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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

16
Mai17

A Voz de um Homem

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Outubro de 2016:

Há uns anos, sete, caso haja entre vós um adepto da precisão, ofereceram-me um livro, uma escandalosa biografia, devidamente inautorizada, de Marlon Brando. O título em português era faceto: Brando mas pouco. Podia sugerir um louco, um furioso, um demente: “vejam como este homem de brandura nominal é, afinal, um selvagem de pleno direito.” O título original era mais específico: Brando Unzipped. Eu, agradecido pelo presente, espreitei escrupulosamente para a braguilha aberta do actor. Ao fim de cento e cinquenta páginas sentia-me exausto pela sucessão de orgias, taras, bizarrias e bestialidade. A única personagem merecedora de compaixão era um pato alegadamente sodomizado por uma celebridade, talvez o próprio Brando, já não sei. Perdoem-me a inexactidão mas apaguei da memória certos pormenores. Há um limite para lá do qual o escândalo se torna desinteressante e o relato de um bacanal pode ser tão soporífero como certas páginas de Viagem a Itália, de Goethe.

O homem ali retratado era plano e superficial, apenas corpo. Uma máquina sôfrega e, apesar das múltiplas variáveis sexuais, quase sem imaginação. É verdade que, nos filmes, Brando era corpo, aquela masculinidade intensa e ameaçadora, o género de homem por quem uma irmãzinha imaculada renunciaria alegremente aos votos de castidade. Mas, claro, era muito mais do que isso. Era também uma vulnerabilidade que, antes dele, não se associava aos machos de Hollywood. Dizem que foi Stella Adler, a professora de representação e discípula de Constantin Stanilavsky (o Rasputine do Método), quem trouxe à superfície esse núcleo de fragilidade, essa, digamos, verdade masculina, inédita em cinema. É possível, mas prefiro acreditar que, no momento em que Brando chegou a Nova Iorque, já trazia com ele os fundamentos da sua futura grandeza: a revolta latente misturada com uma necessidade absoluta e tristíssima de consolo. “I coulda been a contender”: quem, a não ser Brando, poderia assumir tão clamorosa e triunfalmente o fracasso?

Bem, regresso ao tal livro que, por uma questão de higiene e sanidade, abandonei a meio. Não duvidando da veracidade dos factos ali relatados, concluí que não me interessavam. Culpa minha? Culpa do autor do livro? Culpa do próprio Brando? Mistérios que não me preocupei em decifrar. Então, sete anos depois, no dia do meu trigésimo oitavo aniversário, a minha mulher ofereceu-me um DVD, “Listen to me Marlon”, um documentário sobre o actor (o livro também me tinha sido oferecido pela minha mulher quando ainda namorávamos, se me é permitido o arcaísmo). O tempo passou e o objecto permaneceu intacto, envolto no plástico protector, em cima da estante. Até que, semanas atrás, num dessas inspirações súbitas contra a rotina que animam regularmente a vida familiar, declarei: “hoje vamos ver um filme!” A declaração foi recebida com contentamento pela minha mulher e a condescendência infantil da minha filha. O meu benjamin, de quinze meses, continuou absorto na tarefa de mastigar toalhitas.

Quando finalmente conseguimos adormecer as crianças, sentámo-nos e, durante uma hora e meia, fomos reféns da voz de Brando, dos seus sonhos de tranquilidade e do duro despertar das tragédias, do refúgio que procurou no Taiti, essa ilha para onde também o pintor Paul Gauguin tinha fugido e onde o mundo de Brando ruiu, da relação magoada com o pai e desse momento assombroso em que, em tribunal, na presença de um juiz, Brando reconhece que ele próprio terá falhado enquanto pai. Sem cabeças falantes, apenas com recurso às inúmeras gravações áudio deixadas pelo actor e a imagens de arquivo, o filme leva-nos na esteira daquela voz que, de início, se confunde com a voz das múltiplas personagens que Brando encarnou (a voz de Stan Kowalski, a voz de Terry Malloy, a voz de don Vito Corleone, a voz do coronel Kurtz). Perto do final, pressentimos que a voz é a de um homem, um só homem, e que esse homem ainda é um menino, um menino que caminha no escuro e tenta domar as trevas com a luz débil dessa voz. A voz de Marlon Brando, Jr.

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