Ilíada
O dever do bom jornalismo cultural, meio do qual tentamos manter-nos tão afastados quanto possível, é corrigir os erros em que sucessivas gerações de leitores têm laborado. É isso ou entrevistar fadistas. Não é por aparecer na edição estival, julho/agosto, que uma correção perde relevância. Obrigar o leitor a confrontar-se com um dos pilares do cânone ocidental rodeado de magotes de turistas com cheiro a lagosta e a bronzeador ainda é uma das raras evidências da superioridade da nossa civilização ou, se nem as águas tépidas do barlavento algarvio puserem cobro ao pessimismo, a confirmação de que isto não vai acabar nada bem. O erro de que falamos tem a ver com a Ilíada, poema épico atribuído a Homero, clássico intemporal, um das maiores obras concebidas pelo génio humano, monumento muitas vezes imitado mas nunca repetido, cume muitas vezes lobrigado mas jamais alcançado e que é, basicamente, um livro de porrada (s. f. [informal]), o equivalente em hexâmetro dactílico aos grandes blockbusters de verão, mais de quinze mil versos de pancadaria que fazem o filme com Brad Pitt parecer um longo, cansativo e nada viril anúncio de champôs unissexo. Seremos nós os primeiros a notá-lo? De maneira nenhuma. Zeus nos livre da originalidade! A honestidade força-nos a reconhecer a influência de uma crónica recente de Eugénio Lisboa, no Jornal de Letras. Aí, para consternação de troianos e gregários, o colunista dizia que achava a Ilíada pueril. E não é que é? Num mundo ideal a Ilíada seria objeto de discussão em todos os infantários e leitura obrigatória no primeiro ciclo, cantada pelos infantes a par da Machadinha e do Fungagá da Bicharada. Nesse mundo ideal, convenhamos, todas as crianças se chamariam George Steiner e teriam alguma dificuldade em fazer flexões. (A propósito de Steiner, é bom lembrar que quando ele tinha tenros seis anos, já o pai lhe inoculava excertos da Ilíada, e não dos menos sanguinários). Mas o que ninguém pode negar, após uma leitura, ainda que desatenta, do clássico de Homero, é a sua vitalidade um pouco imbecil e adolescente, o seu belicismo ingénuo ou, como dizíamos há pouco, a sua natureza de filme de pancadaria, não obstante todas as “auroras de róseos dedos”, as “palavras apetrechadas de asas” e restantes expressões formulaicas que inspiram desmedido respeito a quem não cresceu com os filmes de Steven Seagal.
E o que podemos dizer em desabono da obra de Homero é que começa numa nota um tanto efeminada, com uma birra entre gregos, Agamémnon e Aquiles. Este, o anunciado maior guerreiro de todos os tempos, o homem cuja cólera é celebrada no poema, um tipo que assusta as hostes adversárias assim que vai para o aquecimento, é afinal uma prima-dona. Quando Agamémnon lhe fica com a miúda, Briseida, Aquiles faz o que faria qualquer homem famoso pela valentia em combate: vai para a praia chorar e fazer queixinhas à mãe, a excelsa deusa Tétis. Magoado e aparentemente satisfeito com as condições hoteleiras nas imediações de Tróia, recusa-se a combater. O facto não é muito importante visto que nós já sabemos que Aquiles está destinado a morrer novo e que não será certamente por causa de um banho de mar após uma lauta refeição.
Pormenor que pode dificultar a compreensão da obra, mais precisamente não esclarecendo o leitor de quem é que está a lutar contra quem, é a babélica confusão nos nomes: os Gregos são também conhecidos por Aqueus (“de belas cnémides”, os grandes vaidosos), Dânaos e Argivos; Agamémnon, de vasto poder, é o Atrida, filho de Atreu, Aquiles é o Pelida, filho de Peleu (e o poeta não tem pudor em identificá-lo como o “de pés velozes”); não admira que, ao fim de dez anos, ainda não tivessem conseguido invadir Tróia. O fim do Canto I é coerente com estes psicodramas. Hera e Zeus têm uma discussão no Olimpo: imagine-se John Cassavetes a dirigir Choque de Titãs e fica-se com uma ideia aproximada do intimismo grandioso desta cena.
O Canto II é parco em novidades no que a violência se refere. Ulisses ameaça Tersites, alguns bois são degolados e começa a sentir-se no ar uma impaciência bélica, o rufar de tambores imaginários, uma sensação que Homero, ou o sujeito que se fez passar por ele ou o conjunto de cidadãos que assinava com esse nome, rapidamente trata de anular enumerando todos os comandantes gregos. Aqui ficamos a saber que Elefenor era filho de Calcodonte e que, ao contrário do que já se comentava por aí, o pai de Diores era Amarinceu. Quem achou a parte dos crimes, de 2666, uma golpe de génio, ou os ex-catequistas que se entretinham com a genealogia de Jesus Cristo no Evangelho Segundo São Mateus, têm aqui abundante matéria de divertimento. Os outros têm de esperar mais um bocadinho para que a ação comece.
E a ação quase que começa no Canto III. Troianos e gregos, cada exército do seu lado, alinham-se num terreno propício à prática de chacinas épicas. Páris, também conhecido como Alexandre, Alex para os amigos, o causador desta confusão, por ter raptado Helena, de “alvos braços”, mulher de Menelau, de reluzentes cornos, faz logo questão de mostrar a sua natureza: é um metrossexual abençoado por Afrodite mas com pouca vocação para rixas e tudo o que contribua para que as pessoas se despenteiem. Heitor, o irmão, entristece-se por semelhante demonstração de tibieza.
É então que, para gáudio dos espetadores mais impacientes, a carnificina tem início. Destaque natural para as façanhas de Diomedes, aqueu que semeia com inegável perícia a morte nas hostes contrárias, decepando braços e degolando inimigos, entre outras amabilidades que vai distribuindo pelos troianos. Nem a Deusa Cípris, meio perdida no calor da refrega, escapa ao braço vingador de Diomedes, e recolhe rapidamente aos balneários do Olimpo antes que lhe limpem o divinal sarampo. Depois sucedem-se muitas mortes mas quem lê uma é como se lesse todas. Aqui, a morte é muito democrática e se um troiano leva com uma lança que lhe entra pelo olho e lhe sai pelo queixo, há logo um grego que leva com uma lança que lhe entra pelo queixo e lhe sai pelo olho, que é para não se ficar a rir, acto que, nestas circunstâncias, seria sempre difícil de empreender. Pelo meio, temos o primeiro exemplo de literatura de jornal de classificados: “Depressa equipou Hebe o carro com rodas recurvas, brônzeas e de oito raios, em volta do eixo de ferro. A camba é de ouro imperecível, e os aros por cima são adornados de bronze, maravilha de se ver!” Quem não compraria este fantástico carro à senhora dona Hera, de alvos braços?
Na planície, o número de mortos continua a aumentar a um ritmo capaz de envergonhar Pol Pot. Nestor, que no início é elogiado pela sua sensatez, diz aos Aqueus para não se preocuparem com os despojos, exortando-os, sensatamente, a chacinar homens. Há mais sangue a escorrer do que em todas as matanças do porco no concelho de Chaves nos últimos quatrocentos anos. O causador de todo este filme de Peter Jackson (antes de O Senhor dos Anéis), o valente Páris, permanece sossegado nos seus aposentos, com aquele ar indiferente de “Isto é uma guerra lá fora ou são os miúdos a reinar?” Aquiles, o das grandes birras, também se recusa a ir para o campo de batalha. Agamémnon, que sabe que sem Aquiles o meio-campo dos Gregos não é a mesma coisa, envia uma embaixada para o tentar convencer mas falta-lhe alguém com a capacidade negocial de um Jorge Mendes. Quando as esperanças de os Gregos reforçarem as suas hostes com Aquiles estão quase reduzidas a nada, é a morte de Pátroclo que vem alterar as regras do jogo. A diva Aquiles, ao saber o que aconteceu ao seu protegido, desata aos urros, arranca os cabelos e arranha-se todo. Uma cena que só vista. Os troianos ficam apavorados com a possibilidade de Aquiles, transtornado pela dor, os incomodar com chamadas fora de horas e contar tudo às mulheres deles. Mas o resultado é muito pior, como pode ser confirmado no canto XX. Sempre a gritar de “modo medonho”, Aquiles lança-se sobre os Troianos e o que se pode dizer é que aqueles que o enfrentam não ficam em grandes condições físicas: “E a terra corria negra de sangue.” O último a provar a fúria de Aquiles (agora, sim, pode falar-se em coléra sanguinária e guerreira) é o divino Heitor, cujo corpo é posteriormente profanado. Em vez de o devolver à família, para que o honre com as cerimónias fúnebres, Aquiles desafia a paciência dos deuses, passeando o cadáver de Heitor atrelado a um carro, coisa feia de se ver mas em perfeita consonância com o grand guignol que é a Ilíada.
Quer isto dizer que o clássico homérico é apenas uma celebração furiosa da morte e dos efeitos do contacto de lâminas afiadas com os tecidos musculares, uma cabidela grega? Infelizmente, não. Há aqui considerações sobre o destino, a glória e a imortalidade, sobre a dignidade no campo de batalha e sobre as terríveis consequências de se roubar a mulher a um tipo chamado Menelau, o género de coisas a que a tecnologia 3D nada traz de novo. Mas vale a pena resistir às partes enfadonhas para depois se desfrutar do grande festival de ação e violência descerebrada desse Sam Peckinpah da antiguidade. Os académicos podem não o dizer abertamente mas sabem que, no fundo, a razão da perenidade do poema homérico, o tutano da sua incrível longevidade, é mesmo o seu carácter pueril, a sucessão de mortes em cascata, gregos contra troianos, índios contra cowboys, um festim sanguinolento ao pé do qual qualquer jogo de vídeo é mesmo uma brincadeira de crianças.