Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

12
Set13

Joãozinho Treme-Treme

Bruno Vieira Amaral

«6. “Menino, escuta aqui, só vou falar com o menino por respeito à mãe, ouviu? Ela me pediu, disse que você andava a escrever umas coisas, anda a escrever o quê? […] Olha que eu não quero mentiras sobre o meu filho. […] Vou-lhe contar. O João Mário era bom menino. […] Já vou falar disso. Olha, quando era pequeno o cabelo era liso e loirinho, loirinho, como o tio dele, o Mário. Morreu novo, ainda em Angola […] Não, não. Foi acidente de carro. Tinha dezanove anos, lembro-me como se fosse hoje. Eu já estava noiva do irmão dele. Quando fiquei grávida, o João disse logo que se fosse menino ia ter o nome do tio. Eu não queria. Não achava bem. Era chamar a desgraça, mas ele encasquetou aquilo e não havia maneira de lhe tirar a ideia da cabeça. João Mário. Até aos cinco, seis anos, antes de entrar para a escola, era loirinho como o tio e depois quando cresceu era igual de corpo, comprido como o tio. De cara era o avô dele, o meu pai, os mesmos olhos. [...] O meu pai nunca levantou a voz com os filhos e que eu me lembre só bateu uma vez ao caçula. Bastava olhar. Olha, menino, uma vez estávamos todos à mesa e tínhamos convidados. Eu e esse meu irmão, não sei porquê, a falar, a falar, nem era costume, o meu pai olha para nós e eu até fiz chichi, hoje dá vontade de rir, mas naquela altura dava medo. Os olhos do meu pai davam medo. […] O João Mário não era um santo, não era, mas sofreu muito com a morte do pai. Era muito, muito apegado ao pai. Viu-o morrer. Um ano depois viemos para cá. Ele não estava bem, muito nervoso o meu Joãzinho, com as camuecas dele. Foi quando o meu cunhado lhe pôs a alcunha, Treme-Treme. Nunca gostei dessa história, qual Treme-Treme!, mas pegou. […] As moças – duas ainda vieram cá a casa – […] brancas, sim, branquelas mesmo, elas gostavam do cabrito, ele gostava das brancas dele, quer dizer, era mulherengo, você pode enganar os outros mas não engana a mãe, sempre calado, mas eu sabia, cheirava […] bem, chegavam aí, muito dengosas, “dona Beatriz, o João Mário não está?” João Mário ou Mário. Era assim que lhe chamavam. […] Nós viemos para Portugal no dia 19 de Setembro de 1975, sexta-feira, nunca mais me esqueci. Deixei tudo, menino. Ficou lá tudo. Trazíamos a roupa do corpo. Vim com a minha irmã, o meu cunhado e as miúdas deles. O meu irmão foi o único que não veio para Portugal. [...] Está lá, até hoje. Ficámos todos no Hotel Roma. Tivemos sorte porque a Alda e o Januário também estavam ali. Foi ela que nos disse que havia umas casas no outro lado, no Barreiro. Vim eu com o João Mário e o meu cunhado de barco. A minha irmã ficou com as miúdas. No dia a seguir, fui buscá-las. […] O Joãozinho fez-se homem nessa altura. Percebeu que as coisas tinham mudado mesmo. Eu disse-lhe “meu filho, agora tens de ser forte”, e ele, uns meses depois, acho que já tinha feito os dezoito anos, um dia sai do bairro de manhã e quando voltou disse-me “mãezinha, já tenho trabalho, na CUF”. Eu fui ver de trabalho em restaurantes. Comecei num ali perto da estação de barcos do Barreiro, na Recosta. Apanhava o autocarro da Câmara lá em cima, ali pelo meio das hortas, cheia de lama, tudo escuro à hora a que saía, um frio que não se aguentava, menino. O Joãozinho dizia-me “mãezinha, um dia não vais ter de trabalhar”, eu ria, “vou-te comprar um sofá, mãezinha”. Um dia aparece aí com uma máquina de costura a pedal, ainda está ali guardada, já não funciona. Ele e o Zeca é que a trouxeram cá para cima. Eu virei-me para ele, na brincadeira: “Sacana, em vez do sofá dás é trabalho à tua mãe”, ficou triste o meu filho, é que eu também fazia uns arranjos. […] Cá, ele foi à igreja uma ou duas vezes, depois deixou de ir, começou a andar com esses diambados, eu ainda lhe dizia, “João Mário, tu um menino educado andas com esses vadios, vê lá o que fazes à tua vida”. […] ainda trabalhou uns cinco anos na Quimigal, era trabalhador mas depois já não dava. A vida dele era outra. […] Vê? As pessoas falam muita porcaria. Isso é tudo histórias. Eu não via o Joãozinho há uma semana. Na noite antes de o matarem, veio cá, já não era o mesmo, andava desnorteado, eu perguntei-lhe se estava tudo bem, que aquilo não era vida, nem vinha a casa, não queria saber da mãe. Ficou muito nervoso, não o via assim desde a morte do pai “Está tudo bem, cota, está tudo bem”, chamava-me cota. E até lhe vieram as lágrimas aos olhos “um dia vou-te compensar, cota”. Eu disse-lhe para ele vir a casa, que lhe fazia um calulu, e ele disse que vinha no outro dia mas que não queria calulu, queria um bife, um bife bem grande e abraçou-me. Foi a última coisa que me disse, que queria um bife bem grande. Depois saiu por aquela porta e nunca mais entrou […] Comprei o bife, temperei-o, ia pôr muito gindungo como ele gostava, até no pão com manteiga botava gindungo, e fiquei à espera que o meu Joãozinho viesse jantar. [...] Aqui ele não comeu. Nessa noite se comeu funje não foi aqui. É as porcarias que as pessoas dizem. Aqui ele não comeu nada. […] Não quero falar disso. Tenho as minhas desconfianças, menino, mas Deus está lá em cima, está a ver. Quem fez aquilo se ainda não pagou, vai pagar. Não quero falar disso. Entreguei tudo nas mãos de Deus […] Depois de o matarem guardei o bife no congelador. Ficou ali anos. Eu não era capaz de olhar as fotografias dele. Abria só o congelador e chorava, chorava, chorava. Um dia, bem mais tarde, o pastor Joaquim veio cá a casa para me ver, “irmã Beatriz, isso só a faz sofrer”, mas eu nem queria ouvir nada de deitar aquilo fora, no meu raciocínio era matar o meu filho outra vez. Aquela lembrança era como se eu estivesse à espera de o ver entrar por aquela porta, ao meu Joãozinho.”»

 

Seguir

Contactos

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D