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Circo da Lama

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

"Se ele for para a Suiça, não lhe guardo as vacas", David Queiroz, pai de António, vencedor da Casa dos Segredos

Circo da Lama

20
Nov17

Como um pássaro cheio de luz

Bruno Vieira Amaral

“Passado o primeiro claustro do Hospital de S. José, galgada a escadaria até ao segundo andar, temos outro claustro, onde a luz do dia anoitece e é sempre a mesma. Ao nosso lado, a vestimenta de ganga de um empregado que nos acompanha. Os dois, eu e ele, pouco seguros, pizamos os degraus de uma escada de ferro. A porta à direita abre sobre a enfermaria de Santo António. Começa a parte dramática, a visão da dôr escondida sob os cobertores, fria e abandonada. O rancho das duas horas róla numa carrinha. Odôr insuportável, que faz vómitos. A vidraça; a enfermaria longa onde a luz é muito pálida e o sol entra com um sorriso triste. A primeira figura de dôr é um homem que passeia, com um braço erguido por um triângulo de madeira. O empregado de vestimenta de ganga põe-se a conversar; deixa-nos à vontade e nós vamos conversar com os incomunicáveis, os que estão ali presos e feridos, como supostos bombistas. A polícia apura, não se devem lançar culpas sobre quem não pode falar. A palavra supostos, está, pois, bem. Aquilo é muito triste. Há doentes que fumam e não volvem os olhos, corpo enterrado e imóvel no meio dos lençóis sujos, quando passamos. Um rostinho de criança exangue, todo tocado de oiro antigo, onde a dôr tem resignação, cansada já. E a enfermaria é alta e triste, de janelas de vidros pálidos de luz. Conhecem a Soror Filomena dos irmãos Goncourts? Pois é assim aquilo, tal qual, com muito menos carinho, muito menos branco. Esta côr não existe naquela enfermaria. Os varais da cama, com a chapa de esmalte… esta é a 44… estão sujos; a almofada, onde a cabeça do doente descansa, gravada com as letras H.S.J., é amarela. O branco das barrelas e dos oito dias de uso gastou-se, envelheceu. Colunas que seguram a abóbada, escarradores, as camas alinhadas à parede e a carrinha do rancho que deslisa, distribuindo o arroz aguado, com pretos de coágulos de sangue. Mas nem todos os doentes estão deitados. Alguns ensaiam os primeiros passos, tropeçando os pés, como se tivessem regressado à infância, quando na relva dos jardins, a mão segura na mão da mãe que era carinhosa, que o devia ser, tentavam andar. Não há feridas à mostra; só há rostos cavados, quasi caveiras, tanto as carnes estão descarnadas.

44! O primeiro suposto bombista. Tirou a colcha; o cobertor de lã, listrado a vermelho e azul, sobre-lhe só meio corpo. Está sentado na cama. O seu estado é grave; um estilhaço duma das bombas que foi arremessada contra um eléctrico na Avenida Almirante Reis, ontem, rasgou-lhe o ventre, extravasou-lhe os intestinos num mar de sangue.

— Eu?... José… Godinho.

É um moço ainda. Pálido, o olhar húmido de tristeza, um grande perdão nas pupilas. A dôr igualou-o a todos nós. Fala-nos baixinho, a muito custo. Cara rapada, o buço está crestado de pólvora e na face branca, esquálida, a dôr murmura e fala por ele. Quando chegámos junto da sua cama, pisámos um jornal.

— Inocente?

— Sim… Eu… estou.

E aludindo ao jornal:

— Esse jor… mentiu. Não con…fe…ssei.

Não! O seu falar brando, sciciado, morre a pouco e pouco. Os lábios não aquecem a palavra. Inclinamo-nos sobre o ferido.

— Onde foi?

— Aqui. Com dôr: no baixo ventre…

— É das Juventudes?

— Sou, murmura mais baixo. Não…tenho…nada…passou…Perdi… o vapor…

E a cabeça róla triste, tristemente, muito branca. Mais nada. Saímos da enfermaria. Outra, a de S. Francisco. Há menos camas, uma pequena mesa, ao meio, onde o enfermeiro aquece qualquer remédio. Mais sossego, recolhimento, velado o sorriso do sol, distante dali. Cada cama é uma mesa anatómica; tem um corpo esfacelado. Só os corpos vivem e traduzem para nós o horror da dôr. Também não há feridas.

— Como te chamas, meu pequeno?

Um nome. Este está alegre, brinca com uma lapiseira, uma carteirita e tem muitos fascículos de romance na mesa de cabeceira. É um marçanito, cabelo preto, olhos negros que rolam, que saltitam, que ardem de alegria – a bela alegria da mocidade.

— Melhor?

— Oh! Muito melhor!

— E porque estás preso?

— Falava com um rapaz quando a bomba estalou… Foi há dias, a primeira que estalou na rua da Palma. Mas eu estou inocente…

E muito vivo, embriaga-se de falar, como um pássaro cheio de luz:

— Não estou preso… Mesmo que estivesse não me importava… a verdade saber-se-há…

O ferimento é leve: um buraco nas costas, do comprimento, do comprimento…

— Desta lapiseira.

Cama nº… não importa, esqueceu.

O cobertor tapa-o todo. A descoberto apenas a cabeça. Dorme? Talvez não, mas tem os olhos cerrados. É moreno, os ângulos do rosto estão negros, cheios de sombras que a dôr poz ali e que não desvanecerá tão cedo. É uma cabeça forte, um bronze, talhado em linhas violentas e enérgicas. As pálpebras mexeram-se; olha-nos.

— Então?

— Braços e pernas partidos.

Sobre a cama, desdobrado o jornal A Batalha, numa afirmação. Fala de seguida, triunfando da dôr a sorrir-se.

— Fizeram-me a operação esta madrugada. Não havia  meio de cloroformizarem-me… Até disse aos médicos que aquilo não prestava… três injecções de soro anti-tetanico… Queres ver como estou?

O corpo aparece, com os braços enfaixados de ligaduras.

— São aparelhos, gesso e madeira…

— Como se chama…

— … Carrascalão.

— Ontem à noite…

— Ia a passar…

Fala e nem uma dôr à superfície do rosto, uma palavra que indique tristeza. Aconteceu. Não o sabe ele porquê.

Aquele rosto fica, cavado de sombras, enérgico, todo ele na sombra, sem arestas nem brancos. É uma forma de sofrer, esta, a de reagir."

Notícia publicada no Diário de Lisboa de 11 de Março de 1922.

06
Nov17

A Beleza da Destruição

Bruno Vieira Amaral

Crónica publicada na GQ de Maio de 2017

 

Já sobrevivi ao fim do mundo. Foi há mais de vinte anos, num domingo. Nas semanas anteriores, uma astróloga cujo nome não recordo previu um grande terramoto para Lisboa. Ainda não vivíamos na era da Internet, nem das notícias falsas, mas o Jornal do Incrível era incrivelmente popular, com os seus extra-terrestres e bezerros de duas cabeças. Assim, aquele domingo foi vivido com uma sombra de angústia, o risinho nervoso de quem não acredita em bruxas pero que las hay… O dia passou, e foi um radioso domingo de sol, o mundo não acabou e o terramoto não aconteceu, nem sequer o mais leve tremor de terra, daqueles que só são sentidos pelos sismógrafos mais sofisticados e pelos periquitos mais sensíveis.

Comecei pelo fim do mundo para chegar à notícia da publicação do segundo volume da monumental tradução da Bíblia grega por Frederico Lourenço. Depois dos evangelhos, o leitor recebe o que faltava do Novo Testamento. Peço desculpa se já vos perdi no início da minha homilia. Aos resistentes digo que pretendo apenas falar do último livro, o Apocalipse ou Livro da Revelação, esse documento estranho, escatológico, profético, visionário, psicadélico, caleidoscópico, aterrorizador e, como afirma o tradutor, escrito num grego excêntrico. Um dos grandes mistérios da feitura da Bíblia é o de se saber como é que o Apocalipse nunca foi retirado do cânone. No século III, um discípulo de Orígenes de Alexandria declarou-o apócrifo e a igreja teve de se empenhar na luta contra as interpretações literais do texto.

Ateus, agnósticos e padres com vocação poética costumam apontar como livro preferido da Bíblia o Eclesiastes (o grande tratado do pessimismo), o Cântico dos Cânticos (a celebração do amor físico) ou o Livro de Job (essa oportunidade para apontar o dedo a Deus pelo sofrimento que deliberadamente traz aos que o servem). Eu prefiro o Apocalipse, um livro para os loucos, os criadores de cultos, os quiliastas, os místicos, os iluminados, os que acreditam que a verdade só pode ser encontrada nas margens da razão. Depois das epístolas ortodoxas de Paulo, o Apocalipse é como um rebentamento de liberdade e loucura, um manifesto selvagem e espiritual, repleto de imagens de fogo e morte mas também com a promessa paradisíaca de um novo tempo. É uma orgia sensorial, com os seus cordeiros, anjos, leões, sangue, pragas, ídolos dourados, dragões de sete cabeças e dez chifres, livros amargos, babilónias e “relâmpagos e vozes e trovões e um sismo e um imenso granizo.”

O lado demencial e de “fim do mundo” é tão marcante que a palavra “apocalipse”, que significa revelação, passou a ser sinómino de destruição total. A ideia de aniquilação é estranhamente fascinante porque traz com ela uma promessa de recomeço e renovação. A Bíblia tem outros exemplos, desde o dilúvio ao castigo de fogo sobre as cidades pecaminosas de Sodoma e Gomorra. Infelizmente, a humanidade não precisa de recuar aos tempos bíblicos para se assombrar com o fogo. Basta recordar os bombardeamentos das cidades alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, de que W. G. Sebald fala em História Natural da Destruição, ou a bomba atómica sobre Hiroxima, cujo relato pormenorizado se encontra na reportagem clássica de John Hersey para a New Yorker. O horror dessas destruições é atenuado porque os alvos foram os “maus” daquela guerra. Queremos acreditar que as bombas largadas sobre o inimigo eram inevitáveis e, até, justas, como justo terá sido o castigo sobre os habitantes libertinos de Sodoma e Gomorra. Não foi por acaso que à operação sobre a cidade de Hamburgo pela Royal Air Force foi dado o nome de “Gomorra”.

Outra das razões do fascínio é mais mórbida e tem que ver com a beleza perversa e espantosa da própria destruição. Perto do final da guerra, os nazis, em debandada pela Ucrânia, foram queimando todas as aldeias por onde passavam. Numa carta enviada para casa, um soldado escreveu que aquela era uma “imagem aterradoramente bela”. Um dos sobreviventes de Hiroxima, na altura uma criança, conseguiu escapar a tempo de ver a nuvem que se elevava nos céus, recebia os raios de sol e projetava de volta as cores do arco-íris: “E que Deus me perdoe se disser que era um lindo espectáculo”, disse ele anos mais tarde.

Não sei o que haverá de tão atraente na possibilidade de destruição total: será o domínio convulsivo do terror? O ruído impossível da catástrofe? A luz e o calor mortais? A simples atração pelo abismo? O vislumbre de um novo mundo nascido das ruínas? Sei que, na minha memória, no céu azul daquele domingo em que o mundo não acabou permanece uma radiante nuvem de enxofre e que um dia, sem que saibamos a hora, ela cairá sobre nós.

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