Carta de Nicósia
A pedido do correspondente da Ler em Nicósia, João Óscar Braz, publico a carta que enviou para o nº de Junho da revista:
Em Memória de Nikos Kyriazis
No dia em que cheguei a Nicósia, há cerca de três anos, fiquei quatro horas no aeroporto até receber uma chamada do sujeito que supostamente estaria à minha espera, Nikos Kyriazis. Aos berros num inglês criativo explicava-me que surgira um imprevisto. Pedia-me que fosse ter com ele a um bar chamado Poison, perto da praça Eleftheria. Eu nunca tinha estado em Chipre e não estava consciente das implicações daquela situação. Perguntei-lhe, com alguma ingenuidade, como é que fazia para me deslocar para o dito bar e, do outro lado, em resposta ao meu desamparo, só ouvi uma gargalhada sonora, quase ofensiva: “go outside, speak Hazar, the cab driver”. Era a primeira vez que eu estava sozinho fora do meu país e dependente de um taxista chamado Hazar. Senti-me um pouco ridículo a olhar para os taxistas lá fora a tentar descobrir qual deles seria o Hazar. Até que me enchi de coragem e fui falar com um taxista de meia-idade que, não sei bem porquê, me inspirou confiança. Perguntei-lhe em inglês se me podia ajudar. Fixou-me, como que a estudar o anormal à frente dele, cuspiu para o chão e apontou para um tipo que estava encostado ao pior táxi da praça: “That guy is Hazar.” Aproximei-me dele e disse-lhe que Nikos estava à minha espera no Poison e me pedira para falar com ele. Foi impecável. Carregou as minhas malas e, no final, disse-me que não tinha de pagar nada. O Poison era um bar que cheirava a anos 70. Durante os oito meses que estive em Nicósia, tinha sempre o mesmo cheiro a lixívia, Old Spice, Cointreau e cigarros Ritz. Naquela tarde, sentado numa mesa, rodeado de uma plateia atenta, estava Nikos. Tocava uma modinha de Catulo da Paixão Cearense. Como eu nada sabia da história pessoal deste cipriota, achei aquela cena completamente irreal. Eu tinha boas razões para o odiar, mas percebi naquele momento que era impossível odiar Nikos Kyriazis. Nunca conheci ninguém com aquela alegria, transparência e, tenho de o reconhecer, tendência para não cumprir o prometido. Ao balcão do Poison, vim a descobrir mais tarde, estava um empresário de futebol português, que depois de levar à falência uma discoteca em Freamunde, uma empresa de extracção de pedra e uma loja de artigos de caça e pesca apostara na exportação de jovens talentos do futebol. Naquela altura, tinha mais de 60 jogadores em carteira, todos genuinamente medíocres. Se falo deste sujeito não é porque o tivesse em grande conta mas porque a única pessoa com quem ele falava ali dentro era Nikos. Além disso só cumprimentava uma decadente beldade local – que, de acordo com Nikos, representara o Chipre no Festival da Eurovisão em meados dos anos 90. O engraçado é que Nikos nada tinha que o fizesse ser temido ou, mesmo, respeitado. Mas a verdade é que era respeitado e temido. E, não exagero ao dizê-lo, também era amado. Os melhores momentos da minha estadia em Nicósia foram na sua companhia – um derby no GSP, os finais de tarde no Plato’s refrescados com Vedett, os jantares prolongados no Zanettos – e ainda guardo os conselhos que generosamente me deu: mesmo hoje, se fosse a casa do adido cultural da Polónia, seria incapaz de beber outra coisa que não água engarrafada; é verdade tudo o que dizem sobre Cynthia, a Triste, e não vale a pena querer saber mais; nunca passar na rua Ledra antes das três da tarde. Apesar de ser uma fonte inesgotável de energia e boa disposição, era reservado no que dizia respeito à sua vida privada. Só quase no final da minha temporada em Nicósia soube um pouco mais sobre aquele homem. Era filho de um construtor civil riquíssimo mas escolhera ser livre. Não tinha casa própria, nem cartão de crédito, nem sequer conta bancária. Só amigos e admiradores. Um destes ofereceu-lhe uma viagem ao Brasil para ir à procura de uma mulher: Marília. Regressou sem Marília mas com as modinhas de Catulo na cabeça e nas mãos. Quando, há coisa de meio ano, soube da morte de Nikos, não fiquei surpreendido. Também não chorei. No entanto, uma semana depois, comprei um bilhete de avião para Nicósia. Vagueei durante quatro horas pelo aeroporto à espera de uma chamada que nunca chegaria, saí e vi um turco encostado ao pior táxi da praça e pedi-lhe que me levasse ao Poison. Subi as escadas, vi a mesa vazia e, ao balcão, um casal de turistas alemães a tentar decifrar a carta. Quando saí, trazia comigo o cheiro a Old Spice e a cigarros Ritz e a certeza de que em Nicósia encontrarei sempre o rasto invisível daquele homem inventado, Nikos Kyriazis.