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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

27
Nov13

Albert Camus: Cem Anos

Bruno Vieira Amaral

Texto publicado no jornal i

 

 

O Professor

Se não fosse Albert Camus provavelmente não saberíamos nada sobre Louis Germain. Mas o contrário também é verdade: sem Louis Germain, mestre-escola do pequeno Albert, provavelmente o mundo não teria chegado a assistir ao triunfo literário de Camus. Foi graças ao incentivo de Germain que Camus, uma criança oriunda de uma família bastante pobre, pôde prosseguir os seus estudos. O escritor nunca esqueceu a importância do professor a quem dedicou o discurso de aceitação do Prémio Nobel, em 1957. Ao longo dos anos, Camus manteve o contacto com este homem a quem disse, em carta datada de 1945, que “era um dos dois ou três homens a quem devia praticamente tudo.” Órfão de pai – morto na primeira grande guerra – Camus projectou em Germain a figura paternal que, na sua obra, desaparece para dar lugar à mãe.

 

 

A Mãe

Eram estas as dez palavras preferidas de Camus: mundo, dor, terra, mãe, homens, deserto, honra, miséria, Verão, mar. De todas, “mãe” será a mais importante. Sobretudo por uma ainda hoje polémica resposta do escritor a uma questão de um estudante argelino, em Estocolmo, quando recebeu o Prémio Nobel. Nessa altura, questionado sobre a justiça da luta pela independência do povo argelino e o terrorismo contra civis, Camus respondeu que acreditava na justiça, mas que poria sempre a sua mãe em primeiro lugar. Muitos acusaram-no de preterir o universal em favor do pessoal, denunciando o carácter anti-kantiano da sua frase. Mas nesta escolha – controversa, é certo – vê-se igualmente um imperativo ético em acção, o erguer de uma barreira contra a violência bem-intencionada e que tantas vezes descarrilou para a barbárie. Vê-se, em suma, o humanismo radical de Camus.

 

Guarda-Redes

Uma das características fascinantes da personalidade de Camus é uma aparente simplicidade sob a qual se oculta uma mente inquieta e exigente. Se, de certa forma, essa característica se plasma na sua escrita – límpida e dura, sem ornamentos desnecessários, ao serviço de um pensamento claro e profundo – é na sua vida que ela se manifesta com mais pujança. Em comparação com outros intelectuais da altura, muito dados a abstracções e a conceitos ideológicos impostos à realidade, Camus tinha a vantagem de ser um filho legítimo do povo. Nada ilustra melhor essa condição genuína do que o facto de, ainda na Argélia, Camus ter sido guarda-redes de um clube de futebol universitário. Como escreveu Michel Winock, Camus “não tem que descer ao povo porque faz parte dele.”

 

A Imagem

A importância da imagem no culto camusiano não deve ser desprezada. Quando Camus visitou os Estados Unidos, a propósito da publicação da edição norte-americana de O Estrangeiro, a comunicação social não hesitou em compará-lo a Humphrey Bogart, criando a imagem duradoura do existencialista cool. De facto, ainda hoje Camus beneficia desta aura de sedutor sereno, sendo visto como uma espécie de detective elegante dos meandros da existência e das complexidades filosóficas. A morte precoce, quando tinha apenas 46 anos, num acidente de viação, apenas reforçou a dimensão quase cinematográfica do mito: o de um homem que personificava a aliança perfeita entre um pensamento encantador e um aspecto inteligente, o equilíbrio alquímico entre moral e rebeldia.

O Estrangeiro

“Hoje, a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.” As duas primeiras frases de O Estrangeiro estabelecem de imediato um tom de indiferença e de alienação que, a par de certas imagens de Kafka, é provavelmente o mais perto que a literatura do século XX esteve do absurdo da existência. Aqui, a questão não é a de ver o homem soçobrar perante o peso da sociedade moderna (o trabalho repetitivo, a solidão das metrópoles, etc.), mas a de ter de lidar com uma angústia mais ancestral, primitiva, básica; a angústia que está no cerne das grandes questões filosóficas e religiosas. Sartre disse que o título poderia ser Nascido no Exílio (tomado de empréstimo de um outro livro) e a expressão não podia ser mais exacta para resumir uma obra que, por sua vez, é um resumo da condição de humana e de todo o desespero feliz e cheio de esperança que nela existe.

 

O Jornalista

 

A faceta jornalística de Camus não contém em si nada de surpreendente. Aí, vemos o mesmo homem exigente, a professar uma moral que não é moralista, uma moral prática que ele desejava ver corporizada numa classe de jornalistas independentes e comprometidos (que “tomam partido” sem se tornarem “partidários”, cf. O Século dos Intelectuais). Entre 1943 e 1947, Camus, enquanto chefe de redacção do Combat, um dos muitos jornais de esquerda daquela época, apontou o caminho para um jornalismo emancipado do poder do dinheiro e que assumisse a sua vocação de farol cívico. Com o fim da guerra, o jornal foi perdendo influência, numa altura em que o próprio Camus já estava mais disposto a investir na sua carreira como escritor e como editor na Gallimard. No entanto, a lição da sua intransigência ética é um bem precioso que todos os jornalistas ter presente.

 

 

A Personagem

Uns talvez se lembrem do Dr. Bernard Rieux, de A Peste, outros não hesitarão em escolher o anti-herói Meursault, de O Estrangeiro. Jean-Baptiste Clamence, o juiz-penitente de A Queda, não é uma má escolha e, se a opção for menos óbvia, talvez se possa indicar a presença fantasmagórica da mulher de Rieux. No entanto, para um aspirante a escritor, a personagem mais marcante de Camus tem um papel secundário em A Peste: Joseph Grand, o funcionário municipal e escritor nas horas vagas que não consegue passar da primeira frase do romance perfeito que quer escrever. Grand procura atingir a perfeição sonora, o equilíbrio polido da forma, um significado profundo e, com tão elevada fasquia, nunca consegue completar essa frase impossível.

 

 

Camus vs. Sartre

E pensar que tudo começou numa agradável troca de elogios e vénias literárias que, porém, já continham as sementes da acrimónia futura. Apesar da extensa e elogiosa crítica que Sartre dedicou a O Estrangeiro, em 1943, Camus, com a sua perspicácia mediterrânica, notou logo ali um “tom ácido”. Mas as coisas iriam piorar. Já depois da guerra, os dois amigos afastaram-se, assumindo posições diferentes em relação ao comunismo: Camus mais crítico com Moscovo, Sartre mais entusiasmado com o regime soviético. Camus viria a receber o Nobel antes de Sartre que, em 1964, recusou o prémio com o argumento de que um escritor não se devia tornar “numa instituição”. Se não numa instituição, Sartre tornou-se pelo menos uma estrela da intelectualidade de esquerda, mas, hoje em dia, é Camus quem recolhe os louros literários.

 

 

Críticas

A obra de Camus já sofreu várias tentativas de diminuição pública. A mais comum é a que procura obliterar os méritos literários da obra justificando o seu sucesso, a devoção dos leitores, unicamente com o fundo moral da mesma, transformando o autor numa espécie de promotor de um culto laico do qual ele seria o santo padroeiro. Sem dúvida que a obra de Camus não recusa a questão moral (não confundir com moralismo) mas não só o próprio rejeitava esse papel de profeta laico como a clareza do seu estilo, em vez de ser apontada como uma insuficiência, tem de ser entendida como uma afirmação simultaneamente ética e estética. Sontag podia dizer, com alguma petulância, que “não há em Camus nem arte nem pensamento de altíssima qualidade”, mas quando relemos A Peste ou O Estrangeiro ficamos com a certeza que nenhum outro escritor moderno se aproximou tanto do coração do homem, do seu centro moral.

 

Defensores

“A grandeza de Camus consiste em ter unido uma ética inflexível a uma inexaurível capacidade de felicidade, de viver a fundo a vida, como um baile popular ou um dia de sol à beira-mar, até na sua tragicidade enfrentada sem rebuço, recusando qualquer moral que reprima a alegria e o desejo. Camus tem um sagrado, religioso respeito pela existência, o qual o impede de qualquer transcendência, metafísica ou política, que prentenda sacrificá-la a fins superiores.” Num dos textos de Alfabetos, o escritor italiano Claudio Magris mostra, em poucas linhas, que a dimensão humana de Camus não era apenas retórica, mas uma força viva que se manifestava na sua prática literária e jornalística. Por sua vez, o filósofo espanhol Fernando Savater sossega-nos quanto a eventuais receios de um reencontro com a obra do escritor francês: "Camus não tem uma única ruga. Mais nosso que nunca: mais equânime, mais valente, mais tonificante e lúcido que nunca.”

 

 

08
Nov13

Cansaço

Bruno Vieira Amaral

- Estou cansada, Bruno.

 

Compreendo. A casa, o filho, os sacos para o lixo que acabaram, a grande mancha de humidade no tecto da cozinha, junto à varanda, a porta desencaixada do roupeiro, o sabonete líquido, as pilhas para o esquentador, a água que nunca mais aquece e, enquanto ela espera, as coisas que lhe passam pela cabeça, as contas, o copo de vinho a mais, os concertos a que já não vai, o filme interrompido a meio, quando acorda já morreu uma das personagens principais. Talvez seja isto, quando ela acordar uma das personagens principais da sua vida terá morrido.

 

- Estou cansada.

 

Os livros. Os livros que antes lhe diziam tantas coisas agora são conjuntos de palavras sem vida, letras amontoadas, já não a fazem duvidar, há muitos anos que um livro não lhe muda a vida, nem uma canção, nem um homem, os thrillers e os livros de espionagem que os homens gostam de ler porque são sólidos e práticos e avançam confiantes pelo mundo e não exploram as pequenas fendas do quotidiano nem as grandes falhas tectónicas das nações, e ela quer um homem que seja um livro desses, sólido e prático, um homem com um bom pau sólido e uma boa vida prática, que a foda com convicção mesmo que sem amor, um homem que não complique, que não a censure, que não lhe exija que o acompanhe na viagem ao interior de livros que a ela não lhe interessam, um homem que seja esse livro que ela começou a ler ontem à noite, um mistério de roubos de obras de arte na segunda guerra, agentes de serviços secretos, uma violinista na Costa de Prata, um livro que se pousa na mesa-de-cabeceira e cuja história estará à espera dela na manhã seguinte, um livro que nunca ousará entrar-lhe nos sonhos a não ser na forma incomum de um violino caído na paisagem árida da Córsega.

 

- Estou cansada, Bruno.

 

As festas, as reuniões na escola, a tosse seca do filho quando se deita, os horários, os atrasos dos comboios, o chip que já não está muito bom e obriga-a a aproximar o cartão com muito cuidado, na oblíqua, um pequeno passe de mágica, o almoço que é as sobras do jantar, como ela é o que sobrou do dia anterior e outra coisa que só saberá ao fim do dia, a mancha no tecto da cozinha parece-lhe cada vez maior ou diferente, parece um rosto com ar de censura, devia ir bater à porta dos vizinhos e dizer-lhes que têm um problema na canalização porque a mancha está maior a cada dia que passa, só não lhes pode dizer que agora vê na mancha um rosto e que esse rosto está zangado com ela, eles também não iam entender, e como não eles não a podem entender, ela decide que não vale a pena falar-lhes da questão prática e não sobe.

 

- Estou cansada de tudo.

 

O bolo que demorou horas a fazer e não saiu bem, ter de repetir tudo, agora mais depressa, com mais angústia, um telefonema para a mãe que vai ser internada daí a uns dias, não é nada grave, mas é sempre uma operação, uma pessoa fica nervosa, e naqueles dias em que a mãe estiver no hospital terá de arranjar tempo para a ir ver porque a mãe só a tem a ela e ela sabe como é triste estar no hospital e não ter visitas, ainda por cima, na cama ao lado da da mãe estará uma senhora a quem amputaram uma perna mas que terá sempre muitas visitas, e quando ela estiver ao lado da mãe, a guardar no armário uma garrafa de água de litro e meio, umas bolachas de água e sal e um compal de pêra, a entregar-lhe a TV7Dias, a levantar-lhe o fundo da cama por causa da circulação, há-de imaginar que tantas visitas se justificam pela perna amputada, virão amigos, familiares afastados, conhecidos, virão todos despedir-se da perna, podiam fazer-lhe um funeral, acompanhar a perna solitária até à campa, que ficaria desde logo reservada para quando o resto da senhora se decidisse juntar ao membro que agora lhe tiraram. Mas para essas coisas ainda faltam alguns dias, dias atrás de dias, ainda falta outro cansaço, a alegria do filho, o cansaço do filho depois da natação, falta ainda muito, falta sempre muito.

 

- Estou tão cansada, Bruno.

 

A gaiola sem pássaro, a alpista velha, a água já verde no bebedouro, uma lâmpada fundida, os varões para os cortinados ainda por tirar da caixa, há-de pedir um berbequim a um amigo.

 

- Estou cansada.

 

O filho gostava de ter um cão, ela acha melhor um peixe, um cágado, animais que também são objectos. Ela quer um homem que não conviva com o filho dela, que não queira saber que ele existe, que o ignore, que olhe para ela e não veja mais ninguém.

 

- Muito cansada.

 

Homens que querem impressioná-la com o filho, atiram-no ao ar, fazem-lhe cócegas, vão jogar à bola na relva do parque, mostram tudo o que são capazes de fazer, fazem o número dos que poderão ser bons pais de segunda. Ela não precisa desse teatro. Quer apenas um homem bom de pau duro, que a foda como deve ser, que não se venha logo, que lhe faça um bom e prolongado minete mas não tão prolongado que ela se distraia e olhe para baixo e fique surpreendida ao ver o cimo da cabeça de um homem entre as suas pernas, um homem bom para ela, um homem que não seja para as outras horas nem para todas as ocasiões, um homem que não insista em levar o miúdo às cavalitas, um homem que tenha um berbequim e que arranje tempo, ao domingo de manhã, para montar os varões dos cortinados.

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