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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

27
Nov15

Decência

Bruno Vieira Amaral

(Li uma versão mais curta deste texto na cerimónia de entrega do Prémio Literário Fernando Namora, a 26 de Novembro de 2011)

 

No Discurso Sobre a Dignidade do Homem, Giovanni Pico della Mirandola escreveu assim:

“Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo.”

Não é atrevimento da minha parte dizer que, neste excerto, em que Pico della Mirandola empresta as suas palavras a Deus, estão resumidos o drama e a glória da condição humana, o peso libertador do livre arbítrio, a responsabilidade que nos eleva, os abismos que nos tentam.

Um pouco mais adiante, Pico della Mirandola expressa o desejo de que “a nossa alma seja invadida por uma sagrada ambição de não nos contentarmos com as coisas medíocres, mas de anelarmos às mais altas, de nos esforçarmos por atingi-las, com todas as nossas energias, desde o momento em que, querendo-o, isso é possível.”

Nada havendo de reprovável neste desejo de que procuremos atingir as realidades superiores, ditas divinas, sempre me pareceu que o essencial da humanidade se jogava no plano inferior. Dito de forma mais clara: antes de pensarmos em ser anjos ou santos, importa saber como não degenerar em bestas. Basta um pouco de sensatez ou, em alternativa, conhecimentos empíricos de física, para se saber que cair é mais fácil do que subir, até porque a descer garantem-nos que mesmo os santos ajudam.

Pode parecer que uma ambição tão modesta implica uma censura do ideal, uma recomendação cautelosa para que o homem aceite, resignado, o seu lugar. O que me aborrece, porém, não é a existência do ideal, mas a crença absurda de que o podemos atingir sem que no processo destruamos parte da nossa humanidade.

Em No Castelo do Barba Azul, George Steiner afirmou que na origem do ressentimento contra os judeus estão “os três momentos em que a cultura ocidental se confronta com as “reivindicações do ideal”: o monoteísmo do Sinai, o cristianismo primitivo e o socialismo messiânico. O desafio que propõem é, resumidamente, este: “Supera-te a ti próprio. Transcende as barreiras de opacidade do espírito de modo a alcançares a abstracção pura. Perde a tua vida se a queres ganhar. Abandona as tuas posses, a tua condição, o teu bem-estar mundano. Ama o teu próximo como a ti mesmo. Sofre todos os sacrifícios, suporta todas as ofensas, sem esquecer a auto-acusação, de modo a que a justiça prevaleça” – no entendimento de Steiner, estes chamamentos diferentes porém com muitas afinidades obrigaram o homem, em vários momentos históricos, a cotejar-se negativamente com o ideal, como se a mera existência desse ideal significasse, desde logo, um rebaixamento da humanidade, um apoucamento desse estado intermédio que é o nosso. Acontece que encontramos exemplos de desumanidade não apenas naqueles que, impotentes perante o desafio de se transcenderem, procuraram destruir o ideal e quem o propôs, mas também em muitos daqueles que procuraram alcançá-lo. Quem fixa o olhar no ideal para o atingir pode ser tão desumano como aqueles que, humilhados pelo ideal, o tentaram destruir. Porque ambos, de olhos postos no ideal, esquecem-se de olhar para o humano.

Pensando nas grandes tragédias da humanidade, algumas das quais bem próximas de nós no tempo e na geografia, diria que o que falhou não foram homens que não souberam ser melhores, mas homens que não conseguiram evitar ser piores do que eram. O problema não estava nos degraus que os teriam conduzido à santidade, mas no buraco escondido debaixo dos seus pés. Sem rede, não conseguiram evitar a queda.

Ora, na minha opinião, essa rede de segurança tem nome. É uma virtude tão discreta que, em tempos felizes, é provável que nem reparemos nela. É nos tempos difíceis que vemos a falta que faz a simples e prosaica decência.

O pouco brilho da decência enquanto virtude é compreensível. Ela é uma espécie de serviços mínimos da moral. A decência, em tempos normais, não inspira feitos heróicos, ações grandiosas. Em tempos normais, pode até ser confundida com alguma obtusidade, com puritanismo, com decoro, com o escrúpulo nos costumes.

Mas o que é esta decência e por que é tão fundamental para definir a nossa humanidade?

A definição mais exata encontrei-a por acaso, quando já estava a escrever este texto. Alguém me mostrou um excerto de uma entrevista de Miguel Veiga, fundador do PPD, em que dizia o seguinte: “Tenho andado a trabalhar num conceito que é desconhecido em Portugal, ou pelo menos pouco praticado: a decência. É a tradução em calão português do maior conceito de cidadania anglo-saxónico, decency. Não vamos entrar no reino das nuvens, das grandes frases e da retórica. Uma das primeiras manifestações da decency é o trabalho competente. Aqui, quando se fala num tipo decente, é um tipo que lava as mãos ou outra coisa no bidé todos os dias. Um conceito de higiene física. Temos pouca gente decente em Portugal. É um dos falhanços do 25 de Abril, que trouxe tantas coisas, mas que nunca conseguiu criar um conceito de cidadania e de decência para a generalidade das pessoas.”

A decência é, pois, a virtude indispensável ao exercício da cidadania. Onde a decência reina sobra pouco espaço para a mitologia dos homens providenciais e dos salvadores da pátria. Quanto menos decente é uma sociedade mais precisa destas figuras excecionais que, de uma assentada, a redimam e encaminhem para a salvação.

Uma das vantagens da generalização da decência é que não é incompatível com a fruição de jardins privados de civilização e prazer. Aliás, garantida a decência de uma sociedade, os indivíduos são livres para investir nessa procura pessoal, já não visando a transcendência, mas aquilo a que chamamos, de forma burguesa, “realização pessoal.”

Individualista impenitente, confesso que o meu ideal de vida passa por entregar uma parte do meu tempo à sociedade para receber em troca a liberdade de que preciso para, na minha vida privada, procurar tudo aquilo que me dá prazer, alegria, conforto, felicidade. No fundo, procuro emular Dom Rigoberto, personagem célebre criada por Mario Vargas Llosa. Dom Rigoberto é funcionário de uma companhia de seguros, o que desde logo expõe o seu modo de vida burguês, sem turbulências. Ao mesmo tempo, este homem, na sua vida privada, procura os prazeres da cultura, da música, da arte, da literatura e também do corpo. A sua casa – com os seus livros, quadros e gravuras – é uma fortaleza, um refúgio contra a barbárie. Lê-se em O Herói Discreto: “Passar horas no seu pequeno espaço de civilização, protegido da barbárie, a contemplar as suas amadas gravuras, os livros de arte que abarrotavam a biblioteca, fazer a viagem anual à Europa com Lucrecia na primavera ou no Outono, ir a festivais, feiras de arte, visitar museus, fundações, galerias, voltar a ver aqueles quadros e esculturas mais queridos e a descobrir outros que incorporaria na sua pinacoteca secreta.” A barbárie de que aqui se fala não é a barbárie homicida dos fanatismos, não é a barbárie da violência e da guerra, é a barbárie do ruído do mundo e das suas frivolidades, é a barbárie da civilização do espectáculo, título de um livro de ensaios de Vargas Llosa.

Um homem decente pode fugir a esta barbárie quase inofensiva, refugiar-se no seu castelo pessoal, sem problemas de consciência. Dom Rigoberto, por exemplo, faz um acordo de contornos faustianos com a sociedade: dá o seu tempo em troca da sua alma, aceita um emprego burocrático desde que isso lhe permita criar um espaço privado de fantasia e liberdade, aonde não chega o braço do poder absoluto, dos totalitarismos de qualquer espécie. Mas sei que um tal egoísmo só é aceitável, só é possível, numa sociedade em que a decência seja generalizada.

Porém, há ocasiões em que a barbárie é real e ignorá-la procurando abrigo na normalidade intacta da vida privada é já uma capitulação, uma indecência. Até porque a barbárie, nas suas mais diversas formas, através dos totalitarismos de Estado e dos fanatismos religiosos, não distingue a vida pública da vida privada, não traça fronteiras entre as duas esferas. Essa distinção é em si um sintoma de civilização e decência.

A fortaleza de Dom Rigoberto só pode existir em sociedades onde o direito a construir refúgios não seja negado aos homens. Por isso, representa para mim um ideal de vida para tempos bonançosos. Já Bernard Rieux, o médico do romance A Peste, de Albert Camus, é o símbolo máximo da decência em tempos difíceis, em tempos de barbárie, em tempos da peste. Porque a peste não poupa ninguém, a sua ameaça estende-se a todos os homens, irrompe em todas as casas, entra em todos os quartos, deita-se em todas as camas.

É nesses tempos que a decência obriga a acção e, ao fazê-lo, evita que o homem degenere em besta. Tal como os ideais absolutos, a barbárie absoluta pode ser uma abstracção incompreensível para o homem comum mas, como se lê em A Peste, “quando a abstracção começa a matar-nos, é bem necessário que nos ocupemos da abstracção.” E Rieux, o médico, ocupa-se da abstracção com uma coragem serena mas inequívoca. Tendo a possibilidade de fugir da cidade sitiada pelo mal, prefere ficar ali para combater a peste, cuidar dos doentes, fazer o que pode. Não como um herói ou um santo, mas apenas como um homem decente para quem o essencial, mesmo perante o flagelo irreal da peste, “era exercer bem a sua profissão.”

A Peste, lê-se quase no fim, é “o testemunho do que tinha sido necessário realizar e que, sem dúvida, deveriam realizar ainda, contra o terror e a sua arma infatigável, a despeito das suas dores pessoais, todos os homens que, não podendo ser santos e recusando-se a admitir os flagelos, se esforçam, no entanto, por ser médicos.” Acrescento: os homens que, não podendo ser santos, sabem que a dignidade do homem está em não degenerar em besta. Os homens que percebem que, em circunstâncias semelhantes, optar pelo refúgio privado, fugir para o santuário pessoal a salvo da barbárie equivale a reconhecer o triunfo da barbárie porque esta triunfa sobre aqueles que pisa mas ainda mais sobre aqueles que se escondem, triunfa sobre aqueles que silencia mas ainda mais sobre aqueles que a si mesmos se silenciam.

São os homens que se esforçam por ser médicos, esses heróis sem heroísmo que enfrentam os maiores males apenas com o escudo da decência, que, no meio dos flagelos, nos ensinam essa lição simples e luminosa: há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar.” Nos homens, escreveu Camus. Não nos deuses, não nos santos, não nas bestas, mas nos homens. Aqueles que, em tempos de peste, escolhem a decência.

 

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