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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

06
Jun13

Breve Introdução ao Nobelês

Bruno Vieira Amaral

Publicado na Ler

 

Todos os anos, no início de outubro, um sueco aparentemente mortificado por obstipação crónica, com a gravidade de quem se prepara para comunicar à nação o falecimento do monarca, anuncia ao mundo o vencedor do prémio Nobel da Literatura. Com dezenas de câmaras e microfones apontados ao tronco, como se estivesse a parir uma novidade atroz, lê então um texto que, nos dias seguintes será repetido, com mais sentido de obediência do que convicção, em jornais de todo o mundo. As ondas de choque provocadas pelo anúncio são completamente desproporcionais quer em relação à cerimónia (tão escandinava e ascética quanto um filme de Carl Dreyer), quer em relação ao texto de justificação, que denota a qualidade vaga e genérica das frases de contracapa e da crítica preguiçosa, um verdadeiro shampoo para todos os tipos de cabelo. São três ou quatro linhas que tanto podem ter resultado de semanas de intensa deliberação como de dois minutos de escrita automática.

 

Desde 1901, as mentes mais brilhantes da Suécia reúnem-se num secretismo de concílio para escolher um nome que, automaticamente, será entronizado no firmamento eterno da glória literária ou, em alternativa, Henryk Sienkiewicz. Para que o mundo não pense que se limitaram a tirar um papelinho de uma tômbola, os Dezoito (é assim que se intitulam) juntam à escolha um texto minimalista e blindado, virtualmente impossível de rebater, e que também podia ter sido retirado aleatoriamente de uma tômbola. Vejamos este, datado de 1916, quando o prémio foi atribuído ao (surpresa!) sueco Verner von Heidenstam: “como reconhecimento pela sua importância como o maior representante de uma nova era na nossa literatura.” Sem prejuízo de sentido e relevância o texto podia ter sido substituído por este: “como reconhecimento da importância dos magníficos enchidos que produz na sua quinta e que também se podem considerar, à sua maneira, uma forma de literatura”. É estranho que, todos os anos, os críticos se insurjam contra as escolhas e os critérios da Academia, mas nenhum se atreva a contestar os textos, precisamente porque foram pensados para não admitir contestação nem provocar nada mais do que um ameno ruído verbal de fundo para suavizar o anúncio do vencedor.

 

No seu testamento, Alfred Nobel deixou claro que o prémio deveria ser atribuído à obra que se destacasse numa “direção ideal.” Este delíquio poético no homem que inventou a dinamite foi absorvido pelas académicas epidermes com zelo excessivo. Nos primeiros anos, o idealismo deu no Nobel como traça em livros velhos. O “elevado idealismo” da poesia de Sully Prudhomme, primeiro galardoado, rapidamente arranjou outros idealismos para brincar, como o “elevado idealismo” de Selma Lagerlöf (1909), os “elevados ideais” de Romain Rolland (1915) e, regressando à formulação inicial, o “elevado idealismo” de Karl Adolph Gjellerup (1917). Na Academia o idealismo pode ser servido com adjetivo ou simples, como no caso dos “idealismos” de Paul Heyse (1910) e de George Bernard Shaw (1925). O idealismo de Grazia Delleda (1926) devia ser de segunda categoria visto que a sua escrita era apenas “idealisticamente inspirada”. Se Grazia inspirava, Gabriela Mistral (1945) aspirava. A poeta chilena foi saudada como um “símbolo das aspirações idealistas de todo o mundo latino-americano.” O idealismo pode ser substituído por “ideais humanitários”, que são um género de idealismo com menos 20% de gordura, como é visível em Herman Hesse (1946) e Bertrand Russell (1950).

 

Entretanto, o idealismo saiu de moda e a única condição necessária para um escritor ganhar o Nobel passou a ser a humana. Ao contrário do escritor que retrata as condições vegetal, mineral ou animal, o escritor que escolhe a condição humana habilita-se a ter de discursar perante a família real sueca numa fria manhã de um dezembro qualquer. Em 1946, a condição humana valeu o prémio a André Gide mas foi entre o final da década de 70 e o início da década de 80 que se verificou um surto de humanite aguda. Em 1977, Vicente Aleixandre viu reconhecida a sua escrita que iluminava “a condição do homem”; em 1978, Isaac Bashevis Singer dava vida às “condições humanas universais”; Czeslaw Milosz, em 1980, dava voz “à condição vulnerável do homem”; em 1983, William Golding, tal como Aleixandre, também iluminava “a condição humana no mundo atual”. (Para além de Aleixandre e Golding, Camus foi o outro eletricista literário ao iluminar os “problemas da consciência humana”, presumivelmente com lâmpadas de baixo consumo). Finalmente, em 1985, atribuição do prémio a Claude Simon foi explicada pela “representação da condição humana.” Depois disso, a condição humana desapareceu. (Convém não ser demasiado explícito na abordagem à condição humana e deixar os senhores chegarem às suas próprias conclusões. André Malraux, autor de A Condição Humana, foi dos poucos escritores franceses da primeira metade do século XX que não recebeu o prémio Nobel. Nenhum outro escritor escolheu um título tão imprudente e basta analisarmos a lista de vencedores para perceber que não há nenhum livro intitulado “Elevado Idealismo” ou “Em Busca da Verdade Ideal”).

 

Sendo um atributo a que normalmente recorre para escolher alguns nomes desconhecidos é natural que a Academia valorize a imaginação. Rudyard Kipling (1907) mostrava “originalidade da imaginação”, Selma Lagerlöf uma “imaginação vívida”, Maurice Maeterlinck (1911) uma “riqueza da imaginação”, a “imaginação poética” Johannes V. Jensen (1944) era de uma força e de uma fertilidade raras; García Márquez (1982) criou um “mundo de imaginação” e as parábolas de Saramago (1998) eram suportadas pela compaixão, pela ironia e pela imaginação.

 

Mesmo assim a imaginação não chega aos calcanhares do épico quando se trata de comover os suecos. Henryk Sienkiewicz recebeu o nobel em 1905 “pelos seus destacados méritos enquanto escritor épico”; em 1919, Carl Spitteler venceu por causa do “épico, Olympian Spring”; Wladyslaw Reymont (1924) pelo “magnífico épico, The Peasants”, Pearl S. Buck (1938) pelas “verdadeiramente épicas descrições”; Halldór Laxness (1955) pelo seu “poder épico”; Boris Pasternak (1958) por ter seguido a “grande tradição épica Russa”; Ivo Andric (1961) pela “força épica”; Patrick White (1973) pela “narrativa épica”; Nadine Gordimer (1991) pela “magnífica escrita épica” e até Doris Lessing (2007) é celebrada “como a autora épica da experiência feminina”. Épico!

 

Adjetivo que vai bem com qualquer capa é “monumental”, mas, para a Academia, só dois escritores merecem o epíteto: Theodor Mommsen (1902), “pela sua obra monumental, A History of Rome” e Knut Hamsun (1920) também pela “sua obra monumental, Os Frutos da Terra”. Nesta escala de monumentalidade, todas as outras obras são esculturas de rotunda.

 

Quid est veritas?, já perguntava Pôncio Pilatos, e não sendo possível encontrar uma resposta satisfatória a Academia contenta-se com os que procuram a verdade e com os que a amam, embora não dê o devido valor aos que apenas se sentem fisicamente atraídos por ela. Logo em 1908, Rudolf Eucken era admirado pela sua “honesta busca pela verdade”, e essa procura pela verdade também foi mencionada em 1964, quando o prémio foi atribuído a Jean-Paul Sartre, que o recusou. Romain Rolland (1915, “um amor pela verdade”) e André Gide (1947, “um destemido amor pela verdade”) receberam elogios idênticos.

 

O brilho é outro critério importante, pelo que o escritor que aspire a ganhar o Nobel deve garantir que os exemplares enviados para a Suécia vão bem polidos. José Echegaray y Eizaguirre (1904) viu premiadas as suas brilhantes composições e Anatole France (1921) os seus “brilhantes feitos literários”. A “brilhante habilidade” de Henri Bergson (1927) e a “brilhante oratória” de Winston Churchill (1953) completam este quadro refulgente. A consagração das superfícies brilhantes não significa que a Academia não aprecie uma boa sessão de espeleologia literária e não valorize os tesouros que soem encontrar-se nas profundezas, seja numa “erudição profunda” (Carducci), numa “inspiração profunda” (Maeterlinck) ou numa “compreensão profunda” (Sillanpää, o único galardoado com nome de trem de cozinha). O profundamente sensível Rabindranath Tagore (1913) ou a profunda compaixão humana de Anatole France levam-nos para os abismos das profundezas literárias onde residem espécies raras que se alimentam de plâncton e advérbios. Na categoria de praticantes de apneia lírica destacam-se ainda Deledda, que aborda com profundidade os problemas humanos em geral, e Seamus Heaney (1995), que demonstrou uma “profundidade ética”, que deverá consistir em ir ao fundo sem abdicar de certos princípios.

No desporto é frequente dizer-se que um atleta carrega consigo todas as esperanças de um país. Pablo Neruda (1971) e Gárcia Márquez (1982) tiveram arcaboiço para sustentar todo um continente. A poesia de Neruda deu vida “ao destino e aos sonhos de um continente” e a obra do romancista colombiano refletia “a vida e os conflitos de um continente”. Já o australiano Patrick White trouxe um novo continente para a literatura, presumivelmente com koalas, cangurus, aborígenes e Nicole Kidman. A Academia não pode ser acusada de eurocentrismo, nem de áfricocentrismo ou de asiocentrismo. Não é feita qualquer referência a nenhum dos continentes. Por outro lado, refere a América Latina (duas vezes), a realidade americana e o romance americano. Há outras referências geográficas e culturais mais limitadas. Em 1917, o largamente desconhecido Henrik Pontoppidan ganhou o Nobel só pelas suas “descrições genuínas da vida atual na Dinamarca”, algo de que António Lobo Antunes nunca se poderá gabar. Reymont venceu sobretudo graças ao seu “magnífico épico nacional, The Peasants”. Pearl Buck venceu pelas “descrições épicas da vida camponesa na China”. A vida camponesa também foi elogiada no caso de Frans Eemil Sillanpää (1939) e Hamsun recebeu o Nobel pelo bucólico Os Frutos da Terra. (De notar que, nestes textos, a palavra “cidade” só surge uma vez, na referência a Orhan Pahmuk e a ligação à sua cidade natal e o adjetivo urbano não aparece uma única vez). O universal aparece enquanto cosmos no prémio atribuído a Harry Martinson (1974), cuja obra “refletia o cosmos”, e no prémio para Aleixandre, cuja escrita “ilumina a condição do homem no cosmos”. Bashevis Singer “dá vida às condições humanas universais” e Gao Xingjian (2000) tem uma obra de “validade universal”. Regressando ao particular, Yasunari Kawabata (1968) retratou o “espírito japonês”, o jugoslavo Andric pegou na história do seu país, Odysseus Elytis (1979) pegou na tradição grega e Bashevis Singer (1978) na tradição polaco-judaica.

 

Por falar em tradição, espanhóis e russos disputam o trono dos “tradicionalistas”. Eizaguirre revitalizou as “grandes tradições da dramaturgia espanhola” e Jacinto Benavente (1922), para não ficar atrás, deu continuidade às “ilustres tradições da dramaturgia espanhola”. Aleixandre, por sua vez, renovou “as tradições da poesia espanhola do período entre guerras.” Ivan Bunin (1933) aproveitou “as tradições clássicas da prosa russa”, Boris Pasternak (1958) viu reconhecidos os seus feitos “no campo da grande tradição épica russa” e, finalmente, Alexandr Solzhenitsyn (1970) também se portou muito bem com as “fundamentais tradições da literatura russa.” Em contraste, não há lugar para a inovação, sendo de registar apenas as contribuições de T.S. Eliot (1948) para a “poesia atual” e William Faulkner (1949) para “o romance americano moderno”, e a influência de Ernest Hemingway (1954) no “estilo contemporâneo” e a de Sartre “na nossa época”.

 

Por várias vezes a Academia destacou os poderes dos escritores: o poder de observação de Kipling, o poder do pensamento de Eucken, o poder artístico de Roger Martin du Gard (1937), de Mikhail Sholokhov (1965) e de Elias Canetti (1981), o poder épico de Laxness e o poder visionário de Doris Lessing. Toni Morrison (1993) não tem poder mas uma força também “visionária”. (No capítulo dos visionários, refira-se Saint-John Perse – 1960 – que refletia sobre as condições da sua época de uma “forma visionária”).

 

A partir de 1997, há uma nítida deriva para o lado dos oprimidos (Dario Fo), da “face esquecida da história” (Günter Grass), “das histórias suprimidas” (V. S. Naipaul), nos que “vivem à margem” (J. M. Coetzee), nos “desprotegidos” (Herta Müller) e nos indivíduos que lutam “contra a arbitrariedade bárbara da história” (Imre Kertész) ou que se revoltam contra “as estruturas de poder” (Mario Vargas Llosa). Serão estes os textos em que o teor político é mais notório. Diga-se, ainda assim, que os fabulosos contorcionistas verbais da Academia conseguem atribuir mais de cem prémios sem nunca utilizar as palavras “política” ou “religião”. Filosofia tem uma fugaz aparição, inofensivamente enclausurada numa “filosofia de vida idealista”. E nem sequer o pensamento tem direito a muito tempo de antena. Eucken tinha o “poder do pensamento”, o pensamento de Tagore era, naturalmente, um “poético”, Russell pugnava pela “liberdade de pensamento” e Joseph Brodsky (1987) tinha “clareza de pensamento.” Como se constata por esta amostra, mais do que no acerto das escolhas quando se trata de premiar a criação literária, a Academia sueca tem-se destacado pela capacidade de evitar sarilhos com os textos que as justificam.

 

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