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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

30
Nov15

Viver para sempre em Budapeste

Bruno Vieira Amaral

Vista de certos ângulos, e consoante a hora do dia ou da noite, Budapeste pode ser monumental ou acolhedora, mas nunca é monótona, nem mesmo quando as amplas avenidas de Peste lembram uma Paris deslocada. É banhada (ou dividida em duas) pelo título de um livro de Claudio Magris. Por aqui, o comunismo não goza de uma reputação tão extraordinária como na nossa varanda atlântica. Consta que, em 1956, os tanques soviéticos, porventura atraídos pelo magnetismo da cidade, a invadiram com o intuito de repor a ordem e esmagar os anseios líricos de espíritos que, entre outras futilidades, reclamavam o direito de viver em liberdade. A União Soviética respondeu com as razões da força blindada e, como estivessem em causa valores mais importantes do que a liberdade, procedeu a uma limpeza que deixou marcas nas paredes de alguns edifícios históricos e outras ainda mais difíceis de apagar na memória dos húngaros.

 

Ora, em Budapeste estamos em pleno coração da Mitteleuropa e se as ameaças de outros tempos já não se fazem sentir a verdade é que passeando pelas ruas vazias à noite somos assaltados pela sensação de sermos seguidos pelo fantasma de um arquiduque, de um conde infeliz ou de um fervoroso poeta nacionalista do século XIX. Em Peste, onde tiveram a gentileza de me instalar num hotel cujo recepcionista era tão simpático como um Habsburgo a quem tivessem subtraído um terço do império, abundam as estátuas. Creio que é justo dizer que esta cidade sofre de um distúrbio mental que classificarei de statuamania. De acordo com dados que pude recolher junto de um escritor local, a proporção é de uma estátua para cada dez habitantes de Budapeste, mas o governo já prometeu corrigir esta situação e, até final do ano, espera-se que todos possam usufruir da sua estátua privada. As estátuas honram figuras muito respeitadas e conhecidas (como acontece em todo o lado), mas também personagens de ficção (é verdade). Algumas homenageiam os que tombaram na I Guerra, outras, os que tombaram na II Guerra e, outras ainda, os que tombaram à entrada de um bar de escadas a pique ao qual fui levado por um membro da organização. Como bom português, organizo a minha vida em função da hora das refeições e quando, por efeito de alguma força exterior, tenho de prescindir de um almoço ou jantar, o mecanismo que rege o meu funcionamento entra em pré-colapso. Por isso, ao entrarmos no Unnia Bistrô, tratei de saber se era possível comer alguma coisa, visto que não tinha jantado. A questão foi traduzida, e embora o catálogo de expressões faciais de cada país nem sempre corresponda ao dos outros povos, creio que a reacção do empregado não teria sido de maior perplexidade caso o tivéssemos convidado para nos acompanhar numa caçada a búfalos nas ruas de Budapeste. Ainda atordoado pelo estranho pedido, disse-nos que poderia servir batatas fritas, mas da sua entoação e postura não transpirava nenhuma vontade genuína de o fazer. Acabámos, pois, por nos alimentar com um cálice de pálinka e uma cerveja do tamanho de um uigure de dez anos.

 

Gostaria muito de falar sobre o que aprendi acerca do processo de destilação através do qual se obtém o líquido precioso a que por estas paragens se dá o nome de ressonâncias futebolísticas de pálinka. Sempre que não se estão a combater ou a redesenhar fronteiras, estes povos têm por hábito aproveitar os frutos com caroço não para os comer mas para produzir aguardentes de elevadíssimo, malcolm-lowriano, teor alcoólico. Esta é uma explicação possível para a falta de vitamina C que afecta a população. Em meados de Março, devido à falta de sol e por canalizarem a fruta para a produção de pálinka, os húngaros sofrem do “cansaço da Primavera”, uma espécie de desmotivação geral, um quebranto físico, combatido com o consumo de grandes quantidades de repolho. Esta síndrome primaveril torna a Hungria um país particularmente vulnerável a incursões de exércitos inimigos a não ser que estes enfrentem outros problemas particulares, como alergias, ou tenham pruridos morais em atacar um território cujos habitantes se encontram debilitados pela melancolia.

 

Como estava a contar, no referido estabelecimento não havia comida e a oferta envergonhada do empregado gerou em mim a suspeita de que ainda teria de apanhar os tubérculos nas planícies da Panónia, o que àquela hora poderia ser uma actividade demorada. Devo dizer que já visitei muitos bares deprimentes em todo o mundo – aliás, fui gerente de um – porém este Unnia não perde para nenhum deles. Havia música ao vivo. Os músicos esforçavam-se por animar o ambiente com músicas de Johnny Cash, Bob Dylan e alguns clássicos contemporâneos da pop húngara que, compreensivelmente, o mais longe que chegam é à outra margem do Danúbio. O público estava entusiasmado, sem dúvida, batendo palmas e acompanhando as letras com nítido regalo. Que esse público fosse constituído por duas escassas adolescentes que, no intervalo das canções, trocavam galanteios e suspiros com os músicos, deverá ser atribuído ao adiantado da hora e ao dia da semana – uma quarta-feira – em que o espectáculo se realizava. Pouco depois, a audiência duplicou com a entrada de um casal. Saudaram os presentes na sala, olhando com desconfiança para a mesa em que eu e os meus companheiros de infortúnio – também eles portugueses – estávamos sentados.

 

Permitam-me uma interrupção narrativa para elaborar sobre o episódio relatado. Concedo que este incidente do bar, e mesmo o ambiente um tanto sórdido, roça o cliché e pode ofender o leitor que não se satisfaz com a exuberante mediocridade da cena. Acontece que, quando no estrangeiro, os nossos sentidos são bombardeados por constantes novidades e expostos a estranhos estímulos que, para os que a eles estão habituados ou os que ainda não os experimentaram, parecem desprovidos de valia noticiosa ou narrativa: a moeda (ali ainda subsiste teimosamente o forint), o nome das ruas, o traçado urbanístico que, para o neófito, é sempre labiríntico, os códigos regionais do olhar e dos gestos, os transportes públicos (o arcaico sistema de controlo de entradas no metro obriga à existência de uma brigada de revisores), os semáforos, renovam a nossa capacidade de observação e de espanto, como se fôssemos em simultâneo crianças maravilhadas e primitivos com receio do mundo exterior. Arrisco dizer que os grandes escritores são aqueles que observam os cenários mais familiares e costumeiros com a mesma atenção, curiosidade, estranheza e temor do homem que visita uma cidade estrangeira pela primeira vez.

 

Aproveitando uma pausa na atuação dos músicos e depois de uma luta assanhada com a cerveja, saímos do Unnia. Como a música pode alimentar a alma mas não o corpo, eu continuava com uma fome atroz. À falta de alternativa, dirigimo-nos a um quiosque onde um primeiro e esperançoso olhar não encontrou a naquele momento tão querida presença de uma bifana, ou mesmo de um hambúrguer, sequer de um cachorro. Juntando isto à ligeira diferença horária e ao já referido forint, tem-se uma ideia do sentimento de exílio que me abalou. Naqueles instantes em que, faminto, procurei a portuguesa bifana, a minha pátria era aquela fatia de carne de porco, tantas vezes menosprezada.

 

- Aqui servem lángos – disse-me o meu interlocutor e, de seguida, transmitiu-me umas noções básicas sobre esse alimento com que eu me preparava para aconchegar o estômago. Também esperei que a explicação fosse acompanhada de pequenas curiosidades colhidas na história universal do lángos, de como algum rei macedónio morrera engasgado ou de como tinham vencido os otomanos assestando-lhes lángos nas muçulmanas ventas, mas o nosso cicerone desconhecia em absoluto a origem histórica deste pitéu. Isto tranquilizou-me. Quando nos deslocamos ao estrangeiro, quem nos recebe – ainda que imbuído do mais nobre espírito da hospitalidade – faz questão de enquadrar tudo, de aproveitar uma porção de chucrute para perorar sobre a agricultura local, uma cerveja traz uma lenda, uma árvore centenária evoca um mito do folclore. Vai-se a uma casa de banho e é quase certo que, nas imediações do urinol, algum general setecentista se sacrificou pelo povo. Talvez estes rituais explicativos sejam uma interacção humana banal e o problema esteja em mim; porém, estes hábitos fazem com que, além da desorientação do provinciano, sinta que é tudo tão historicamente importante que tememos que, ao partir um copo ou puxar uma porta que devíamos empurrar, estejamos a incorrer numa dessas violações inadvertidas de códigos sociais dos autóctones, ou a destruir uma parte inestimável do património colectivo e, com o nosso gesto inocente, espoletemos um processo de implosão que conduzirá ao fim apocalíptico de uma nação milenar.

 

Bem. Então pedi o meu lángos, uma base de massa frita coberta de sour cream e de ingredientes à escolha do freguês, do universal queijo ao típico chouriço húngaro. Enquanto o senhor do quiosque preparava esta arma de destruição maciça, aproximou-se de nós um grupo de quatro jovens, duas raparigas, um rapaz e um hipster, sendo que uma das moças vinha em custosas negociações com a gravidade que foram abruptamente interrompidas quando a cadeira de pé alto a que se encostou ganhou vida própria e avançou uns dez centímetros. Esta deslocação maldosa de um objecto só aparentemente inanimado forçou a jovem a assumir uma posição horizontal da qual foi resgatada pela companheira enquanto o mancebo e o hipster gargalhavam em convulsões magiares dizendo o que presumi ser o equivalente em húngaro a “Ai, Jesus! Tu viste-me esta queda, ó Lazslos? Ai que caralho!” Assim que se recompôs, desiludida com a falta de solidariedade geracional, a rapariga afastou-se nervosamente do local e, por segundos, temi que se fosse lançar nas águas do Danúbio, situação na qual, se tivesse ocorrido, eu não lhe poderia ter sido de grande ajuda porque não sei nadar e também porque reparei que o lángos estava pronto com todo o aspecto obsceno, caótico e clinicamente reprovável esperado pela minha fome. A fome, meus amigos, é negra – e sem mais cuidar do paradeiro da funâmbula, lancei-me que nem um Huno sobre o desamparado e gorduroso acepipe. Dispenso-me de vos oferecer uma recensão gastronómica sofisticada pois a fome não apura o sentido crítico de ninguém, antes o obnubila. Regressei então ao hotel President, na Hold Utca, farto que nem um camponês, pensando no que o dia seguinte me reservava.

 

A manhã começou com um bizarro acontecimento no hotel. Dirigi-me ao piso -1 com a firme intenção de tomar o pequeno-almoço – refeição considerada por todos os nutricionistas, e pela minha avó, a mais importante do dia – e fui impedido de concretizar o meu singelo desejo por um sujeito com ar de guarda-costas de um oligarca russo. “Your room, no breakfast. You must pay.” Palavras carinhosas embora telegráficas emolduradas por um olhar repressivo. Dei meia-volta, argumentando que ia buscar dinheiro mas sabendo que não regressaria àquele templo furiosamente vigiado por este Cerbero de uma só cabeça, embora não menos assustadora do que a do seu homólogo mitológico. No átrio, os meus companheiros esperavam-me. Perguntaram-se se tinha tomado o pequeno-almoço. Disse-lhes que sim e por isso estranharam quando, minutos depois, pedi que entrássemos num café para mordiscar qualquer coisinha. Para essa manhã, estava prevista a nossa primeira actividade oficial. Um encontro promovido pela associação de jovens escritores húngaros em que seriam discutidos temas que desde Homero têm preocupado esta classe muito peculiar de indivíduos: qual o papel do escritor na sociedade e qual é o objectivo da escrita?

 

Duas notas: qualquer escritor, por jovem que seja, que se aliste numa associação de escritores ganha automaticamente 20 anos, pelo que é muito natural que uma associação destas seja composta por antiquíssimos jovens autores; ninguém bem-intencionado acredita que as respostas àquelas perguntas sejam encontradas num belo dia de Primavera em Budapeste misturando as opiniões aleatórias de 20 escritores que na maioria se exprimem em inglês técnico. Ou seja, a utilidade de uma tal discussão é quase nula. Alguns acham que tem a virtude de pôr em contacto pessoas de outros países e outras culturas, mas a verdadeira vantagem que detecto é a confirmação de que a estupidez, as opiniões banais e formatadas, distribuem-se com alguma harmonia por todo o lado e não poupam esta elite de iluminados pontas-de-lança do pensamento com que pessoas mais ingénuas ainda insistem em confundir os escritores. Eu contribuí com as minhas e não me arrependo disso. É raro termos pensamentos originais e é certamente duvidoso que os mesmos nos ocorram numa reunião tão formal. Pode aproveitar-se uma boutade, uma piada, mas o risco de sermos atingidos por um pensamento sério nesse contexto é reduzido. Mais facilmente seríamos atingidos por um dos quadros expostos nas paredes do belo edifício onde se realizou o encontro, o Museu da Literatura Petófi. Sándor Petófi é uma espécie de Camões dos húngaros, no sentido de poeta nacional, embora a época em que viveu o aproxime mais de um Almeida Garrett. Diz a lenda (e Claudio Magris) que a mãe de Petófi não sabia falar húngaro. A minha, que eu saiba, também não. Petofi morreu, em 1849, numa das batalhas pela independência da Hungria do império austríaco, destino ao qual pretendo escapar.

 

Sentámo-nos em três longas mesas rectangulares, o que pela primeira vez me despertou para a realidade de estar em representação do meu país e, carregando nos ombros tão pesada responsabilidade, ter achado ser meu dever contribuir para dar de Portugal uma imagem completamente errada, mistificadora e irreal. Olhando para trás, creio que atingi o meu objectivo e que os meus companheiros do Festival do Primeiro Romance ficaram com uma ideia muito pior do que o nosso país é na verdade. Espero que isto me valha uma condecoração no futuro. Bem. Ministerialmente sentados, apressámo-nos a discutir esse magno tema do papel do escritor na sociedade. Um moderador húngaro lançou o debate e a primeira intervenção foi também de um escritor húngaro que se expressou fluentemente num inglês que classificarei de imaginativo, pontuado de expressões idiomáticas húngaras que o moderador procurava acomodar o melhor que podia, enfiando com a arte possível os pedacinhos de goulash no hamburguer linguístico do compatriota. Se não estou em erro, o italiano tomou de imediato a palavra e lançou-se numa bem-sucedida crítica à sociedade italiana, à falta de cultura dos seus compatriotas e aos seus miseráveis hábitos de leitura. Elevou a dificuldade do exercício tentando dizer todas estas coisas sem referir o nome “Berlusconi”, desiderato que não conseguiu atingir pois, já perto do final da sua intervenção imaculada o “Berlusconi” saiu-lhe em borbotão. Depois de denunciar Berlusconi ficou aliviado e estendido no chão porque foi como se um ginasta, depois de um desempenho perfeito nas argolas, tivesse aterrado de cabeça no tapete. Ele lá se orientou como pôde. Considero que foi das prestações mais decentes.

 

De seguida, falou o francês. 47 anos, rosto de trinta e poucos, fatinho beige, mocassins, Mathias Menegoz estava tão em casa como um Espírito Santo nas festas populares da Cruz de Pau. A sala onde nos reunimos cheirava nitidamente a classe média; na maioria dos rostos via-se a crença feroz na salvação pessoal através da literatura, uma cambada de mortos de fome contentes por um passeio no estrangeiro à boleia de um primeiro livreco, mas o odor do igualitarismo não rodeava o fidalgo Menegoz que disse logo que o escritor não tinha qualquer dever de comentar a sociedade (concordo), que estava farto dos escritorzões franceses vítimas da síndrome de Vítor Hugo (concordo), que a censura até faz bem aos escritores porque os obriga a arranjar alternativas e truques de escapismo (aqui começou a delirar), considerando que os riscos reais que correm, por exemplo, ao escrever em regimes totalitários são uma forma, perversa, concedeu, de fazer refulgir o génio, chegando mesmo a comparar a censura aos constrangimentos formais de um soneto, o que seria uma excelente analogia se houvesse registo de algum poeta alguma vez ter sido fisicamente torturado, mutilado, assassinado e atirado para uma vala comum por um soneto petrarquiano. Sobre este assunto, recomendo a leitura de um ensaio de James Wood sobre o livro Paixão Intacta, de George Steiner, especificamente sobre um dos ensaios desse livro, em que Steiner argumentava na mesma linha do nosso conferencista francês mas tendo Steiner a desculpa de ser Steiner, de ter escrito o ensaio nos anos 70 e de não ter pedido desculpas como prontamente fez o primeiro-romancista que, afinal, não queria equívocos e claro que achava que escrever em certos países envolve muita coragem e pode não fazer lá muito bem à saúde, etc. Ou seja, Monsieur Menegoz deu uma valente dentada na sandes de courato e a nuvem plebeia venceu a resistência da cúpula invisível que o protegia e o homem lá ficou democraticamente enojado (a meio saiu com um ataque de tosse). Antes de abandonar a reunião, informou-nos que era investigador na área das neuro-ciências passando os seus dias a, como fez questão de repetir inúmeras vezes, “pulling brains out of rats”, com aquele sotaque franciú que sugere um certo nojo na utilização de um idioma alheio, como se estivesse a tentar remexer um balde de detritos com o mindinho. Uma bela manhã parisiense, entediado como um Carlos da Maia no seu consultório de cartão, resolveu que aquilo não o satisfazia e fez o que qualquer mortal faria no seu lugar aos quarenta e tal anos: foi pedir dinheiro aos pais. A reacção do progenitor poderá chocar os mais sensíveis: não só o homem se dispôs a financiar bastamente o empreendimento literário do filho como ficou muito entusiasmado com a perspectiva de, finalmente, ver resultados palpáveis do seu trabalho. Antes que pensem que estou aqui armado em Robespierre e quis instaurar o Terror naquela sala devolvendo o pobre Mathias ao l'hexagone ao melhor estilo Marie Antoinette, devo dizer que nenhum preconceito me movia e que, no trato pessoal, este cabrão chauvinista foi de uma grande correcção protocolar e até de uma simpatia aparentemente genuína, mesmo sabendo eu que gente desta estirpe é exímia a dissimular desde tenríssimas idades.

 

O belga, sei lá, disse qualquer coisa que na literatura belga, ou talvez só na flamenga (eu já acho o mundo complicado vivendo num país de fronteiras estáveis e nacionalidade de hímen mais ou menos intacto – um bocadinho de pressão dos espanhóis e tal, nada definitivo – mas em convívio com estes maduros da Europa Central chego a ter pena deles) existe muita masturbação, ao que eu, com o excelente sentido de oportunidade que me caracteriza, respondi dizendo que na vida também isso acontece; portanto, as coisas equivalem-se. Depois de despacharmos este assunto, logo outro se apresentou às nossas brilhantes cabeças: “qual o objectivo da escrita”, um assunto que gerou contribuições da mais elevada valia intelectual mas que infelizmente não foram registadas para a posteridade. Quer dizer, não se perdeu o mesmo que na destruição da biblioteca de Alexandria, mas as acusações que a escritora ucraniana de origem polaca ou polaca de origem ucraniana mereciam os séculos vindouros. De estupenda cabeleira leonina, discordou de tudo o que eu dissera. O que é que se passa com estes ucranianos, pensei. Não conseguem estar em paz com ninguém? Eu disse-lhe “Svetlana (o nome dela era outro), ouve lá, cuidado com essas merdas que eu não sou o Putin”, mas tudo acabou razoavelmente bem.

 

Para aligeirar o ambiente, interveio o representante esloveno, Davorin Lenko, que com o seu pesado sotaque transilvano, um doutoramento em literatura pós-moderna e um cabelo de motard finlandês, conquistou logo a minha preferência entre todos os concorrentes. Como eu dizia, introduziu uma nota ligeira, falando sobre o tema do seu livro: cancro nos testículos e castração. Ora, o Davorin perdeu-se um pouco na história dos tomates e eu, certamente por sugestão, fui acometido de uma súbita e imperial vontade de mijar, talvez para comprovar que o filho da puta do esloveno, sabe-se por lá que negras artes daquelas regiões, não andava ali à procura de peças em segunda mão para a sua personagem desafortunada.

 

Apreciei muito a interpretação da concorrente holandesa. É impressão minha ou as holandesas têm um ar de perpétua disponibilidade fodal? Eu olho para as mulheres holandesas – sejam escritoras, a rainha ou o Van Persie – e os gestos... bem, perco-me. Entretanto, o húngaro achou que ainda não o tínhamos incompreendido o suficiente e confundiu-nos ainda mais com uma segunda intervenção que, de acordo com os conhecimentos gastronómicos que adquiri mais tarde, era uma mistura de főzelék com lángos. O homem estava possuído, falava num tom de voz de medium da Carpátia, pausado e olhando em volta da sala como se o discurso lhe estivesse a ser ditado por um ectoplasma a vaguear pelas paredes do museu. Outra escritora, esta muito nova mas com um inglês do nível do colega (em comparação nós, portugueses, apesar de todas as liberdades no nosso inglês de pirata, somos tão destros na língua de Shakespeare como o próprio bardo), também falou, trocou-se, pediu desculpa, quase chorou, não sei bem porquê e eu olhava para o francês, a sua fleuma a ocultar uma aflição interior, e pensava que nós, europeus, somos todos malucos. Porque, não contentes com o facto de termos sido convidados para discutir estes assuntos prementes, no dia seguinte teríamos de participar em painéis tais como: “O Ocidente e o resto: perspectivas do desenvolvimento ao nível das mais variadas situações”.

 

Tocou a campainha para o almoço e fomos para a esplanada no jardim do museu. Partilhei a mesa com o francês, o cipriota e o húngaro. Foi uma conversa animada em que, se percebi bem, o húngaro atacou o governo húngaro, o cipriota defendeu Michel Houellebecq e o francês atacou o compatriota. Louvou-lhe as qualidades literárias mas confessou ter ficado em choque quando, certa vez, jantou em casa do polémico romancista e encontrou restos de sanduíche no sofá. O cipriota não se convenceu: “So what?”, perguntou em verdadeiro estilo de rufia mediterrânico. O francês argumentou que uma tal desorganização e falta de higiene era a prova irrefutável de uma mente doentia, e sobre mentes, doentias ou não, ele sabia muito porque, como fez questão de repetir, passara uma parte substancial da vida “pulling the brains out of rats.” Ao almoço serviram-nos o muito típico panado de frango com batatas fritas, uma escolha sensata e ao gosto universal para não ferir os paladares mais sensíveis.

 

Enquanto os outros participantes regressaram pontualmente à sala, eu, o cipriota e o francês ficámos mais uns minutos usufruindo do inusual sol húngaro, bebendo café (o francês bebeu um chá mais adequado à sensibilidade do seu estômago infantil) e praticando aquela arte de apreciar a vida enquanto os outros cumprem os seus deveres, que creio ser a única coisa em que os povos meridionais são verdadeiramente civilizados. Só espíritos insensíveis, calcificados por climas inclementes e doses cavalares de protestantismo, têm a coragem de desaproveitar estes minutos de uma leveza diáfana em que nada se produz, nada se acrescenta à civilização material, nenhum pensamento nos obscurece a mente, e somos apenas telas aptas a registar as mínimas variações ambientais: uma aragem, a sombra de um pássaro no chão, o rebrilhar do sol na bandeja de um empregado imóvel. Como o café não estava incluído na refeição, o cipriota, engenheiro naval, pagou. Foi um momento de quase perfeição, em que alguma antipatia que pudéssemos nutrir contra o francês se dissipou, como se os raios solares e a temperatura amena se tivessem encarregado de o despir de alguma soberba, revelando-o como o que era, um rapazinho bem de quarenta e tal anos com a timidez do privilégio que é sempre, sabemo-lo bem, um reconhecimento de culpa, um desejo fundo de arrependimento inoculado por uma educação que ensina, desde muito cedo, a não esfregar na cara dos outros a superioridade da sua condição. Se me é permitida a digressão lateral, é essa educação que, muitas vezes, falta ao homem que sobe a pulso na vida e não resiste, daí para a frente, a contar – empolgado – as vicissitudes da sua ascensão, agravando misérias iniciais e exagerando conquistas recentes. Sou, neste particular, um adepto da mediocritas, de observar e avaliar a nossa vida com um certo desprendimento, para não nos enamorarmos dessas conquistas sempre tão precárias e para fruirmos das memórias dos primeiros tempos, nem sempre tão hediondos como conviria à narrativa do patinho feio.

 

Regressámos à sala de reuniões e ao tema do objectivo da escrita, por que escrevemos e assim. Nestas coisas o melhor é pegar em frases conhecidas, já testadas, e aplicar-lhes uma corzinha pessoal. Foi o que eu fiz, citando impunemente Nelson Rodrigues, Saul Bellow e Lobo Antunes. Se pensaram que as ideias eram minhas, azar o deles – embora daí também não venha mal ao mundo. Estávamos no ponto de discutir a actual obsessão com a escrita autobiográfica, sobre os limites da ficção e as algemas da realidade (o francês, mantendo uma coerência notável, afirmou que quis escrever um livro que se afastasse o mais possível da sua experiência pessoal que, como nós já bem sabíamos, consistira em “pulling brains out of rats”. Porém, o seu desgosto era menos dirigido contra o seu passado científico-laboratorial do que contra esse hábito plebeu, pé-rapado, de escrever sobre a vidinha de merda que se tem. Então inventou uma personagem, um conde húngaro do século XIX que regressa à aldeia natal, um lugarejo perdido na Transilvânia, onde é tudo muito feudal e arcaico. Repare-se neste movimento: quando poucos tinham acesso a relatar as suas vidas por escrito, as confissões eram um género necessariamente elitista. A partir do momento em que se democratizou o acesso à escrita, escrever sobre a própria vida cheira a perfume barato e os fidalgos fogem para as fantasias ou para a História, onde ficarão a salvo da pestilência auto-centrada da classe média.)

 

O finlandês, que chegara depois do almoço, (e que trazia uma t-shirt com estes dizeres pouco impressionantes quando se visita uma país como a Hungria – “I speak Finnish. What’s your superpower?”), disse que estava a escrever um livro sobre a sua família, adiantando que numa família de fotógrafos era ele o único escritor e que queria transmitir através da escrita as emoções que sentia ao rever velhas fotografias familiares. Toda esta conversa meio sentimental deve ter irritado os germano-falantes (Franz Friedrich, alemão, e Heinz Helle, suíço de Zurique) que trataram de devolver alguma seriedade à discussão, mais logos e menos pathos, vamos lá perceber os limites da linguagem, e qual a ligação entres as palavras e os objectos, entre as ideias e o mundo exterior, quando escrevemos não nos limitamos a arranhar a superfície do real? Foda-se, ó Wittgensteins, vamos lá com calma, pensei eu, mas os argumentos eram tão intrigantes e esotéricos que ninguém se atreveu a contestá-los, até porque contestar alguém que fala alemão é pedir que sejam despejadas sobre nós 50 megatoneladas de palavras compostas de um idioma criado para se filosofar quando só podemos responder em português, uma língua excelente para criticar os vizinhos, versejar com diminutivos e desabafar, mas francamente inútil quando se trata de justas internacionais de filosofia.

 

Confesso que, a partir desse momento, os meus níveis de atenção caíram a pique e passei a maior parte do templo a contemplar a mesa redonda a um canto da sala, com as garrafas vazias de água mineral, as cor-de-rosa sem gás, torres de guardanapos e copos emborcados, distraído, enquanto, vim a saber, a escritora norueguesa desenhava os nossos rostos num moleskine. Finalmente, saímos do museu. Lá fora, à entrada, sentia-se um ar fresco que, após várias horas encerrados numa sala, revigorava. Trocámos opiniões, frases de circunstância, esclarecemos alguns equívocos para assegurarmos que, apesar de algumas ideias mais arrojadas, éramos perfeitamente inofensivos e bem-intencionados.

 

Fui com o outro escritor português presente no certame até à Vorosmartyr Tér onde havia grande animação, com múltiplas barracas de artesanato, palcos onde bandas tocavam música cigana, quiosques de doçaria e de comida mais robusta, como pernil de carneiro, e enormes sertãs, onde dezenas de batatas boiavam apaticamente em molhos espessos e condimentados. Procurei comida menos agressiva, mas priápicas salsichas espreitavam de formidáveis pães, nacos de carne pendurados por fios grossos como cordame de navios pendiam ameaçadoramente como se se destinassem a saciar a fome de toda a Hungria, espetadas gargantuescas, pimentos recheados e os inevitáveis lángos, ainda mais pletóricos e repletos, compunham um banquete destinado mais a ogres do que a seres humanos. Passámos defronte do Gerbeaud, café que me fora recomendado por todas as pessoas que tinham visitado Budapeste, mas que, à excepção da atmosfera conspirativa que emana de todos os estabelecimentos abertos ao público nesta área da Europa, me pareceu despudoradamente turístico, tão aborrecido como a nossa Brasileira, que à conta de um prestígio pretérito e datado, é frequentada por hordas de turistas desejosos de experimentarem o típico, o antigo e o clássico, julgando que aquele café é uma metonímia do espírito da cidade ou qualquer merda desse género. Não é. Sentámo-nos numa esplanada, eu a beber uma cidra, ele, uma cerveja, e ficámos assim, silenciosos, embalados pela respiração da cidade que nos banhava indolentemente.

 

O programa desse dia estava quase a chegar ao fim, faltando apenas a recepção oficial no pavilhão principal do Festival Literário, em Buda. Apanhámos o metro e foi aí que confirmei a quantidade de revisores, mais numerosos que um exército persa, capazes de por si só taparem o sol se as suas funções não fossem subterrâneas. À saída do metro, um caos de obras, tapumes, maquinaria pesada. Porém, faltavam aqueles grupos tão portugueses de reformados que se juntam para apreciar em directo o progresso das obras; uns acompanham sonhadoramente a trepidação do martelo pneumático, outros de cenho crítico, mas ambas as categorias dão palpites. Creio que é um fenómeno nacional que, na minha humilde e anti-alentejana opinião, não fica atrás do cante como expressão única do sentir de um povo. Merece ser património imaterial da humanidade e teríamos todo o gosto em exportar centenas de especialistas na observação de obras que ensinariam aos restantes europeus essa arte de espreitar pelos tapumes, de se encostar às cercas sem cair num buraco. A noite estava muito agradável, quase tropical para os parâmetros da Europa de Leste.

 

O jantar-volante decorreu no pavilhão Millenaris. Os seguranças de postura vagamente homicida, a iluminação sombria, as pesadas cortinas negras à entrada e os arranjos florais fúnebres junto do palco criavam uma atmosfera geral tétrica embora não totalmente desprovida de esperança, como um baile de finalistas em que o sistema de som não funcionasse. A maioria dos convidados estava vestida a rigor e era notória a sensação de privilégio por se encontrarem ali. O ruído de fundo de vozes e de talheres era hesitante, como se a qualquer momento pudesse ser interrompido pela chegada de uma dessas personalidades que impõem, pela sua simples presença, um silêncio elétrico que lhes abre passagem, e deixam na sua esteira onomatopeias de espanto e cochichos de admiração. Mas não apareceu ninguém de tal calibre. À excepção dos que estavam entretidos a falar junto da entrada, os restantes convidados formavam uma cordilheira que impossibilitava o acesso às mesas da comida. Ao fim de várias tentativas de escalada e perfuração, lá aproveitei uma brecha para alcançar a carne de porco e outras coisas que, apesar de desconhecidas, pus no prato temendo não ter outra oportunidade de me aproximar das mesas. Criados meio sorumbáticos passeavam-se com bandejas pelo recinto oferecendo copos de um excelente vinho húngaro. Acomodámo-nos numa mesa, pedindo licença aos comensais que a tinham ocupado. Um deles, percebendo que éramos portugueses, expressou-se num idioma estranho com remotas semelhanças ao português do Brasil adquirido, pelo que percebi, na temporada em que o sujeito fora responsável pela fábrica de uma multinacional alemã em território brasileiro. Falou em samba e água de coco e tentou explicar-nos onde se situava a tal fábrica mas, à terceira tentativa, sem que soubéssemos se tinha sido em Itapuã, Adoniran, Pindamonhangaba ou Xirapatã, emitimos um expletivo e conhecedor “oh” como se estivéssemos mesmo a ver onde é que era a tal cidade, poupando o nosso interlocutor a um novo esforço e contribuindo para uma ideia completamente errada acerca do seu domínio do idioma, que era bastante rupestre. Ao terceiro copo de vinho húngaro, como nos acontecimentos inopinados dos sonhos, dei por mim a falar sobre os entraves burocráticos da administração pública portuguesa e, ato contínuo, sobre lutas de cães.

 

Após o jantar, regressámos a Peste. Saímos na estação de metro junto do Parlamento onde tirei umas fotografias de que não me envergonho. A caminho do hotel, passámos pela estátua do malogrado Imre Nágy que, na altura da revolução falhada de 1956, ocupava o cargo de primeiro-ministro, à revelia dos soviéticos. O seu objetivo político era que a Hungria saísse do pacto de Varsóvia e fosse reconhecida pela comunidade internacional como um estado neutral. Apesar de marxista (e, como provam as fotografias, de poder ser confundido com um qualquer parente afastado dos irmãos Marx) recusava a ortodoxia soviética. Pagou essa ousadia com a vida. Em 1958 foi capturado pelas tropas soviéticas, julgado e condenado à morte por enforcamento. Foi enterrado numa campa não identificada. Há quem diga que o facto de a estátua se encontrar a meio de uma ponte (que é também parte do conjunto escultórico) simboliza o percurso de Nagy até meio da liberdade. Numa primeira apreciação, concluí que seria mais a do meu homem dividido entre a ideologia em que acreditava e a lealdade e amor pelo seu povo. Um dos elementos do nosso grupo chamou a atenção para o facto de a figura olhar para a esquerda, o que também mereceria uma interpretação, mas não àquela hora em que nem sequer estávamos em condições de apreciar a histórica ironia de haver uma estátua de Ronald Reagan junto ao monumento que assinala a libertação da Hungria pelas tropas soviéticas perto do final da II Guerra Mundial. Quando entrei no meu quarto de hotel, dei graças pelo repouso que me aguardava.

 

Na manhã seguinte, dirigi-me com algum receio ao -1 mas, desta vez, não fui importunado por nenhum capanga eslavo, nem por qualquer outro empregado do hotel. Entrei, sentei-me, bebi uma chávena de café, e preparei um croissant besuntado com uma compota não excessivamente idiossincrática, antes com aquele sabor universal e plastificado que desagrada ao menor número de pessoas. Abandonei o local sentindo o orgulho injustificado e um tanto rústico de quem enganou as autoridades. Os meus planos para essa manhã passavam por assistir à conferência de imprensa da mega-estrela internacional, Jonathan Franzen, convidado de honra do festival e que, na noite anterior, já fora agraciado com uma condecoração – e, se a hospitalidade húngara quer ganhar pontos, com duas putas no quarto. Solicitei uma acreditação porque, depois de ter escapado à canina vigilância do hotel, pensei que seria abusar da sorte entrar à portuguesa na sala onde se iria realizar a conferência. Ora, foi mesmo isso que o meu homólogo belga fez, e ainda se gabou da sua destreza olhando com uma certa comiseração para o cartão plastificado que eu prendera à camisa e que dizia Press. Esperámos uns minutos e então surgiu Franzen montado numa triunfal timidez. Depois de uma troca de palavras e sorrisos com o editor húngaro (que é não só o mais importante editor húngaro como pai da ex-namorada do meu tradutor; pode certamente contar com uma estátua), sentou-se, simulando um ligeiro desconforto e desadequação, como as grandes estrelas de Hollywood que de vez em quando fazem um filme independente. O moderador da conversa prometeu não fazer perguntas demasiado medíocres. Franzen tomou a palavra e manifestou a sua surpresa pela forma como os escritores são tratados na Europa – condecorações e conferências de imprensa – e disse que nos EUA ninguém quer saber das opiniões dos escritores para nada. Concordo que nunca passaria por nenhuma cabeça capitalista convocar uma conferência de imprensa de um escritor a não ser que fosse para anunciar uma mudança de sexo ou confessar a participação no assassínio de JFK. O que depreendi das palavras do autor de Liberdade – e posso estar errado, é claro – é que a Europa se comporta como uma velha e demasiado solícita rameira, oferecendo com excessiva prontidão as suas depauperadas relíquias enquanto nos EUA, terra de muitas inteligências médias e poucos génios, segundo Tocqueville, a sensatez impera e a maioria dos escritores é ignorada com aquele desapego vital que ainda caracteriza a sociedade norte-americana. Claro que para muitos idiotas europeus isso não passa de uma manifestação de barbárie ou, pior, de filistinismo ianque, quando uma análise fria nos dirá que não haverá nada mais libertador para um homem de letras do que ser respeitado pelos seus livros sem que dele se espere uma panaceia para os males do mundo. Porém, chegados à Europa, embevecidos com tanto carinho, atordoados com tantas comendas, têm de ser um bocadinho europeus e vestir a farda anacrónica dos grandes intelectuais públicos de meados do século XX. Fazem-no, como no caso de Franzen, com algum distanciamento e uma saudável auto-ironia. Mas fazem-no. O momento alto da conferência foi quando um velho húngaro, coroado com um boné digno da famosa tradição de Paços de Ferreira, questionou o escritor norte-americano sobre a situação política do mundo em geral. Franzen agradeceu a pergunta, pigarreou, ajeitou os óculos, fez uma graçola, repigarreou, alçou a fronte como um César na iminência de falar ao povo e, depois de um suspiro vindo das profundezas da sua inibição mid-western, confessou que não tinha uma resposta muito boa para essa questão e então deu outra resposta qualquer. A sério, porque é que submetem os escritores a estas torturas? Qualquer treinador de futebol da II Liga teria sido mais assertivo e igualmente vácuo.

 

Mas o ar de filatelista de Franzen não nos deve levar ao engano. Temos de nos lembrar que estamos perante um profissional do entretenimento. Questionado sobre a avalanche de romances autobiográficos – não se fala de outra coisa – e se teria sido capaz de escrever certas coisas enquanto os seus pais eram vivos, Franzen lançou a sua pequena bomba atómica de fabrico caseiro que trouxera da América: “Entre as muitas coisas boas que me deram, os meus pais deram-me o presente de terem morrido cedo.” No entanto, o efeito não foi tão devastador como Franzen previa. As únicas pessoas que poderiam ficar chocadas com uma frase tão ponderadamente escandalosa acompanhavam a conferência pelos auscultadores da tradução simultânea. Entre o som da voz de Franzen e a reacção da plateia houve um intervalo demasiado longo que amorteceu o verdadeiro horror, o que por sua vez gerou uma reacção tardia do escritor à sua incapacidade de provocar viva indignação. Falou então sobre o ambiente, a sua grande causa tépida, meio invertebrada. Sem a convicção do partidário ou a fogosidade do activista, tudo o que transparece da sua defesa do ambiente é a adesão bem educada do porta-voz, como se tivesse escolhido aquela entre uma série de causas pelas quais não se importaria de dar a cara. Falou como o noivo envergonhado que procura justificar um casamento por conveniência. Finalmente, e a bem de todos os presentes, alguém deu por terminada a sessão. Franzen ainda assinou alguns livros mas foi rapidamente levado pela sua entourage húngara para um lugar seguro, a salvo das investidas de malucos de boné na cabeça.

 

Lá fora o dia estava magnífico, o que aumentou o meu desgosto pela hora perdida naquele anfiteatro quando poderia ter estado a observar as raparigas sentadas nos bancos de jardim junto do lago, as mulheres com blusas do ano anterior que revelavam o quão surpreendente era aquele bom tempo, homens solitários com camisolões pesados porque os homens solitários são sempre mais lentos a adaptar-se às mudanças súbitas de temperatura. Reuni-me com o meu grupo ao qual entretanto se juntara um editor húngaro. Ainda novo, não mais de 35 anos, usava aqueles óculos de lentes fumadas que a mim só me lembram líderes de seitas milenaristas e predadores sexuais do Milwaukee, sujeitos que casam com mulheres mais velhas e deprimidas que não percebem logo o que se passa na cave. Almoçámos num restaurante modesto em que, além de nokedli e arroz doce, fomos brindados com uma reflexão literária do editor, queixando-se da literatura da miséria praticada com monotonia por um número significativo de escritores húngaros. O editor desejava histórias alegres, fábulas, invenções, delírios e os compatriotas só lhe davam realismo, sujidade e depressões. Despedimo-nos dele e fomos beber um café numa esplanada de uma rua fechada ao trânsito. Nos canteiros defronte da nossa mesa, dormiam dois sem-abrigo. Pensei logo no editor e de como gostaria de lhe contar a história das bonitas dálias ocultadas pelos sobretudos daqueles desgraçados.

 

Às 16h30 fui então participar no painel sobre o Ocidente e o resto. Uma vez mais, tive a companhia do francês e do seu clássico intemporal sobre actividades laboratoriais. Explicou também a origem do seu interesse por aquela região europeia, etc, etc, etc. Não consigo precisar em que altura, mas a verdade é que a conversa guinou para um caminho ecuménico e auto-celebratório da ideia de Europa. Dentro da cabeça dos federalistas, o Hino da Alegria toca em permanente repetição e dos lábios sai-lhes incessante o mantra de que somos todos europeus. Um escritor dinamarquês, de respeitabílissimos cabelos brancos, lamentou que os intelectuais não assumissem a responsabilidade de levar a tocha desta nova condição universalista aos seus povos. Em tempos não muito distantes, estes pentescostais do pan-europeísmo foram revolucionários convencidos de que bastava percorrer a província com os seus breviários políticos e os seus cânticos de intervenção para que os aldeões se rendessem às proclamadas virtudes do igualitarismo, do marxismo e do socialismo. Hoje, goradas todas as revoluções, passaram a fumar light e a propor transformações menos radicais mas igualmente ambiciosas. Sonham em percorrer a Europa de pullman, levando às massas os ideais de Monnet e distribuindo medalhinhas com a imagem de Delors. Que as pessoas comuns não liguem nada aos escassos lunáticos que ainda se julgam incumbidos de uma missão civilizadora não desanima os nórdicos, cujos índices de qualidade de vida que alcançaram parecem ter-lhes drenado toda a sensatez dos cérebros. Estes altos, belos e bem falantes europeus acreditam, como o suíço, que o nacionalismo é uma ficção e até o temperado belga acabou a louvar o cosmopolitismo, como se este, por essa curiosa taxonomia, não fosse também uma construção cultural. Já no dia anterior, o suíço, com a conversa sobre o divórcio entre a linguagem e os objetos, me pareceu inclinado para o mundo de abstracções mentais onde uma vez que o homem caia jamais conseguirá abrir uma torneira sem perpetrar filosofia. Na medida certa, o ceticismo é saudável mas não deverá conduzir o seu praticante à paralisa, à impotência do pensamento, à esterilidade. Se uma ficção é tão poderosa ao ponto de alguém achar que vale a pena matar e morrer por essa ficção então é inútil insistirmos no seu carácter ficcional como se isso nos protegesse das acções dos que nela acreditam ou nos elevasse acima do mundo em que os outros vivem. A conversa durou apenas mais dez minutos. Felizmente, ainda tinham sobrado alguns canapés servidos no início da sessão. Quando saímos, começava a entardecer em Budapeste.

 

Para a noite estavam planeadas leituras em várias livrarias independentes. A mim calhou-me em sorte a Massolit, na Nagy Diófa Utca. É um espaço que funciona também como café, com um acanhado jardim nas traseiras e frequentado por estudantes universitários, professores universitários, pessoas húngaras que não consegui associar a nenhuma classe profissional e um brasileiro. Li excertos em português e o meu tradutor leu em húngaro, a leitura foi aplaudida mais por cortesia do que por entusiasmo e, no final, bebemos todos um excelente vinho húngaro, desta vez branco. Foi nessa ocasião que conheci o homem que nos haveria de guiar nessa noite: Laertes de Souza, poeta, performer, cineasta, carioca do mundo e, de há três anos a esta parte, fiel a Budapeste. Contou-nos como chegara a casa às 10 da manhã (mais tarde corrigiu para as 8 e ainda mais tarde, inadvertidamente, para as 6) depois de uma noite inimaginável numa festa privada. Os silêncios estudados com que pontuou o relato desafiavam a nossa imaginação a completar o quadro de sensacional deboche que a escassez cirúrgica das suas informações sugeria. O local era incerto, tinha sido convidado por amigos de um amigo e sobre as mulheres o único comentário que estava em condições de fazer lia-se-lhe no olhar de beatitude pós-coital.

 

- Adoro essa cidade.

 

Antes de avançar, aproveito para dissertar sobre o carioca. Faltam-me as qualificações para tanto, mas se um carioca se aventurou a escrever sobre Budapeste sem nunca ter posto os pés na cidade, mais direito tenho eu para escrever sobre os cariocas visto que conheço alguns. Houve tempos em que o carioca era a flor espontânea, natural, das ruas do Rio, das suas esquinas, dos seus morros e dos seus botecos, filho predilecto e vagabundo do corpo úbere da cidade. Hoje, tudo mudou. Carioca deixou de ser essa graça fatal que recaía sobre os seus habitantes e transformou-se numa filosofia, lero-lero literário, mitificação do simples, gentrificação do outrora popular, apropriação do genuíno pelas forças normalizadoras da sociedade. Qualquer um pode adoptar esse conjunto de normas rígidas que prescrevem a informalidade, o à-vontade, a malandragem. Borges escreveu que o barroco “é aquele estilo que deliberadamente esgota (ou quer esgotar) as suas possibilidades e lida com a sua caricatura”. O carioca de hoje é uma declinação barroca do verdadeiro carioca: olheirento, falsamente festivo, mortificado pela obrigação de ser um carioca by the book, um Zé Carioca. Se pratica o ócio já não é com a despreocupação do ocioso mas com a consciência do funcionário. Tornou-se um amanuense do ócio. O carioca atual vive atormentado com o receio de falhar alguma deixa e não ser suficientemente carioca. Em compensação, de cada vez que se sente à altura dos pergaminhos cariocas suspira de alívio, como o trapezista que volta a tocar o chão. Para se ver a dimensão fracturante do drama hodierno, assevero que o carioca de hoje é tão angustiado como um russo ou um alemão, mas sem as condições culturais, meteorológicas e financeiras que, nesses países, fazem da angústia uma marca de distinção social e intelectual. Um europeu angustiado pode aspirar a qualquer cargo. Ao carioca angustiado só lhe resta emigrar. Uma vez no estrangeiro, todas as suas falhas enquanto carioca poderão ser atribuídas ao tempo já passado longe do Rio ou a uma subtil porém imparável aculturação. Libertado da pressão de ser carioca, o carioca volta a ser carioca, como aqueles amadores que só cantam bem desde que não tenham público.

 

Jantámos no Bordó, ali na Nagymezo Utca. A refeição serviu essencialmente para Laertes expor a estratégia que presidiria à nossa expedição noturna. Fez da mesa um estirador, desenrolou um imaginário mapa da cidade e, qual Rommel, mostrou-nos como iríamos conquistar o coração noturno de Budapeste. Informou-nos sobre estes planos a que teríamos de aderir de livre vontade ou movidos pela curiosidade de ver onde é que aquilo ia dar. Entre garfadas e goles bávaros de cerveja, pôs-nos a par das suas mais recentes considerações sobre a vida na capital húngara.

 

- Eu pensava que queria ser milionário mas quando cheguei a Budapeste percebi que quero é viver aqui para sempre.

 

E que atrativos justificariam esta paixão descontrolada, total, por uma cidade? As mulheres, claro.

 

- Saio de casa de manhã para comprar pão e quando volto já encontrei dez mulheres com quem podia passar o resto da minha vida.

 

Com Laertes o único tempo que existe é o para sempre, o resto da vida. É lícito concluir que, em Budapeste, o nosso poeta expatriado, transplantador da última flor do Lácio para as margens do Danúbio, encontrou finalmente um vislumbre da eternidade. E não foi o único.

 

- Você sabe quem mora em Budapeste? Rocco Sifredi, o próprio.

 

Rocco Sifredi, o papa do porno, o deus Príapo do entretenimento para adultos, tem residência oficial, de acordo com a informação de Laertes, em Budapeste. Para o poeta brasileiro, esta escolha suplanta qualquer ranking da OCDE, qualquer lista das 10 melhores cidades europeias para se viver.

 

Após o jantar, atravessámos a cidade rumo a um bar onde um pretenso grupo de luso-falantes iria comemorar o 25 de Abril. Queria ver como é que os húngaros se safavam a imitar o Seixal. Quando chegámos, em vez de uma multidão a festejar a liberdade encontrámos três ou quatro jovens a beber gins sem a mínima vocação festiva e um chinês de kung-fu que, de repente, saltou da balaustrada do primeiro piso e aterrou à nossa frente lançando-nos um olhar de desprezo marcial. Vinte minutos depois, enquanto tomávamos as nossas bebidas com a voz de Laertes como música de fundo, apareceram duas húngaras de olhos do mais danubiano azul que nos convidaram para a cave onde, segundo elas, decorria uma extraordinária festa com um fantástico DJ. Como a celebração do 25 de Abril estava a pedir uma autópsia, o nosso primeiro impulso foi seguir estas Dafnes magiares, mas logo o bom senso nos travou. Era mais provável acordarmos sem um rim do que num estupendo harém rodeados de concubinas. Terminadas as bebidas, e sem qualquer indício de celebração, saímos para a noite.

 

A noite é, para mim, um país estranho. Ao calcorrear as ruas de uma cidade desconhecida a altas horas da noite senti-me duplamente estrangeiro. Desse país agora distante, em que vivi momentos marcantes, fui-me afastando e alheando, já não como quem se afasta de um território mas de um tempo. As generosas dádivas de certas noites nunca atenuaram a crueldade das manhãs, não amorteciam a sua luz impiedosa nem a verdade insuportável da ressaca. Os hábitos das tribos noctívagas são-me tão estranhos e incompreensíveis como os de tribos canibais da Polinésia e pelos seus rituais nem sequer tenho um interesse antropológico. Como a animação noturna se globalizou, sinto-me igualmente exilado na noite lisboeta ou na noite de Budapeste: os mesmos cravas que se aprumam exageradamente antes de nos pedir um cigarro, as mesmas meninas de mini-saia desejosas de atenção mas incomodadas com olhares invasivos em danças de sedução repletas de códigos secretos e não-escritos, os mesmos grupos animados em que um dos elementos permanece um pouco à margem, incapaz de se atirar para a água e contente com os salpicos do divertimento alheio, os mesmos rapazes ancorados num bar e impacientes porque imaginam que, noutro sítio qualquer, a diversão é maior, as mesmas raparigas que, no final da noite, caminham trôpegas chorando por um imbecil.

 

A nossa noite pode ser resumida a uma tentativa falhada de encontrar a Xanadu da felicidade erótica ou as misteriosas cidades da vulva dourada onde estariam à nossa espera não 72 virgens, mas 720 ou 7200 húngaras esculturais, meigas e libidinosas que dariam razão à imortal frase de Laertes, que aconselho vivamente as autoridades a gravarem na Praça dos Heróis, ao lado da estátua de Arpad e onde haverá lugar para uma estátua de Rocco, o Sifredi:

 

- Cara, nessa cidade você só toca punheta de mão dada.

 

De bar em bar, o general Laertes de Souza arrastou as suas desmoralizadas tropas, prometendo-nos o quinhão maior dos despojos futuros. Após cada desilusão – quer no famoso Szimpla, quer em qualquer taberna por onde passámos – o nosso Moisés recobrava o ânimo e instava-nos a prosseguir a caminhada rumo à Terra da Promessa que, a cada esquina dobrada, parecia mais longe e inalcançável. Até que, vencidos pelo cansaço e pelo álcool, desistimos e regressámos ao hotel sem outra coisa para contar que não esse extraordinário cometa brasileiro em terras magiares.

 

O meu sábado em Budapeste foi dia de reflexão. Aproveitei a manhã livre para passear ao longo do rio e fotografar transeuntes, cruzei-me com turistas de várias nacionalidades, todos espanhóis, bebi um “espresso” num café onde escrevi parte desta crónica e comprei recuerdos para toda a família (t-shirts, globos de neve, puzzles, lápis de cor e matrioshkas com íman para o frigorífico que indignaram jovens turistas russas perplexas por se vender na Hungria um símbolo tão evidentemente russo; o rapaz da loja, se fosse mais inspirado, podia ter respondido “esgotaram-se os tanques em miniatura”, mas a ironia poderia escapar às longilíneas moscovitas.) À tarde, fomos levar o outro escritor português ao aeroporto, não sem antes termos devorado umas deliciosas espetadas de frango numa barraquinha perto do jardim zoológico. Regressámos ao centro da cidade àquela hora crepuscular perfeita para estes edifícios neo-clássicos, em que os amplos passeios e as avenidas largas se enchem de presenças fantasmagóricas e das memórias de cortejos festivos enquanto na penumbra e nas esquinas germinam conspirações e planos de revoltas destinadas a morrer à nascença, e no interior de um restaurante ainda com poucos clientes um carioca confessa aos nómadas o seu desejo irrefletido de viver para sempre em Budapeste.

27
Nov15

Decência

Bruno Vieira Amaral

(Li uma versão mais curta deste texto na cerimónia de entrega do Prémio Literário Fernando Namora, a 26 de Novembro de 2011)

 

No Discurso Sobre a Dignidade do Homem, Giovanni Pico della Mirandola escreveu assim:

“Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.”

Não é atrevimento da minha parte dizer que, neste excerto, em que Pico della Mirandola empresta as suas palavras a Deus, estão resumidos o drama e a glória da condição humana, o peso libertador do livre arbítrio, a responsabilidade que nos eleva, os abismos que nos tentam.

Um pouco mais adiante, Pico della Mirandola expressa o desejo de que “a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível.”

Nada havendo de reprovável neste desejo de que procuremos atingir as realidades superiores, ditas divinas, sempre me pareceu que o essencial da humanidade se jogava no plano inferior. Dito de forma mais clara: antes de pensarmos em ser anjos ou santos, importa saber como não degenerar em bestas. Basta um pouco de sensatez ou, em alternativa, conhecimentos empíricos de física, para se saber que cair é mais fácil do que subir, até porque a descer garantem-nos que mesmo os santos ajudam.

Pode parecer que uma ambição tão modesta implica uma censura do ideal, uma recomendação cautelosa para que o homem aceite, resignado, o seu lugar. O que me aborrece, porém, não é a existência do ideal, mas a crença absurda de que o podemos atingir sem que no processo destruamos parte da nossa humanidade.

Em No Castelo do Barba Azul, George Steiner afirmou que na origem do ressentimento contra os judeus estão “os três momentos em que a cultura ocidental se confronta com as “reivindicações do ideal”: o monoteísmo do Sinai, o cristianismo primitivo e o socialismo messiânico. O desafio que propõem é, resumidamente, este: “Supera-te a ti próprio. Transcende as barreiras de opacidade do espírito de modo a alcançares a abstracção pura. Perde a tua vida se a queres ganhar. Abandona as tuas posses, a tua condição, o teu bem-estar mundano. Ama o teu próximo como a ti mesmo. Sofre todos os sacrifícios, suporta todas as ofensas, sem esquecer a auto-acusação, de modo a que a justiça prevaleça” – no entendimento de Steiner, estes chamamentos diferentes porém com muitas afinidades obrigaram o homem, em vários momentos históricos, a cotejar-se negativamente com o ideal, como se a mera existência desse ideal significasse, desde logo, um rebaixamento da humanidade, um apoucamento desse estado intermédio que é o nosso. Acontece que encontramos exemplos de desumanidade não apenas naqueles que, impotentes perante o desafio de se transcenderem, procuraram destruir o ideal e quem o propôs, mas também em muitos daqueles que procuraram alcançá-lo. Quem fixa o olhar no ideal para o atingir pode ser tão desumano como aqueles que, humilhados pelo ideal, o tentaram destruir. Porque ambos, de olhos postos no ideal, esquecem-se de olhar para o humano.

Pensando nas grandes tragédias da humanidade, algumas das quais bem próximas de nós no tempo e na geografia, diria que o que falhou não foram homens que não souberam ser melhores, mas homens que não conseguiram evitar ser piores do que eram. O problema não estava nos degraus que os teriam conduzido à santidade, mas no buraco escondido debaixo dos seus pés. Sem rede, não conseguiram evitar a queda.

Ora, na minha opinião, essa rede de segurança tem nome. É uma virtude tão discreta que, em tempos felizes, é provável que nem reparemos nela. É nos tempos difíceis que vemos a falta que faz a simples e prosaica decência.

O pouco brilho da decência enquanto virtude é compreensível. Ela é uma espécie de serviços mínimos da moral. A decência, em tempos normais, não inspira feitos heróicos, ações grandiosas. Em tempos normais, pode até ser confundida com alguma obtusidade, com puritanismo, com decoro, com o escrúpulo nos costumes.

Mas o que é esta decência e por que é tão fundamental para definir a nossa humanidade?

A definição mais exata encontrei-a por acaso, quando já estava a escrever este texto. Alguém me mostrou um excerto de uma entrevista de Miguel Veiga, fundador do PPD, em que dizia o seguinte: “Tenho andado a trabalhar num conceito que é desconhecido em Portugal, ou pelo menos pouco praticado: a decência. É a tradução em calão português do maior conceito de cidadania anglo-saxónico, decency. Não vamos entrar no reino das nuvens, das grandes frases e da retórica. Uma das primeiras manifestações da decency é o trabalho competente. Aqui, quando se fala num tipo decente, é um tipo que lava as mãos ou outra coisa no bidé todos os dias. Um conceito de higiene física. Temos pouca gente decente em Portugal. É um dos falhanços do 25 de Abril, que trouxe tantas coisas, mas que nunca conseguiu criar um conceito de cidadania e de decência para a generalidade das pessoas.”

A decência é, pois, a virtude indispensável ao exercício da cidadania. Onde a decência reina sobra pouco espaço para a mitologia dos homens providenciais e dos salvadores da pátria. Quanto menos decente é uma sociedade mais precisa destas figuras excecionais que, de uma assentada, a redimam e encaminhem para a salvação.

Uma das vantagens da generalização da decência é que não é incompatível com a fruição de jardins privados de civilização e prazer. Aliás, garantida a decência de uma sociedade, os indivíduos são livres para investir nessa procura pessoal, já não visando a transcendência, mas aquilo a que chamamos, de forma burguesa, “realização pessoal.”

Individualista impenitente, confesso que o meu ideal de vida passa por entregar uma parte do meu tempo à sociedade para receber em troca a liberdade de que preciso para, na minha vida privada, procurar tudo aquilo que me dá prazer, alegria, conforto, felicidade. No fundo, procuro emular Dom Rigoberto, personagem célebre criada por Mario Vargas Llosa. Dom Rigoberto é funcionário de uma companhia de seguros, o que desde logo expõe o seu modo de vida burguês, sem turbulências. Ao mesmo tempo, este homem, na sua vida privada, procura os prazeres da cultura, da música, da arte, da literatura e também do corpo. A sua casa – com os seus livros, quadros e gravuras – é uma fortaleza, um refúgio contra a barbárie. Lê-se em O Herói Discreto: “Passar horas no seu pequeno espaço de civilização, protegido da barbárie, a contemplar as suas amadas gravuras, os livros de arte que abarrotavam a biblioteca, fazer a viagem anual à Europa com Lucrecia na primavera ou no Outono, ir a festivais, feiras de arte, visitar museus, fundações, galerias, voltar a ver aqueles quadros e esculturas mais queridos e a descobrir outros que incorporaria na sua pinacoteca secreta.” A barbárie de que aqui se fala não é a barbárie homicida dos fanatismos, não é a barbárie da violência e da guerra, é a barbárie do ruído do mundo e das suas frivolidades, é a barbárie da civilização do espectáculo, título de um livro de ensaios de Vargas Llosa.

Um homem decente pode fugir a esta barbárie quase inofensiva, refugiar-se no seu castelo pessoal, sem problemas de consciência. Dom Rigoberto, por exemplo, faz um acordo de contornos faustianos com a sociedade: dá o seu tempo em troca da sua alma, aceita um emprego burocrático desde que isso lhe permita criar um espaço privado de fantasia e liberdade, aonde não chega o braço do poder absoluto, dos totalitarismos de qualquer espécie. Mas sei que um tal egoísmo só é aceitável, só é possível, numa sociedade em que a decência seja generalizada.

Porém, há ocasiões em que a barbárie é real e ignorá-la procurando abrigo na normalidade intacta da vida privada é já uma capitulação, uma indecência. Até porque a barbárie, nas suas mais diversas formas, através dos totalitarismos de Estado e dos fanatismos religiosos, não distingue a vida pública da vida privada, não traça fronteiras entre as duas esferas. Essa distinção é em si um sintoma de civilização e decência.

A fortaleza de Dom Rigoberto só pode existir em sociedades onde o direito a construir refúgios não seja negado aos homens. Por isso, representa para mim um ideal de vida para tempos bonançosos. Já Bernard Rieux, o médico do romance A Peste, de Albert Camus, é o símbolo máximo da decência em tempos difíceis, em tempos de barbárie, em tempos da peste. Porque a peste não poupa ninguém, a sua ameaça estende-se a todos os homens, irrompe em todas as casas, entra em todos os quartos, deita-se em todas as camas.

É nesses tempos que a decência obriga a acção e, ao fazê-lo, evita que o homem degenere em besta. Tal como os ideais absolutos, a barbárie absoluta pode ser uma abstracção incompreensível para o homem comum mas, como se lê em A Peste, “quando a abstracção começa a matar-nos, é bem necessário que nos ocupemos da abstracção.” E Rieux, o médico, ocupa-se da abstracção com uma coragem serena mas inequívoca. Tendo a possibilidade de fugir da cidade sitiada pelo mal, prefere ficar ali para combater a peste, cuidar dos doentes, fazer o que pode. Não como um herói ou um santo, mas apenas como um homem decente para quem o essencial, mesmo perante o flagelo irreal da peste, “era exercer bem a sua profissão.”

A Peste, lê-se quase no fim, é “o testemunho do que tinha sido necessário realizar e que, sem dúvida, deveriam realizar ainda, contra o terror e a sua arma infatigável, a despeito das suas dores pessoais, todos os homens que, não podendo ser santos e recusando-se a admitir os flagelos, se esforçam, no entanto, por ser médicos.” Acrescento: os homens que, não podendo ser santos, sabem que a dignidade do homem está em não degenerar em besta. Os homens que percebem que, em circunstâncias semelhantes, optar pelo refúgio privado, fugir para o santuário pessoal a salvo da barbárie equivale a reconhecer o triunfo da barbárie porque esta triunfa sobre aqueles que pisa mas ainda mais sobre aqueles que se escondem, triunfa sobre aqueles que silencia mas ainda mais sobre aqueles que a si mesmos se silenciam.

São os homens que se esforçam por ser médicos, esses heróis sem heroísmo que enfrentam os maiores males apenas com o escudo da decência, que, no meio dos flagelos, nos ensinam essa lição simples e luminosa: há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar.” Nos homens, escreveu Camus. Não nos deuses, não nos santos, não nas bestas, mas nos homens. Aqueles que, em tempos de peste, escolhem a decência.

 

19
Nov15

Caminhando entre ruínas

Bruno Vieira Amaral

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Um certo escritor francês, daqueles cujo nome evoca passeios na Bretanha, aristocratas melancólicos e queijos, afirmou que todos os homens têm uma secreta adoração por ruínas. Porém, na época em que o visconde de Chateaubriand viveu, o fascínio pelas ruínas nada tinha de secreto. Era uma autêntica epidemia cultural. Poetas procuravam inspiração no meio dos escombros de capelas, filósofos extraíam daí os seus pensamentos crepusculares, pintores, como Caspar David Friedrich, faziam das ruínas um dos seus principais motivos.

Estes amadores de ruínas admiravam-lhes a honestidade absoluta. Ainda que possuidoras de um estranho magnetismo e de uma beleza devastada, as ruínas mostravam-lhes o que o tempo reserva às vãs construções do homem. Confrontados com a sua própria mortalidade encontravam nessa certeza um consolo paradoxal. Como escreveu o filósofo escocês Lord Kames, as ruínas afirmavam “o triunfo do tempo sobre a força, um pensamento melancólico mas nem por isso menos agradável.” Enquanto no género pictórico conhecido como vanitas – onde ecoavam as palavras do Eclesiastes, “vaidade das vaidades, tudo é vaidade” – os pintores utilizavam caveiras, frutos apodrecidos, relógios e instrumentos musicais para ilustrar a efemeridade da existência humana, os românticos contentavam-se com as ruínas. Para que os homens nunca se esquecessem da futilidade essencial da vida e aceitassem serenamente a sua condição mortal.

Esse reconhecimento de que nascemos para morrer nunca impediu o homem de negociar com o tempo e com a morte. Quando, no auge do romantismo, certos senhores mais abastados mandavam erguer nas suas vastas propriedades castelos já em ruínas, ruínas novinhas em folha, era já neste espírito de negociação com o tempo, de exorcismo do fantasma do futuro, que o faziam. Conscientes de que não se poderiam furtar aos efeitos do tempo, antecipavam-se-lhe, criando a ilusão de que o controlavam e podiam manipular a seu bel-prazer. Agiam como os homens que inventam para si mesmos genealogias ilustres: criavam um passado com os olhos postos no futuro.

O género de futurologia a que se dedicavam era infalível: bastava dizer que tudo acabaria em ruínas. A este ramo confortável da adivinhação dedicou-se, por exemplo, Sir John Soane, o responsável pelo projeto do edifício do Banco de Inglaterra. Juntamente com o projeto, apresentou três desenhos do edifício: acabado de construir, desgastado pelo tempo e, finalmente, em ruínas. Mas antes que o tempo pudesse aplicar o seu martelo, a parte mais importante do contributo de Soane foi demolida quando, em meados do século XX, o edifício foi reconstruído. Outro arquitecto que quis antecipar-se ao tempo foi o infame Albert Speer, o arquitecto do Nazismo. Foi ele o criador da Teoria do Valor Ruína, segundo a qual os edifícios construídos pelo III Reich deviam ser pensados, desde logo, como futuras ruínas e, para tal, era preferível a utilização de materiais nobres como a pedra e não de materiais mais modernos como o aço e o vidro. Como o legado mais visível dos impérios do passado eram os edifícios, Speer tinha a esperança que, dali a mil anos, o mundo ainda pudesse testemunhar a grandeza do Reich através das ruínas que lhe sobreviveriam. Nesta negociação, se assim lhe podemos chamar, havia uma arrogância de criador todo-poderoso. A exemplo de Sloane, Speer fez desenhos dos seus edifícios em ruínas, para provar a Hitler que nem mil anos de desgaste apagariam a herança do Führer. Hitler, que não podia ser acusado de não ser megalómano, aderiu à ideia como um moribundo a quem prometessem a eternidade. Mas o tempo, uma vez mais, mostrou-se intratável. Hoje, quando passaram perto de oitenta anos dos delírios de Speer, o que resta do palco do centro de congressos de Nuremberga que ele desenhou está coberto de vegetação. Tal como Speer imaginou, mas de uma forma mais célere do que desejava.

É nas ruínas deixadas pelos crimes de Hitler e do nazismo que se passeiam algumas personagens de W. G. Sebald, que alguns definem como o último escritor romântico. Os protagonistas de Sebald são como fantasmas a vaguear por um mundo que já não lhes pertence. Fantasmas que assombram não as ruínas de uma casa, mas de um continente inteiro. Há nos seus livros um interesse pelos vestígios de um mundo que desapareceu ou está em vias de desaparecer. Como o homem é um ser para a morte, Sebald entende que também certos edifícios são, pela sua dimensão desumana, objetos para a ruína: “a arquitectura habitacional abaixo do tamanho normal […] é aquela que exprime um vislumbre de paz, ao passo que ninguém no seu perfeito juízo dirá que um edifício grande como, por exemplo, o Palácio da Justiça de Bruxelas, no velho Monte da Forca, lhe agrada. Quando muito, fica-se espantado, e esse espanto é já de si uma forma antecipada do horror, pois de algum modo sabemos naturalmente que os edifícios ultradimensionados lançam já a sombra da sua destruição, concebidos que são desde a origem com vista a uma existência futura enquanto ruínas.” Nesta passagem do seu romance mais célebre, Austerlitz, concentra-se a filosofia de Sebald, a sua cosmovisão da perda. Homens, lugares, edifícios, fotografias estão todos sujeitos à erosão do tempo. Sebald é o cartógrafo desse lento desgaste da humanidade. Faz sentido falar dos seus romances como exercícios de reconstrução a partir dos escombros. Procedem, à distância de cinquenta anos, à reconstrução do indivíduo que saiu da segunda guerra mundial. Mais do que testemunhos do horror, são deambulações pelas ruínas da cultura, por uma terra devastada que guarda a cicatriz daquilo que já foi.

Neste romances, o tempo não transforma a natureza dos objetos e das pessoas, revela-a, porque a essência (o princípio degenerativo – a erosão da paisagem natural, a ruína dos espaços e o envelhecimento e a morte dos seres humanos) habita-os desde o primeiro momento. Foram concebidos para a decadência e para o esquecimento, e não para a glória e a salvação. Sebald responde ao que Kundera chama, em A Arte do Romance, o apelo do tempo: “o romancista deixa de limitar a questão do tempo ao problema proustiano da memória pessoal [e] a alargá-lo ao enigma do tempo coletivo, do tempo da Europa, a Europa que se volta para olhar o seu passado, para fazer o seu balanço, para aprender a história, tal como um homem velho que abarca com um único olhar a sua própria vida decorrida.” Ao caminhar entre as ruínas, o herói de Sebald procura o mundo que se desvaneceu porque na decifração desse mundo está a chave da sua identidade. E tal como o Palácio da Justiça em Bruxelas contém a semente do seu próprio fim, também a fotografia de Austerlitz em criança carrega tudo o que lhe há de acontecer. No rosto daquela criança já está inscrita a marca irrevogável da morte e do esquecimento.

E a verdade é que não há ruínas mais comoventes do que os rostos. É por essa razão que a série de fotografias tiradas ao longo de 40 anos às irmãs Brown nos emociona tanto. Servem-nos de espelho. Fazemos o percurso que vai das promessas da juventude à sabedoria da idade, sentimos a dor do avanço do tempo e, por fim, acedemos à beleza e à sabedoria. Sabedoria que, por exemplo, encontramos no expressivo e monumental rosto de Samuel Beckett. Nele, tudo é ruína exceto o olhar, de uma vivacidade inquietante. Devemos então acreditar que há em nós um lugar a salvo do tempo e dos seus efeitos? Se acreditássemos nessa possibilidade então tudo o que as ruínas teriam para nos ensinar seria a arte da desesperança. Se acreditássemos num paraíso inviolado, imune à ruína e à erosão, então o fascínio que as ruínas exercem em nós seria meramente estético e o seu valor pouco mais que pornográfico.

Quero acreditar que o nosso fascínio pelas ruínas não se explica apenas pelas lições existenciais e históricas que encerram ou pela sua fealdade bela; que não nos servem apenas de medida do tempo, como defendia Chateaubriand; que contam mais do que a brevidade certa da existência. Haverá um núcleo secreto que nos atrai irresistivelmente para as ruínas e nesse núcleo encontraremos as histórias. Percebe-se melhor a ideia se compararmos as ruínas a certos edifícios, como o palácio de Bruxelas de que falava Sebald, cuja frieza e monumentalidade são desumanas, não só porque se projetam para um futuro que já não iremos testemunhar mas porque lhes faltam as histórias que os humanizem. Essas histórias que só as ruínas podem contar dizem-nos que é possível reconstruir o mundo a partir dos escombros. Ao tempo do lamento e da meditação melancólica pelo que se perdeu, sucede-se o tempo da certeza feliz de que depois de nós virão outros, depois das nossas histórias outras histórias, depois das ruínas um novo mundo.

 

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