sonhos cor de bílis e isso, por muito que tenhamos vontade de a estrangular, aproxima-nos de Juliana. Compreender é perdoar. O castigo é merecido mas nós já a perdoámos porque a conhecemos como não podemos conhecer ninguém na vida real, na sua totalidade, nas condições materiais e nas ambições íntimas, de alto a baixo, dos pés à cabeça.
As personagens de Shakespeare, as galáxias humans de Tolstói, não podem ser consideradas meros feitos literários. Criar uma tal quantidade de personagens tão diferentes entre si, que ilustram paixões e modos de ser antagónicos, é uma realização espiritual. Podemos dizê-lo sem temer o tom esotérico. Não é o espiritual transcendental, é o espiritual humano. As grandes personagens, sobretudo as que não são moralmente didácticas, exercem sobre nós um profundo efeito moral porque nos obrigam a sair do que somos e a experimentar ser outro, a pôr-nos na pele do outro. Reparem, é mais do que nos revermos nas personagens. A má ficção – perdoem-me a inexactidão do termo – faz isso. Põe o leitor a viver aventuras que na vida real lhe são inacessíveis. Funciona como um comboio de feira, em que o leitor passeia um pouco fora de si para depois regressar a si inteiramente igual: é um intervalo de fantasia. As grandes personagens fazem outra coisa: o leitor sai de si e, quando regressa, é outro. O tempo que conviveu com o outro é de uma tal intensidade que transforma o leitor. O jogo já não é o de se identificar ou não com a personagem, o de gostar de uma e não gostar de outra, é o jogo muito sério de ver o mundo pelos olhos do outro: isto já não é só literatura porque a grande literatura não é só literatura, figuras de estilo, referências literárias, pontuação, é moral, é filosofia, é sempre, na sua expressão máxima, um humanismo. Estar no lugar do outro, ser capaz de imaginar o sofrimento alheio, de perceber as inquietações que o afligem e que nós, no dia-a-dia, não nos interessamos por aprofundar porque temos de viver funcionariamente, agarrados aos nossos preconceitos, satisfeitos com os ódios de estimação. Nas personagens literárias não há ódios de estimação. Não conseguimos alimentar um ódio de estimação por pessoas que conhecemos tão bem.
A literatura não nos torna melhores. A literatura não salva ninguém. Espanto-me por ainda haver pessoas que se questionam sobre isso. É o mesmo que perguntar se a vida nos torna melhores. Mas a literatura dá-nos algumas pistas que deveríamos ter a humildade de aceitar. Se, inspirados pela literatura, dedicássemos ao nosso vizinho que grita com a mulher o tempo que dedicamos a uma personagem como o professor de Rentes de Carvalho, se aquele conhecido que nos irrita com o seu tom de voz e as suas ideias estúpidas nos fosse oferecido numa bandeja como a Juliana de Eça, com todos os seus pensamentos íntimos e história de vida (provavelmente até chegaríamos a uma conclusão triste: “Que pessoa horrível! Que magnífica personagem!") a literatura já não seria apenas literatura, seria uma religião, e com a religião viriam os dogmas, e a verdade com maiúscula e a intolerância. A literatura, por isso, nunca fará de nós pessoas melhores. Porque é mais do que literatura e é apenas literatura e nós, desgraçadamente, somos apenas homens.