Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

23
Jan15

Uma cena de sexo

Bruno Vieira Amaral

Se tiver de pensar numa cena de sexo dos livros de Eça de Queirós a primeira de que me lembro é entre Luísa e Basílio. Luísa é uma daquelas mulheres a quem o casamento reveste de uma segunda virgindade, uma mulher a caminhar com um manto casto pelos ombros. O ambiente em casa de Luísa não é punitivo nem puritano, mas também não convida a exercícios selvagens e indecorosos. Imaginamos o amor matrimonial de Luísa, as suas concretizações, como tudo o que é regulamentar, monótono e missionário. Luísa, apostamos, não se entrega ao marido, abandona-se sem paixão e sem aborrecimento, com competência de funcionária para não denunciar a insatisfação. A chegada de Basílio é um rasgo de incadescência a que não basta arder em modo vela de altar, com aquele fogo brando, constante e inalcançável. Tem de queimar. E Luísa queima-se. O corpo, até esse momento um chão tranquilo, uma cama feita, primeiro aquece, como um corpo que se estende num banho tépido e, depois, incendeia-se. É esse aquecimento sentimental que torna inesquecível a combustão do corpo de Luísa. A sua amiga devassa, cuja influência é temida pelo marido de Luísa, é senhora de um corpo devastado, atravessado por muitas ilusões breves, tornado insensível ao prazer por conta desse desgaste moral. Nota-se um certo engelhamento, uma diminuição da capacidade física para o amor. É um pão de há três dias. A frescura de Luísa, a sua vicejante virgindade moral, apenas levemente irritada pela leitura de romances, é o que transforma aos olhos do experimentado Basílio a priminha banal numa fêmea apetecível. A falta de gosto e de classe, o provincianismo amoroso de Luísa, empresta-lhe ao corpo a graça inaugural dos territórios inexplorados. Há nela uma combinação de disponibilidade e de iliteracia sexual que, num primeiro momento, é mais prometedora do que a sabedoria de qualquer cortesã capaz de conjugar todos os verbos da cama. Luísa não é fome, é vontade de comer. Então chega essa cena tão arrojada e tão sugestiva, tão aguçada e tão subtil, em que o libertino Basílio culmina o seu repertório tropical com a execução de um cunnilingus que, independentemente dos méritos técnicos, marca um momento de viragem no adultério de Luísa e no desenvolvimento do romance. É o ponto de não retorno. A partir daqui Luísa não pode voltar para trás. Até então, era Eva em diplomáticas, mesmo que já carnais, conversações. Naquele momento, a vontade de comer dá, finalmente, a dentada na maçã. E começa a tragédia.

Umas páginas atrás, testemunhámos o primeiro êxtase. É um êxtase inocente, cândido, juvenil, causado pela leitura de uma carta (não é de estranhar visto que é através da leitura que Luísa está habituada a experimentar esses sentimentos incomuns). Mas em toda a inocência esse breve parágrafo está carregado de mais erotismo do que as futuras (e, a esta escala, explícitas) descrições. O sentimento descrito por Eça é o de um corpo na ressaca do êxtase físico e não uma alma a comprazer-se num banho sentimental. É aquela carta, são aquelas palavras que desfloram Luísa pela segunda vez, que rompem o selo da sua virgindade matrimonial. A imagem do corpo num banho tépido remete também para uma ideia de prazer auto-infligido. A leitura da carta equivale a uma cena de masturbação (como bem sabemos, a leitura é uma forma apurada de masturbação). Mais tarde, temos o clímax da licenciosidade. Basílio vai longe demais. A Luísa, por muito voluntariosa que seja, falta-lhe o estofo da cortesã. Aquele gesto precipitado e inevitável descobre-lhe lamentavelmente as insuficiências . Quando, no fim, Basílio deplora, na conversa mais porca da literatura portuguesa, o ridículo de Luísa, já após a morte desta, é que sentimos o quão longe aquele comportamento estava da verdadeira vocação de Luísa.

Seguir

Contactos

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2019
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2018
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2017
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2016
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2015
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2014
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2013
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2012
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2011
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2010
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2009
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D