Crónica publicada na GQ de Março de 2017
Quando eu era pequeno, quatro ou cinco anos, à noite a minha mãe lia-me histórias da Bíblia. Entre as muitas histórias – da arca de Noé aos padecimentos de Jó, da mula de Balaão à aventura de Jonas a caminho de Nínive, do desgosto de Moisés às portas da Terra Prometida à destruição das muralhas de Jericó – recordo-me de duas sobre ressurreições. Na verdade, lembro-me de três, mas a história da ressurreição de Jesus era outra coisa, era o próprio fundamento da divindade de Cristo. As outras eram mais prosaicas – tão prosaicas quanto um milagre pode ser. A mais conhecida é a de Lázaro, irmão de Marta. Quatro dias após a morte de Lázaro, Jesus chega ao sepulcro e, apesar de o cadáver deitar cheiro – e como eu consigo sentir o odor da putrefacção do corpo que mais não é do que um conjunto de palavras num livro sagrado ainda me impressiona –, ordena-lhe que se levante e ande e Lázaro, amortalhado, regressa atónito à luz do dia, ao mundo dos vivos (lembram-se da cena do filme Inteligência Artificial quando os extra-terrestres concretizam o desejo do menino robô de rever a mãe, do estado em que a mãe desperta desse sono de séculos?).
A outra história era a da filha de Jairo. Este pede a Jesus que cure a filha. O estado da menina é grave. Mas, a caminho da casa de Jairo, Jesus é interpelado por uma mulher que sofre de hemorragias. Entretanto, a filha de Jairo acaba por morrer. Ao chegar ao local, Jesus encontra os familiares a chorar a morte da menina, mas diz-lhes que não se devem preocupar porque ela apenas dorme. Entra no quarto e diz-lhe: “Talita, cumi” ou “Menina, levanta-te.” É um episódio interessante porque Jesus, em vez de tirar partido do milagre, parece querer convencer os familiares de que a menina não tinha morrido.
Mais de trinta anos após esses tempos em que a minha mãe me lia histórias bíblicas, agora é a minha vez de ler à minha filha contos de fadas, histórias da carochinha. Nestes contos há muitas mortes mas também há, pelo menos, duas ressurreições – a da Bela Adormecida e a da Branca de Neve. Eu e a minha mulher discutimos sobre a forma adequada de ler as histórias: deveríamos ou não dizer que tinham morrido? Seria melhor dizer que estavam apenas a dormir, como Jesus disse aos parentes de Jairo? Como alguém na escolinha lhe tinha dito que as pessoas, quando morrem, vão para o céu, eu mantive a versão, embora garantindo que quer a Branca de Neve, quer a Bela Adormecida, não tinham ido para o céu. Mas, no fim, ambas as personagens acabam por se levantar e andar, ressuscitadas pelo milagre do amor anunciado. Tudo acaba bem.
Semanas depois, ao ler-lhe a história de uma toupeira que queria agarrar a lua, a minha filha disse-me que sabia onde era a lua, era o sítio onde estava a mãe da avó Fátima. Não a contrariei. Sim, talvez os mortos vão para a lua e o céu seja apenas um deserto de estrelas. E, acrescentou a minha filha, era também na lua que estava o “gato morrido”. Uns tempos antes, ao sairmos de casa, deparámo-nos com um gato morto junto ao nosso carro. A minha filha quis tocar-lhe porque enquanto eu via um gato morto, com um fio de sangue na boca, ela via um gato deitado, a dormir pacificamente. Sem pensar, disse-lhe: “está morto.” A minha mulher ficou chocada, mas era tarde demais. Nos dias seguintes, à noite, a minha filha só falava no “gato morrido” e quando chegávamos perto do passeio onde, dias antes, o cadáver do gato repousava, perguntava-nos para onde tinha ido e eu respondia que se tinha ido embora, enredando-me em contradições que até a mim me faziam duvidar acerca do real destino do gato. Então, uns dias depois, no mesmo local, vimos um gato muito parecido com o outro e a minha filha disse logo: “está ali o gato morrido.” Eu, feliz por poder reparar o meu erro, confirmei: “pois está.”
Eu sabia que era outro gato, caro leitor, mas se não há mal nenhum em acreditar que os nossos mortos vão para o céu, que as princesas despertam de sonos de cem anos quando beijadas por príncipes, que os príncipes se apaixonam por donzelas em caixões de vidro e que até o acaso pode ressuscitar uma princesa que trincou uma maçã envenenada, qual Eva incapaz de resistir à tentação, também não é errado acreditar que pobres gatos suburbanos e cinzentos podem voltar a viver. Não se trata de poupar as crianças às agruras da realidade ou de as fazer acreditar em histórias da carochinha, mas a de partilhar a certeza de que os gatos “morridos” continuam a viver em nós sempre que nos lembramos deles, que Lázaro, a filha de Jairo e a mãe da avó Fátima continuam vivos através das histórias que as nossas mães nos contavam, que nós contamos aos nossos filhos e que eles, um dia, irão contar aos nossos netos.