Publicado na GQ
No dia em que me casei pela primeira vez caiu uma chuvada bíblica que, a ser verdade o que dizem os supersticiosos, teria abençoado aquela união por mais de um século. Este é o primeiro ensinamento útil para o jovem noivo: as condições meteorológicas adversas podem atrapalhar a cerimónia mas não garantem a felicidade eterna, a não ser que a eternidade esteja pela hora da morte e já não ultrapasse os três anos e dez meses.
Tenho de agradecer à minha madrinha de casamento o empenho na escolha do fato e dos sapatos (os mais caros que, não sem remorso, alguma vez comprei) mas nunca lhe perdoarei o ter-me obrigado a fazer uma limpeza facial nos dias que antecederam a cerimónia. O noivo deve estar apresentável e, se lhe for possível, deve evitar comparecer na cerimónia com ar de playboy hondurenho com sífilis, o que acontecerá se tiver a infeliz ideia de sair diretamente da despedida de solteiro num obscuro clube de strip para uma igreja toda iluminada. Tudo o que esteja para além desses cuidados mínimos causará nos convidados a impressão desconfortável de haver duas noivas. O fato deverá ser inconspícuo e a utilização de colete apenas é autorizada se o perímetro abdominal do noivo não o fizer parecer um pinguim suicida. Se o confundirem com outro convidado ou com um empregado de mesa, é sinal de que a escolha da indumentária foi acertada.
Por falar em convidados, a tarefa de os selecionar é bem mais espinhosa do que poderá parecer à partida. Normalmente a questão resolve-se delegando aos pais dos noivos – os mecenas da cerimónia – essa missão que eles, em função do orçamento, abraçam com agrado, convidando parentes há muito esquecidos, algumas pessoas lá da terra e uma ou outra vizinha cuja única credencial é o facto de ter andado “com este menino ao colo.” Listas mais selectivas podem originar conflitos diplomáticos que só serão sanados no próximo funeral. É avisado não deixar de fora tias com conhecimentos de bruxaria, mau-olhado e enguiços.
Encontra-se com facilidade qualquer empresa que, a troco de uma módica quantia, elabora os convites, desde os mais sofisticados que, quando abertos, tocam a marcha nupcial, e com os nomes dos noivos e dos respetivos pais em relevo dourado, aos mais simples e espartanos. Sei de um caso em que os convites foram feitos por uma associação de crianças portadoras de deficiência, o que, à primeira vista, me levou a pensar que estava a ser convidado para uma exposição de arte moderna. Não sei de quem terá partido a brilhante ideia, mas os convites do meu casamento foram feitos por nós. Comprámos os materiais – papel, espigas e UHU – e dedicámos horas irrecuperáveis da nossa existência a fazer convites que qualquer criança de seis anos teria feito com maior proficiência.
Outro assunto muitas vezes menosprezado é o do fotógrafo. Algumas das mais pavorosas fotografias que conheço foram tiradas em casamentos. Basta passar pela montra de um fotógrafo e reparar nas aberrações luzidias, gordurosas e sorridentes que expõem inapelavelmente a miséria e o grotesco que pode haver na felicidade. O meu conselho é que optar pelo outro extremo – o fotógrafo de casamentos que se julga um Herb Ritts – pode ser igualmente desastroso. Entre o kitsch e o arty tem de haver uma solução e é provável que a encontrem numa rua de Odivelas.
Aqui chegados, é de suma importância sublinhar um facto preponderante: caro jovem noivo, a cerimónia em que desempenharás um omnipresente papel secundário destina-se, em primeiro lugar e acima de tudo, a satisfazer a noiva e os pais dela. É teu dever assegurar que todas as decisões tomadas são do seu agrado, mas sem nunca demonstrares apatia. É importante, eu diria fundamental, que dês alguma luta, que os sogros sintam que a opção pela mesa de queijos foi um triunfo, que a contratação daquele formidável músico de fim de semana foi uma conquista. Não te importes de fazer de derrotado. Se almejares uma felicidade duradoura, este conselho ser-te-á muito útil, não só para o dia do casamento como para o resto da vida a dois.
Mostra alguma relutância em relação às sugestões deles, mas não com tanta convicção que pensem que tens uma alternativa. Deixa vincado que, por ti, por exemplo, não haveria mesa de mariscos ou que tens dúvidas em relação à decoração, mas que estás disposto a fazer essas concessões em nome da felicidade geral. E assim, participando ativamente no processo mas nunca te comprometendo com nada, pedindo esclarecimentos sobre pormenores e preços como se isso te importasse, as decisões vão sendo tomadas de forma indolor e sem que, mais tarde, alguém te possa pedir responsabilidades se algo correr mal.
Com isto em mente, nunca compres uma guerra por causa da escolha musical. No teu íntimo, podes acalentar o sonho de um copo de água ao som dos Pearl Jam, dos Soundgarden, da fase mais deprimente dos Radiohead ou do “Hallelujah” do Cohen, mas essa é uma fantasia de que deves abdicar alegremente. No casamento, o “povo” – essa ideia que só conheces dos livros da Raquel Varela e do que estudaste sobre a Revolução Francesa – estará materializado no corpo volumoso daquele tio que não terá sossego enquanto não liderar a marcha ferroviária do “Apita o Comboio” e anunciar com todo o entusiamo alcoólico que gosta de chupar os peitos da cabritinha. Não penses que isto desprestigia a festividade. Isto é a festividade.
Porém, nem um repertório do nosso cancioneiro pimba te desobriga da mais ingrata das tarefas, que é a abertura da pista ao som de uma valsa delirantemente executada num Roland U-20 pelo organista eléctrico acompanhado pela irmã, geralmente uma Rosa com astigmatismo. Aconselho-te a não cometeres o erro que cometi, que foi dançar de forma intimista e rígida ao som de uma canção “que nos dizia muito”. Aquele não é momento para intimidades, é o momento para profissionais. Se, como a mim, Deus não te deu o dom da dança, frequenta umas aulas e reza por inspiração divina para que os convidados não fiquem a pensar que sofres de alguma doença degenerativa.
Apesar de todos os avanços da ciência gastronómica, da miríade de programas de culinária, da fama excessiva dos novos chefs, da cultura gourmet, das vieiras coradas em óleo de avelã, dos crumbles de tomate seco, dos pratos minimalistas, lembra-te que uma festa de casamento é uma celebração boçal da quantidade, da abundância e do excesso. Os teus convidados, mesmo os de compleição mais delicada, esperam cascatas de camarão, cordilheiras de queijos, enxurradas de doces, lascas gargantuescas de presunto, frutas como nem em Canaã. Não esperes que exibam o comportamento moderado do connoisseur. Prepara-te para uma nuvem de gafanhotos esfaimados e não ficarás desiludido. No final as mesas parecerão ter sido varridas por um ciclone e deverás alegrar-te com isso.
Daí que a mesa de queijos, aparentemente uma questão menor, seja tão importante. Se houver mesa de queijos, é provável que muitos passem por ela sem prestar atenção; mas se não houver mesa de queijos, todas as conversas no regresso a casa apontarão com desconsolo e amargura essa falha imperdoável. Uma seleção frugal de queijos de qualidade poderá fazer sentido em certos meios calvinistas, mas sugiro que optes por uma opípara mesa de queijos, muralhas de Roquefort, toneladas de Camembert, pirâmides de Brie e um queijinho de Nisa em honra do produto nacional. Se fores um leigo na matéria ficarás surpreendido, como eu fiquei, com a variedade de queijos que o ser humano, ao longo de milénios de civilização e pastorícia, foi inventando, e isto sem um departamento de inovação e desenvolvimento a dar dicas (“agora vamos experimentar este com ervas”, “temos de ver se o mercado está receptivo a estes odores mais fortes”).
O momento mais solene da cerimónia, mas que exigirá de ti e da tua mulher uma falsa descontração, é aquele em que percorrem as mesas, agradecendo a presença dos convidados, oferecendo-lhes charutos, garrafinhas de vinho do Porto e aquilo (seja lá o que for) que nestas ocasiões se oferece às senhoras, perguntando-lhes circunstancialmente se está tudo bem e criando o ambiente propício à recolha do dízimo. Deves evitar olhar gulosamente para o envelope e, se tiveres lata para isso, podes dizer que não era necessário e que nada te deixa mais satisfeito do que a presença deles naquele dia tão especial. Ao mesmo tempo, deves aprender a disfarçar a desilusão quando, no lugar de um envelope, um familiar mais antiquado vos presentear com um serviço de chá, uma batedeira ou um decantador. Para o caso de não saberes, informo-te que o casamento é um excelente negócio e que não será um liquidificador ou um conjunto de toalhas de casa de banho a impedir um lucro considerável não sujeito (por enquanto) a impostos.
A cerimónia aproxima-se do fim e, em circunstâncias normais, estarão ambos exaustos. Alguns resistentes, vergonhosamente embriagados, voltejam pela pista, descoordenados e confusos, domados à distância pelos olhares severos das esposas. É bom que tu, jovem noivo, não estejas em semelhantes condições. Mas pior do que um noivo desgraçadamente bêbado é um noivo inflexivelmente sóbrio. Bebe o suficiente para te desinibires, mas não regridas a um estado só aceitável para quem tem 18 anos e está num hotel de terceira categoria em Torremolinos.
E agora está na hora de abandonarem com elegância o recinto, acenando adeuses discretos e recebendo em troca olhares maliciosos que vos empurram para o leito legítimo onde os vossos corpos, mais do que prazeres escandalosos, experimentarão a paz do repouso merecido. Poupem as acrobacias e o sexo aeróbico para a lua de mel e, para onde quer que vão, guardem lugar para esta pérola de sabedoria da poeta Adília Lopes: "Um dia estava no café e ouvi dois rapazes a conversar, um deles, casado há pouco tempo, dizia que a lua de mel tinha de ser no Egipto ou no México. Deu-me vontade de rir porque acho possível passar uma lua de mel inesquecível na Praça da Figueira". Eu, que passei a lua de mel na Régua, garanto-te que assim é.