A Extinção das Borboletas-Monarcas
Conto publicado na Revista do Expresso de 21 de Dezembro de 2013
Quatro da manhã. É sempre de madrugada quando termina. Mesmo com a janela entreaberta, do exterior não vem qualquer barulho, apenas o frio intolerável de Agosto. Nas paredes, vitrinas com borboletas. Em cima da mesa, uma pilha de papéis, livros antigos, Carl Sagan, alguma ficção científica, policiais de folhas manchadas, a fotografia do filho, uma chávena com um resto de café e o rádio. Sempre o rádio. Sabe que tem de poupar as pilhas e que as últimas horas de gravações não se justificam, mas é incapaz de o desligar, interromper o ritual. Sentado na cadeira de vime, olhos semicerrados, passa dos momentos de concentração absoluta no som cinzento e monótono da estática para os devaneios, a mente perdida a vogar por recordações: o comentário numa das suas aulas de Biologia de um aluno que, semanas depois, foi vítima dos primeiros ataques, uma notícia sobre a extinção das borboletas-monarca, a voz do presidente da Comissão Europeia no terrível discurso de 2023, a fotografia de uma tragédia em África que vira num jornal e, na altura, lhe lembrara um quadro de Géricault, A Jangada da Medusa, do qual hoje nem restam as cinzas; chegam-lhe lembranças íntimas e incongruentes, da infância, o sol no quarto depois da sesta, os nomes dos rios repetidos na escola primária, Douro, Tâmega, Mondego, Zêzere, Tejo, Sado, e depois Sevilha e Bordéus, cidades onde nunca esteve e que tinham sido as únicas palavras de que se lembrara e conseguira articular quando um rebentamento o deixou como morto debaixo dos escombros de um café, até que volta a concentrar-se na estática, como alguém que subitamente se dá conta da música de fundo, enfeitiçado pela companhia serena de toda uma vida.
Quando, há muitos anos, se dedicara a esta tarefa insensata, era difícil encontrar um espaço vazio entre as frequências de rádio. Entretanto as estações foram encerrando até só restar a Emissora Oficial com as transmissões quase ininterruptas de discursos do Presidente e as previsões imutáveis da meteorologia. Agora é fácil sintonizar mal o rádio, não ouvir nada, chegar ao deserto frondoso da estática. Aquele rumor, que para qualquer outra pessoa seria um ruído vazio, incómodo, painel abstrato sem significado aparente, é para ele um mosaico vital de sons, em que até uma pequena variação, como ao passar uma peça metálica perto do aparelho, dá origem a novas descobertas, combinações improváveis em que crê identificar os passos remotos do avô no lajedo da velha casa da aldeia, uma tesoura na ardósia, o bater de asas de um certo pássaro. Em raras ocasiões, que só por extremo pudor não classifica de milagres, descobre pasmado vozes estrangeiras, claras como as águas puras de antigamente ou confusas como emaranhados de silvas, que se fazem ouvir por um segundo e logo desaparecem, talvez para sempre, na vastidão universal.
A história tinha-a lido na sua juventude. Era o caso de um homem – austríaco, letão, já não sabia – que durante anos procurou ouvir as vozes dos mortos num rádio mal sintonizado. Acumulou horas e horas de gravações, à espera do momento alquímico em que conseguiria ouvir alguém do outro lado da existência. Ao fim de muitos anos de tentativas, de encontros fugazes com vozes desconhecidas, teria conseguido ouvir a voz de uma amiga morta num acidente de automóvel. Não se lembrava de todos os pormenores, mas foi nessa história de um alienado à procura de acalmar a ânsia de verdade através de um processo repetitivo que veio a encontrar o consolo possível para a sua dor.
Aos domingos de manhã, da cave de um prédio em ruínas, ouve os cânticos inflamados de fé e de fome, as vozes maníacas, possessas, dos membros de uma das muitas seitas que apareceram nos últimos tempos. Neste mundo, o crime e a religião são os únicos negócios que prosperam. Da janela do quarto, observa-os à saída, naquele sossego desconfiado, olhando em volta, como cães acossados. Ficam uns minutos. Levam crianças pálidas pela mão, desaparecem nos labirintos da cidade deixando-a de novo naquela quietude doentia, como se a antiga capital fosse uma gigantesca e decrépita enfermaria em que os poucos pacientes, demasiado fracos para se queixarem, só permanecem por não terem para onde ir. Fecha a janela, aquece as mãos na chávena ainda a fumegar, bebe o resto do café. Sobra pouco. Não deve ter mais do que dois pacotes de reserva. Liga o rádio. Fica à escuta. As vozes dos mortos. Sinos de igrejas imaginárias. Máquinas e animais extintos.
Tempos atrás, nas semanas em que o frio e a neve o permitiam, ia até ao cemitério do Alto de São João. Era uma caminhada exigente para as suas pernas cansadas. Do interior de alguns prédios devolutos chegava o som de martelos e de serrotes. Misturados com o silêncio, estes sons, embora não tão agressivos como os sons mecânicos que quase já não se ouviam, eram mais ferozes, menos humanos. Pensava no som caloroso do rádio. Em sentido contrário, passavam grupos numerosos que se dirigiam para as avenidas principais para verem o carro do Presidente, a caminho do seu discurso semanal nas ruínas do Grande Estádio. Iam menos por reverência do que pela promessa de ouvirem o barulho saudoso de um motor. Aproveitavam para mostrar aos mais novos aquele animal fumegante de chapa, testando-lhes a incredulidade quando lhes diziam que, nos tempos antigos, a cidade era atravessada todos os dias por milhares de veículos como aquele. Prosseguia no seu caminho. Um vulto aparecia a uma janela, ouviam-se passos, correrias, uivos. Não temia que viessem atrás de si. Estava demasiado cansado de tudo para sentir medo. Parava. Fechava os olhos, imaginava-se no cemitério, em frente da campa da mulher, a limpar a neve da lápide com a luva esburacada de malha, “Dália Figueiredo 1979-2023”, com pena de nem sequer haver flores de plástico para lhe oferecer.
Agora não sai. Por curiosidade, sintoniza a Emissora Oficial, ouve os discursos do líder. Na sua voz outrora marcial, que o tempo suavizou a ponto de ser um murmúrio de paz, um floco sonoro de neve, repete que a ajuda humanitária está para breve, não tardará que os céus se cubram de grandes pássaros de metal. Desta vez trarão esperança em vez de morte. Louva os esforços pela pátria, garante que nenhum sacrifício será em vão. Diz-se que, nas longas horas que duram os discursos, alguns patriotas de barriga inchada pela fome tombam desamparados e é ali que a noite e a neve os encontram porque os outros temem que tão ousado gesto seja uma manobra de insurreição, uma forma dissimulada de protesto. Apesar da retórica pujante, aquelas palavras atingem-lhe o cérebro como as cascas de frutos secos sem miolo, mais vazias e sem sentido do que o som cinzento do rádio. Roda o botão, dessintonizando o rádio, e o quarto volta a inundar-se de vozes opulentas repletas de significados ocultos, conversas de café arrastadas pelo fluir do tempo, gemidos com que os amantes comunicam os seus desejos. Quando termina, não sabe o que é real: se o que ouve são vozes do passado ou se sucumbiu à música da sua própria loucura.
Pega num dos mostruários. Asas cor-de-laranja, listas pretas, manchas brancas. Danaus plexippus. Uma evocação sem vida. Natureza morta. Só queria poder ressuscitar este espécime, recriar o seu voo hesitante. Encerrado num vidro, pregado num cartão com um alfinete, o que se recorda não é a sua vida nem a sua leveza, mas a sua extinção.
Mesmo debilitado, a viver de conservas, bolachas e café, explode-lhe a lembrança do filho, como uma granada de luz e de mágoa. É como um grande fogo a irromper por aquele quarto. Com a imagem a arder-lhe na cabeça, não pode desligar o rádio. Aquela memória tem de se extinguir por si mesma. Passa mais de uma hora até conseguir escapar do interior do fogo e readquirir um controlo mínimo sobre o que está à sua volta. Emerge do sofrimento sem saber em que ano está, convencido que a imagem de uma Lisboa arruinada e coberta de neve foi um sonho, uma ligação errada nos circuitos da sua mente, e que talvez esteja sentado no chão de tacos do seu quarto de criança, a sonhar com um futuro que teria sempre de acontecer. É embalado de novo pelo ruído gentil do rádio, como se o seu espírito tivesse sido submetido a uma pressão emocional tão forte que, por instantes, a sensibilidade auditiva apurada ao longo de tantos anos não fosse já capaz de sintonizar, entre a chuva monótona, o canto inequívoco de um pássaro numa manhã clara, o som da respiração de um recém-nascido a adormecer pela primeira vez. Cataloga todos estes sons, preenche cadernos com as datas e as horas, na esperança de um dia descortinar, entre as toneladas de areia cinzenta despejadas no interior do quarto, aquele grão ínfimo na história do universo, aquela partícula certa e irrecuperável que é tudo o que o mantém vivo, onde vibra o significado profundo da sua existência precária: a voz do filho morto.
Um dia, poucos meses após a morte do filho, Dália entrou em casa. Sobre a mesa da cozinha encontrou os álbuns de fotografias: abertos, vazios. O cheiro a queimado. O marido só guardara duas fotografias: na primeira, estavam os três juntos; na outra, o filho sozinho, um ano e meio, as mãos num triciclo.
Separaram-se. O mundo ruiu.
Esta é uma das últimas manhãs. Já não consegue sair de casa. Cansou-se de ler o vetusto Maigret. Olha para os móveis com saudades, como se estivesse de passagem, o fantasma de um comboio a deixar para trás uma estação onde não entrou ninguém. Rapa os restos de café das latas. As pernas tremem de fraqueza. Sobressalta-o um rumor longínquo, um trovão persistente a aproximar-se. A princípio julga que o barulho vem do rádio, que é chegada a hora, mas aumenta e traz com ele uma sombra que cai sobre as ruas da cidade. Esforça-se para chegar à janela: lá do alto, caem centenas de caixas em pára-quedas, nenúfares aéreos, enormes bolbos humanitários.
Rejeitou todas as ilusões que lhe vendiam para esconder a realidade do filho numa esperança de celofane, diluída numa cantilena neutra de aprendizagem pela dor. Parecia-lhe a forma mais abjecta de enfrentar a perda, como se isso equivalesse a negar-lhe a dignidade, a explorá-la como um mero utensílio no seu próprio crescimento moral: não, não e não. Nunca desistiria de procurar a realidade do filho, até ao fim. Toda a destruição geral que se seguira – de instituições e de edifícios, monumentos e poderes – não lhe parecia tão grave e irremediável como aquela morte. Não era egoísmo. Era uma lição de engenharia e de história. Tudo o que fora concebido por mentes humanas e por humanas mãos levantado, podiar tornar a erguer-se, hoje ou daqui a um milhão de anos, na Terra ou na imaginação de outro Deus. Mas a vida do filho, não. Aquele sopro irrepetível de consciência era tão poderoso e vulnerável como a semente de uma flor que não existe e por isso jamais se poderá extinguir. A voz que procurava, que haveria de procurar até ao fim, eram as pétalas dessa flor utópica.
Tempo. Som. O quarto onde foi criança. O sol. Dália. A neve. Sevilha, Bordéus, pontes destruídas. A Jangada da Medusa. As fotografias incineradas, apagadas do tempo para que o filho sobrevivesse incólume na memória.
A neve, como um lençol piedoso que se lança sobre um cadáver, viera ocultar as entranhas da cidade, oferecendo às ruas a beleza estéril e ofuscante das grandes extensões polares. De igual modo, o homem cobrira a sua existência de um ruído branco e constante que, ao contrário de outras mentiras benévolas, não lhe prometia qualquer recompensa no fim de si mesmo. Habituara-se a esse som, dependia dele, e nessa melodia sem cor acreditava por vezes escutar indícios de vida, fragmentos de sentido, o coração discreto de um mundo devastado.
Lembra-se do nome do homem: Raudive.
Sonha pela última vez. Uma borboleta-monarca pousa numa flor irreal.