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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

18
Set17

As manhãs são mais perversas do que as noites

Bruno Vieira Amaral

Pequeno-almoço no hotel. Mesa redonda para seis pessoas ocupada por três, casal de meia-idade e a filha a caminho do final da adolescência. Cruzo-me com a rapariga que leva um prato com pedacinhos de melancia e abacaxi. Cedo-lhe passagem no corredor apinhado, trocamos um olhar rápido de cortesia. Não é o olhar que um homem e uma mulher trocariam porque ela, não sendo inocente – não há inocentes neste mundo –, ainda não conhece o pecado a ponto de o desejar ou temer. “Um dia também eu irei pecar” (é o que ela diz ou eu oiço), pensamento que lhe acode ao espírito sem pressa nem excessiva convicção, sem entusiasmo nem temor, como quem pensa “um dia estarei aqui como hoje estão os meus pais.” A mãe é alta, bonita, arranjada e com certas marcas do tempo que na mulher madura não são apenas admissíveis mas desejáveis. O marido, esse, grisalho e anafado, parece um urso doméstico ou um corpulento e preguiçoso cão de guarda. Falta-lhe a competição interna no corpo de um filho varão. Sem esse acicate, a sua virilidade foi lentamente suavizada. A filha, esqueci-me de dizer, não é muito bonita e, como não conhece o pecado nem o deseja, ainda não tem vaidade. A vaidade é prerrogativa da mãe que, palpito, continuará a ofuscar a filha durante muitos anos e será uma preciosa fonte de angústia para o futuro genro. Estão os três a olhar para os respectivos telemóveis. É sábado de manhã, o céu está limpo e não há nada que se compare à perversidade latente de uma família normal.

15
Set17

Fernanda Borsatti

Bruno Vieira Amaral

Há actores que precisam de uma voz extraordinária, de saber dançar, de mil e um talentos, gente versátil que faz comédia e drama, e há outros que nascem actores mesmo que nunca venham a pisar um palco, a ter uma câmara apontada na sua direcção. Têm presença e carisma. Vejam, presença e carisma remetem para o religioso e haverá nessas pessoas algo de original, de arquetípico e de irredutivelmente estranho, como nas efígies quase irreconhecíveis de moedas recuperadas por arqueólogos. São pessoas cujos rostos se gravam na nossa memória, que nos inquietam como se contivessem uma qualquer qualidade essencial e terrível. Peçam-me para dizer uma personagem memorável que Fernanda Borsatti tenha representado e tenho de confessar que não sei. Mas aquela cara tinha em si todas as Ifigénias, Antígonas, Ladies Macbeth, Cleópatras, era uma cara contemporânea de todas as tragédias do passado. Faltava-lhe a beleza previsível e banal da burguesia, indispensável a certos papéis delicados e esquecíveis, mas, como escreveu Agustina, “certa beleza da burguesia é vulgar e não [vale] os atávicos defeitos duma raça”. Diz-se que o rosto e as suas linhas contam a história do indivíduo. O de Fernanda Borsatti contava a história de impérios desaparecidos, de linhagens moribundas e persistentes, não importa quais.

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08
Set17

A Ressurreição dos Gatos

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Março de 2017

 

Quando eu era pequeno, quatro ou cinco anos, à noite a minha mãe lia-me histórias da Bíblia. Entre as muitas histórias – da arca de Noé aos padecimentos de Jó, da mula de Balaão à aventura de Jonas a caminho de Nínive, do desgosto de Moisés às portas da Terra Prometida à destruição das muralhas de Jericó – recordo-me de duas sobre ressurreições. Na verdade, lembro-me de três, mas a história da ressurreição de Jesus era outra coisa, era o próprio fundamento da divindade de Cristo. As outras eram mais prosaicas – tão prosaicas quanto um milagre pode ser. A mais conhecida é a de Lázaro, irmão de Marta. Quatro dias após a morte de Lázaro, Jesus chega ao sepulcro e, apesar de o cadáver deitar cheiro – e como eu consigo sentir o odor da putrefacção do corpo que mais não é do que um conjunto de palavras num livro sagrado ainda me impressiona –, ordena-lhe que se levante e ande e Lázaro, amortalhado, regressa atónito à luz do dia, ao mundo dos vivos (lembram-se da cena do filme Inteligência Artificial quando os extra-terrestres concretizam o desejo do menino robô de rever a mãe, do estado em que a mãe desperta desse sono de séculos?).

A outra história era a da filha de Jairo. Este pede a Jesus que cure a filha. O estado da menina é grave. Mas, a caminho da casa de Jairo, Jesus é interpelado por uma mulher que sofre de hemorragias. Entretanto, a filha de Jairo acaba por morrer. Ao chegar ao local, Jesus encontra os familiares a chorar a morte da menina, mas diz-lhes que não se devem preocupar porque ela apenas dorme. Entra no quarto e diz-lhe: “Talita, cumi” ou “Menina, levanta-te.” É um episódio interessante porque Jesus, em vez de tirar partido do milagre, parece querer convencer os familiares de que a menina não tinha morrido.

Mais de trinta anos após esses tempos em que a minha mãe me lia histórias bíblicas, agora é a minha vez de ler à minha filha contos de fadas, histórias da carochinha. Nestes contos há muitas mortes mas também há, pelo menos, duas ressurreições – a da Bela Adormecida e a da Branca de Neve. Eu e a minha mulher discutimos sobre a forma adequada de ler as histórias: deveríamos ou não dizer que tinham morrido? Seria melhor dizer que estavam apenas a dormir, como Jesus disse aos parentes de Jairo? Como alguém na escolinha lhe tinha dito que as pessoas, quando morrem, vão para o céu, eu mantive a versão, embora garantindo que quer a Branca de Neve, quer a Bela Adormecida, não tinham ido para o céu. Mas, no fim, ambas as personagens acabam por se levantar e andar, ressuscitadas pelo milagre do amor anunciado. Tudo acaba bem.

Semanas depois, ao ler-lhe a história de uma toupeira que queria agarrar a lua, a minha filha disse-me que sabia onde era a lua, era o sítio onde estava a mãe da avó Fátima. Não a contrariei. Sim, talvez os mortos vão para a lua e o céu seja apenas um deserto de estrelas. E, acrescentou a minha filha, era também na lua que estava o “gato morrido”. Uns tempos antes, ao sairmos de casa, deparámo-nos com um gato morto junto ao nosso carro. A minha filha quis tocar-lhe porque enquanto eu via um gato morto, com um fio de sangue na boca, ela via um gato deitado, a dormir pacificamente. Sem pensar, disse-lhe: “está morto.” A minha mulher ficou chocada, mas era tarde demais. Nos dias seguintes, à noite, a minha filha só falava no “gato morrido” e quando chegávamos perto do passeio onde, dias antes, o cadáver do gato repousava, perguntava-nos para onde tinha ido e eu respondia que se tinha ido embora, enredando-me em contradições que até a mim me faziam duvidar acerca do real destino do gato. Então, uns dias depois, no mesmo local, vimos um gato muito parecido com o outro e a minha filha disse logo: “está ali o gato morrido.” Eu, feliz por poder reparar o meu erro, confirmei: “pois está.”

Eu sabia que era outro gato, caro leitor, mas se não há mal nenhum em acreditar que os nossos mortos vão para o céu, que as princesas despertam de sonos de cem anos quando beijadas por príncipes, que os príncipes se apaixonam por donzelas em caixões de vidro e que até o acaso pode ressuscitar uma princesa que trincou uma maçã envenenada, qual Eva incapaz de resistir à tentação, também não é errado acreditar que pobres gatos suburbanos e cinzentos podem voltar a viver. Não se trata de poupar as crianças às agruras da realidade ou de as fazer acreditar em histórias da carochinha, mas a de partilhar a certeza de que os gatos “morridos” continuam a viver em nós sempre que nos lembramos deles, que Lázaro, a filha de Jairo e a mãe da avó Fátima continuam vivos através das histórias que as nossas mães nos contavam, que nós contamos aos nossos filhos e que eles, um dia, irão contar aos nossos netos.

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