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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

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Circo da Lama

06
Out17

No escurinho do cinema

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Abril de 2017

 

Ah, a nostalgia de tudo! De certeza que já houve um poeta, publicado ou por publicar, celebrado ou anónimo, a escrever palavras idênticas. Um poeta que se lembre do sabor do pão com manteiga e açúcar, de um carrinho verde numa varanda de verão, de uns desenhos animados em que um passarinho tingia as pétalas de uma flor com o sangue sacrificial do seu peito, da luxemburguesa de olhos verdes que venceu o Eurofestival em 1983, de Debra Winger a despedir-se dos filhos numa quarta-feira de Lotação Esgotada, enfim, das quatro salas de cinema do Feira Nova, ali no Lavradio, onde certamente esse poeta terá passado a adolescência no escuro a voar com Goldie Hawn nas margens do Sena, a enfrentar aracnídeos num planeta distante, a assistir deliciado aos gritor de puro pavor de Neve Campell.

Já regresso ao cinema porque, como diz ali em cima, a crónica deste mês é sobre cinema e não quero frustrar as justas expetativas do leitor habituado a confiar nos títulos (podia falar de quão enganadores são alguns títulos de filmes, mas não é o momento para isso). Antes, devo referir que há umas semanas estive na Índia, facto nada extraordinário visto que a Índia é habitada por mais de mil milhões de almas e visitada anualmente por 8 milhões de turistas. Nada extraordinário a não ser para mim, gota perecível num mar de gente, mas ainda assim gota individual e com memórias, que é o que conta. Bem, foi na Índia que conheci Javier Montes, escritor espanhol, e o ouvi a ler um excerto em inglês do seu livro mais recente, Varados en Río, que, como o título indica (confiemos no título, uma vez mais), é sobre o Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, de encantos mil, pela qual este asturiano loiro se apaixonou sem ver correspondida a sua paixão – deve ser isto a globalização. No referido excerto, o narrador conta uma insólita ida ao cinema. Viu o anúncio de uma sessão no jornal, dirigiu-se ao local para descobrir com algum espanto e inquietação que a sessão era exibida na sala classe média de uma casa particular. Mais perplexo que temeroso, deixou-se ficar na companhia de desconhecidos para ver o filme e compara essa experiência à dos cristãos primitivos nas catacumbas. Prossegue com a analogia religiosa dizendo que, assim que as luzes burguesas da casa “muy vivida” se apagaram, ouviu na sua cabeça as palavras daquele homem que nunca escreveu nenhuma: “onde estão dois ou três reunidos em meu nome…”

Regresso, pois, ao meu cinema, após esta breve excursão cine-místico-tropical ma non troppo, ao cinema de quatro salas do Feira Nova, já encerrado e pelo qual ninguém chorou, ninguém fez petições, ninguém organizou vigílias como é habitual sempre que encerra um desses cinemas monumentais, de arquitetura majestosa e cortina bíblica. Não, as salas do Feira Nova eram acanhadas, idênticas a tantas outras salas comerciais por esse mundo fora e, no entanto, foi ali que, em muitas tardes de segunda-feira, com os bilhetes a 350 escudos, vivi, viajei e comunguei do sonho que é a essência da religião do cinema. Muitas vezes, quase sempre, sozinho, rodeado de desconhecidos, porém com essa certeza reconfortante de que estávamos imbuídos do mesmo espírito, que partilhávamos a mesma fé, que quando regressávamos à luz do dia e a primeira coisa que víamos era o interior devoluto do que havia sido uma hamburgueria vínhamos transfigurados, com os olhos a habituarem-se à claridade, como se tivéssemos bebido um pouco de verdade, mesmo que o filme fosse medíocre.

Durante alguns anos, e não os mais infelizes, cultivei esse hábito de ir sozinho ao cinema. Foi assim que vi Buffalo 66, Felicidade e Disponível para Amar, no King, A Corda e Mãe e Filho, na Cinemateca, Conto de Outono, no Nun’Álvares e Vertigo no exíguo espaço do Cine-Clube do Barreiro, numa sessão quase tão doméstica e clandestina como a que Javier relata no livro dele. Há poucos dias voltei a ir ao cinema sozinho, o que já não acontecia há oito anos, quando fui ver Gran Torino nas salas que vieram substituir as do Feira Nova. E lembrei-me dessas segundas-feiras sagradas em que apanhava o autocarro perto de casa, saía na rotunda do Lavradio, caminhava até ao cinema, comprava o bilhete com o dinheiro certo, assistia a um filme qualquer e, no final da liturgia, regressava ao mundo real pairando acima dessa realidade. Como Goldie Hawn nas margens do Sena.

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