Joãozinho Treme-Treme
«6. “Menino, escuta aqui, só vou falar com o menino por respeito à mãe, ouviu? Ela me pediu, disse que você andava a escrever umas coisas, anda a escrever o quê? […] Olha que eu não quero mentiras sobre o meu filho. […] Vou-lhe contar. O João Mário era bom menino. […] Já vou falar disso. Olha, quando era pequeno o cabelo era liso e loirinho, loirinho, como o tio dele, o Mário. Morreu novo, ainda em Angola […] Não, não. Foi acidente de carro. Tinha dezanove anos, lembro-me como se fosse hoje. Eu já estava noiva do irmão dele. Quando fiquei grávida, o João disse logo que se fosse menino ia ter o nome do tio. Eu não queria. Não achava bem. Era chamar a desgraça, mas ele encasquetou aquilo e não havia maneira de lhe tirar a ideia da cabeça. João Mário. Até aos cinco, seis anos, antes de entrar para a escola, era loirinho como o tio e depois quando cresceu era igual de corpo, comprido como o tio. De cara era o avô dele, o meu pai, os mesmos olhos. [...] O meu pai nunca levantou a voz com os filhos e que eu me lembre só bateu uma vez ao caçula. Bastava olhar. Olha, menino, uma vez estávamos todos à mesa e tínhamos convidados. Eu e esse meu irmão, não sei porquê, a falar, a falar, nem era costume, o meu pai olha para nós e eu até fiz chichi, hoje dá vontade de rir, mas naquela altura dava medo. Os olhos do meu pai davam medo. […] O João Mário não era um santo, não era, mas sofreu muito com a morte do pai. Era muito, muito apegado ao pai. Viu-o morrer. Um ano depois viemos para cá. Ele não estava bem, muito nervoso o meu Joãzinho, com as camuecas dele. Foi quando o meu cunhado lhe pôs a alcunha, Treme-Treme. Nunca gostei dessa história, qual Treme-Treme!, mas pegou. […] As moças – duas ainda vieram cá a casa – […] brancas, sim, branquelas mesmo, elas gostavam do cabrito, ele gostava das brancas dele, quer dizer, era mulherengo, você pode enganar os outros mas não engana a mãe, sempre calado, mas eu sabia, cheirava […] bem, chegavam aí, muito dengosas, “dona Beatriz, o João Mário não está?” João Mário ou Mário. Era assim que lhe chamavam. […] Nós viemos para Portugal no dia 19 de Setembro de 1975, sexta-feira, nunca mais me esqueci. Deixei tudo, menino. Ficou lá tudo. Trazíamos a roupa do corpo. Vim com a minha irmã, o meu cunhado e as miúdas deles. O meu irmão foi o único que não veio para Portugal. [...] Está lá, até hoje. Ficámos todos no Hotel Roma. Tivemos sorte porque a Alda e o Januário também estavam ali. Foi ela que nos disse que havia umas casas no outro lado, no Barreiro. Vim eu com o João Mário e o meu cunhado de barco. A minha irmã ficou com as miúdas. No dia a seguir, fui buscá-las. […] O Joãozinho fez-se homem nessa altura. Percebeu que as coisas tinham mudado mesmo. Eu disse-lhe “meu filho, agora tens de ser forte”, e ele, uns meses depois, acho que já tinha feito os dezoito anos, um dia sai do bairro de manhã e quando voltou disse-me “mãezinha, já tenho trabalho, na CUF”. Eu fui ver de trabalho em restaurantes. Comecei num ali perto da estação de barcos do Barreiro, na Recosta. Apanhava o autocarro da Câmara lá em cima, ali pelo meio das hortas, cheia de lama, tudo escuro à hora a que saía, um frio que não se aguentava, menino. O Joãozinho dizia-me “mãezinha, um dia não vais ter de trabalhar”, eu ria, “vou-te comprar um sofá, mãezinha”. Um dia aparece aí com uma máquina de costura a pedal, ainda está ali guardada, já não funciona. Ele e o Zeca é que a trouxeram cá para cima. Eu virei-me para ele, na brincadeira: “Sacana, em vez do sofá dás é trabalho à tua mãe”, ficou triste o meu filho, é que eu também fazia uns arranjos. […] Cá, ele foi à igreja uma ou duas vezes, depois deixou de ir, começou a andar com esses diambados, eu ainda lhe dizia, “João Mário, tu um menino educado andas com esses vadios, vê lá o que fazes à tua vida”. […] ainda trabalhou uns cinco anos na Quimigal, era trabalhador mas depois já não dava. A vida dele era outra. […] Vê? As pessoas falam muita porcaria. Isso é tudo histórias. Eu não via o Joãozinho há uma semana. Na noite antes de o matarem, veio cá, já não era o mesmo, andava desnorteado, eu perguntei-lhe se estava tudo bem, que aquilo não era vida, nem vinha a casa, não queria saber da mãe. Ficou muito nervoso, não o via assim desde a morte do pai “Está tudo bem, cota, está tudo bem”, chamava-me cota. E até lhe vieram as lágrimas aos olhos “um dia vou-te compensar, cota”. Eu disse-lhe para ele vir a casa, que lhe fazia um calulu, e ele disse que vinha no outro dia mas que não queria calulu, queria um bife, um bife bem grande e abraçou-me. Foi a última coisa que me disse, que queria um bife bem grande. Depois saiu por aquela porta e nunca mais entrou […] Comprei o bife, temperei-o, ia pôr muito gindungo como ele gostava, até no pão com manteiga botava gindungo, e fiquei à espera que o meu Joãozinho viesse jantar. [...] Aqui ele não comeu. Nessa noite se comeu funje não foi aqui. É as porcarias que as pessoas dizem. Aqui ele não comeu nada. […] Não quero falar disso. Tenho as minhas desconfianças, menino, mas Deus está lá em cima, está a ver. Quem fez aquilo se ainda não pagou, vai pagar. Não quero falar disso. Entreguei tudo nas mãos de Deus […] Depois de o matarem guardei o bife no congelador. Ficou ali anos. Eu não era capaz de olhar as fotografias dele. Abria só o congelador e chorava, chorava, chorava. Um dia, bem mais tarde, o pastor Joaquim veio cá a casa para me ver, “irmã Beatriz, isso só a faz sofrer”, mas eu nem queria ouvir nada de deitar aquilo fora, no meu raciocínio era matar o meu filho outra vez. Aquela lembrança era como se eu estivesse à espera de o ver entrar por aquela porta, ao meu Joãozinho.”»